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TEORIA
Para além da democracia liberal e do totalitarismo
Claudia Cinatti
Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
Emilio Albamonte
Dirigente do PTS, membro do Staff da revista Estratégia Internacional

Republicamos artigo publicado originalmente na Revista Estratégia Internacional Brasil, número 1 de 2004.

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A atualidade da revolução e a dialética entre “liberdade e liberação”

O horizonte da teoria política contemporânea está dominado pela falsa antinomia entre “democracia” e “totalitarismo”. Esta simplificação vulgar pretende ignorar mais de um século e meio de história da classe operária, reduzindo toda a experiência revolucionária ao stalinismo e suas variantes.

As teorias da “democracia”, em seu auge após a queda dos regimes stalinistas, retomam o fundamento liberal da autonomização absoluta da política com respeito a toda determinação social, introduzindo novamente um antagonismo insolúvel entre a democracia política e a emancipação econômica.

Em seu livro “Sobre a revolução” refletindo sobre as diferenças entre as revoluções americana e francesa do século XVIII, H. Arendt expressava teoricamente esta dicotomia defendendo que havia uma distância entre a “liberdade” (política) e “liberação” (isto é, emancipação social), e que não necessariamente a última levava à primeira. [1]

Esta brecha surgia da introdução da questão social na revolução, isto é, da transformação da pobreza em “força política atuante” e da necessidade de resolver as privações surgidas na esfera da economia através de instrumentos políticos. Para H. Arendt ainda que a irrupção da “questão social” - das “necessidades peremptórias do povo” - tenha sido o selo distintivo da revolução francesa de 1789 e sobretudo o terror jacobino, em realidade foi Marx quem transformou definitivamente “o social em político” [2] e "desta forma, o objetivo da revolução cessou de ser a liberação dos homens e de seus semelhantes, e muito menos a fundação da liberdade, para converter-se em liberação do processo vital da sociedade da cadência de escassez, a fim de que pudesse crescer em uma corrente de abundancia, não a liberdade". [3]

O que fica fora do horizonte liberal de H. Arendt é justamente que a “abundância” é a condição sine qua non da liberdade, e que a contradição não está entre a emancipação social dos explorados e sua autodeterminação política, senão nas relações de produção capitalistas que condenam a existência humana ao reino da necessidade e que, portanto, a exploração assalariada é a negação mesma da liberação e da liberdade.

Nisto reside o aspecto mais conservador da teoria política de H. Arendt, na qual convive uma ideia de democracia política como forma de autogoverno e de poder constituinte - desde a polis grega aos conselhos revolucionários operários de 1917 na Rússia, 1919 na Itália ou 1956 na Hungria - junto com a aceitação concreta do capitalismo e a idealização da democracia norte-americana, pela via de remetê-la ã revolução que a originou.

Porém, se nos estreitos marcos liberais do pensamento de H. Arendt, a revolução ocupava, a seu modo, um lugar central na reflexão porque era uma realidade atuante [4], a mesma desapareceu das novas teorias políticas. Como disse Z. Bauman, mostrando o cinismo que caracteriza aos ideólogos de nosso tempo, este retorno do liberalismo, para além de seus ornamentos teóricos, “se reduz ã simples crença de que não há alternativa”. [5]

Esta separação radical da esfera política com respeito ao social, esta elevação ao plano teórico da ruptura fenomenal da dialética ente “liberdade e liberação” que implicou a degeneração stalinista da Rússia e se aprofundou nas revoluções do pós-guerra, resulta na desaparição da revolução social do imaginário político pós-moderno, já que em sua ótica a revolução negaria a liberdade a favor de uma sempre duvidosa liberação.

O arco de teorias “anti-totalitárias” abarca desde os “pós-marxista” como E. Laclau, partidários da “democracia plural”, que como veremos não fazem mais que recriar vulgarmente o reformismo da II Internacional combinado com doses de liberalismo e psicanálise; ideólogos do “contra-poder”, como J. Holloway que concluem que se o Estado operário russo se burocratizou é melhor nunca mais se propor a tomar o poder político [6]; até T. Negri, um “comunista imanente” entusiasta das condições atuais, que nega a organização política, a transição e o Estado operário, porque considera que o político já foi definitivamente absorvido no social. [7]

A operação ideológica se completa com o “retorno” (aos gregos, a Locke, a Kant, a Spinoza, a Bernstein...) ao “pré-marxismo” adaptado a condições pós-modernas, e com uma exaltação de tendências unilaterais sem dialética possível, o que somente leva a mistificar situações episódicas, transformando-as em realidades efetivas.

O “esquecimento” de Trotsky por parte destes novos ideólogos, inclusive de muitos que provêm das fileiras do trotskismo [8] é funcional para construir uma caricatura do marxismo, em que este se apresenta como determinista, para “demonstrar” que necessariamente leva ao totalitarismo, identificando vulgarmente marxismo com stalinismo. Evitam assim enfrentar as contradições que surgem da organização social capitalista, contentando-se com elaborações abstratas, ou resgatando velhas fórmulas já superadas pela história.

Frente a tanta miséria teórica e estratégica, o pensamento de Leon Trotsky constitui uma herança inestimável para colocar novamente em cena a perspectiva da revolução proletária, e para refutar aqueles que afirmam que a priori - seja por razões “ontológicas”, ou pela dinâmica humana inevitável que se desenvolve na organização política - a tomada do poder e o intento de construir uma nova sociedade baseada nos organismos de poder operário, desembocam necessariamente em regimes totalitários.

Foi justamente Trotsky quem mais refletiu sobre estes problemas, sintetizando a experiência da revolução de Outubro e da luta contra a sua degeneração, antecipando inclusive o conceito de totalitarismo para definir o regime stalinista (que assinalou como “gêmeo do nazismo”), muito antes que os nossos liberais pudessem articular uma explicação coerente. E, sobretudo, foi quem combateu o stalinismo até a morte, recuperando contra a monstruosa experiência de “socialismo em um só país” e da ditadura burocrática, a perspectiva da revolução internacional e a democracia soviética, como a forma mais democrática de organização política do proletariado como classe dominante. Por isso mesmo acreditamos que em seu legado teórico e político há questões centrais que nos permitem orientar-nos hoje, e não cair no falso dilema entre “liberdade sem igualdade” ou “igualdade sem liberdade”, e recriar um marxismo revolucionário que seja o guia de ação para a conquista do poder político e da democracia operária no século XXI, na perspectiva de que a humanidade supere de uma vez sua pré-história e conquiste uma sociedade comunista.

A “democracia plural” ou o retorno de Bernstein

Os teóricos pós-modernos da democracia - plural, radical ou agonística [9] - têm substituído a grande aspiração ã emancipação da exploração assalariada, por um retorno vulgar a velhos conceitos da teoria liberal, como os “valores universais” de cidadania e igualdade.

Se do ponto de vista político isto tem como consequência insistir em práticas reformistas, disfarçadas de “radicalidade”, do ponto de vista teórico tem uma assombrosa semelhança em seus aspectos fundamentais com a discussão que se desenvolveu na Segunda Internacional, em fins do século XIX, conhecido como o “Bernstein Debatte”. [10]

Repassando as ideias de Bernstein, veremos que muitos, sem admiti-lo, recriam várias de suas “ilusões” - sobre o capitalismo sem crises, sobre a extensão da democracia, etc. Quem reconhece uma dívida teórica com o reformismo da II Internacional é Ernesto Laclau, um dos principais teóricos da “democracia plural”, a quem vamos nos referir essencialmente. [11]

O exercício comparativo entre as ideias originais do reformismo bernsteiniano e as do pós-marxismo de Laclau, não resulta ocioso, e revela para além da pretensa sofisticação teórica fornecida pelo pós-estruturalismo, pela psicanálise e pela linguística, em essência se trata de um novo intento de justificar a negação da perspectiva da revolução e sua substituição por uma democratização progressiva da vida social.

Reformismo e dinâmica do capitalismo

Para Bernstein as mudanças do final do século XIX negavam os fundamentos teóricos do marxismo em todos os terrenos: a economia, a dinâmica social de classes, a política e a filosofia. Isto levava, portanto a considerar obsoleta a estratégia revolucionária, e a tratar de dar uma justa expressão teórica e programática ã prática que já vinham desenvolvendo setores importantes da socialdemocracia alemã - sobretudo a sua ala sindical e sua fração parlamentar.

Em suas palavras, “a influência da socialdemocracia seria muito maior se esta se atrevesse a emancipar-se da fraseologia antiquada, e se decidisse a aparecer como o que realmente é hoje: um partido socialista, democrático, partidário da reforma”. [12]

Em que consistia a “atualização” que propunha Bernstein para manter a “vitalidade” do marxismo? Pura e simplesmente em sua negação.

Do ponto de vista econômico, Bernstein mirava o coração da teoria marxista: a teoria do valor e a explicação que dava Marx ás crises capitalistas. Para Bernstein, os conceitos de “trabalho abstrato” e “valor” não eram mais que construções mentais, generalizações teóricas que podiam chegar a ser ferramentas para a análise, mas que não tinham nenhuma existência no mundo real. [13]

Considerava que Marx havia enfatizado as tendências que levavam ás crises - essencialmente a tendência ã queda da taxa média de lucro e a superprodução - mas havia subestimado as contra tendências, como por exemplo, a intervenção estatal, a crescente flexibilidade dos sistemas de crédito, a ampliação do mercado mundial e, sobretudo, o surgimento de grandes trustes, aos quais Bernstein dava um valor absoluto a ponto de crer que tornavam praticamente improvável que “ocorressem crises comerciais gerais similares ás anteriores, ao menos por um extenso período de tempo”. Daqui concluía que o capitalismo havia conseguido harmonizar as suas tendências desiguais e havia posto em marcha um curso de progresso incessante, razão pela qual a “guerra de classes” já não tinha sentido, assim como a revolução violenta e a tomada de poder político por parte do proletariado.

Ainda que a realidade tenha desmentido mil e uma vezes a Bernstein - basta lembrar o crack de 1929 para colocar somente um exemplo “catastrófico” - a perspectiva de um capitalismo sem crise, inclusive sem ciclos econômicos, retornou na década de 90 e se transformou no discurso ideológico dos entusiastas da “globalização”, que viram nesta uma tendência realizada pelo capitalismo ã integração mundial, ou nos aduladores da “nova economia” que também defenderam teorias de fim do trabalho e da hegemonia do trabalho imaterial [14].

A utopia reacionária de Bernstein e Laclau: cidadania, democracia e Estado

Evidentemente é no terreno das definições políticas onde se faz mais patente a coincidência entre Bernstein e aqueles que defendem como única alternativa uma “emancipação cidadã”, humanizando as tendências brutais do capitalismo e ampliando a “gestão popular” na esfera pública, subtraindo assim porções de recursos e atividades do controle do privado, mas sem nem sequer sonhar em eliminar a propriedade privada. [15]

Vejamos sinteticamente como, em aspectos fundamentais, Bernstein se antecipava ã “desconstrução” pós-marxista de todo fundamento do socialismo, para terminar justificando a reforma do capitalismo, e como já então o marxismo clássico havia refutado seus enunciados.

> a) A democracia como “o governo sem domínio de classe”

Coerente com uma visão harmoniosa da realidade, Bernstein partia de aceitar a ordem burguesa democrática, e seu Estado como uma “forma superior de civilização” [16], na qual os antagonismos de classe seguiriam existindo na sociedade mas de forma cada vez mais atenuada.

Contra a definição clássica de Marx e Engels de Estado, Bernstein considerava que as transformações na legislação, a democratização e o crescente peso social e político do proletariado tinham como consequência a anulação do aspecto de domínio de classe do Estado burguês, em favor de seu papel como organizador social de “todo o povo”. Colocava como perspectiva que “quanto mais se democratizarem as organizações políticas das nações avançadas, mais diminuirá a necessidade e a ocorrência de grandes catástrofes políticas”, entendendo por “catástrofe política” a irrupção violenta do proletariado e das classes subalternas contra a ordem estabelecida, descartando inclusive como probabilidade teórica, a revolução nos países centrais.

Bernstein se pergunta: “Qual é o princípio da democracia?”. E responde:

"Nos aproximaremos muito mais à definição se nos expressarmos negativamente, e definimos democracia como a ausência de um governo de classe, como a indicação de uma condição social em que nenhuma classe tem um privilégio político que se oponha ã comunidade de conjunto. (...) Esta definição negativa tem ademais a vantagem de que deixa menor margem para a ideia da opressão do indivíduo pela maioria, que é absolutamente repugnante para a mente moderna, que a frase de “governo do povo”. (...) Quanto mais for adotada e governe a consciência geral, mais a democracia terá um significado equivalente ao maior grau de liberdade possível para todos. A democracia é em princípio a abolição do governo de classe, ainda que não seja em si a supressão real das classes."

Ligado a este conteúdo neutro do ponto de vista dos antagonismos sociais, a emancipação já não consistia na emancipação do trabalho assalariado, como base para conquistar a liberdade, mas se realizava através da ampliação da cidadania, perdendo assim todo o conteúdo de classe.

Porém a democracia formal não é antagônica, e sim o marco jurídico mais estável para o despotismo capitalista, isto é, para a coerção econômica a vender a força de trabalho que rege a vida da imensa maioria da humanidade, que não tem outro meio de subsistência.

Ainda que por razões distintas [17] para Laclau, assim como para Bernstein, o regime político liberal é autônomo com respeito ás relações de produção em que se baseia [18]. Isto resulta em uma repetição vulgar de que a democracia e o Estado constituem um terreno neutro para as lutas pela hegemonia, e consequentemente, a política da esquerda “não passa por um ataque direto aos aparatos do Estado, mas implica a consolidação e a reforma do Estado liberal [19]”.

Não faltam argumentos para rebater esta fantasia. Historicamente a democracia burguesa havia sido um luxo das nações mais avançadas. Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, Trotsky definia o regime democrático como “a forma mais aristocrática de domínio. Só é possível para uma nação rica. Todo democrata britânico tem nove ou dez escravos trabalhando nas colônias [20]”.

Mas com o fim da Segunda Guerra esta realidade mudou. Aproveitando o horror do nazismo, dos campos de concentração e do holocausto, e também o caráter repressivo e totalitário do regime stalinista, os Estados Unidos foram impondo no curso da Guerra Fria a “democracia ocidental” como sinônimo de “mundo livre”. E isto apesar de haver perpetrado crimes horrorosos como os bombardeios contra Dresden, ou a bomba atômica em Hiroshima, para não falar dos massacres imperialistas no Vietnã e na Argélia, e de sustentarem as piores ditaduras, de Suharto e o regime racista na África do Sul, a Videla e Pinochet.

Durante as últimas décadas do século passado, a democracia burguesa - com formas mais ou menos degradadas, com mais ou menos bonapartismo - se estendeu, inclusive ã grande maioria das semicolônias e aos ex-Estados stalinistas. Mas esta extensão da democracia liberal não tem levado a emancipação social, muito pelo contrário, atuou como cobertura da contraofensiva neoliberal, e justificação ideológica de guerras imperialistas.

> b) A fragmentação do proletariado

Bernstein considerava que antes de pronunciar-se a favor de uma revolução proletária, haveria que definir primeiro o que era o proletariado moderno, ao que respondia: "se contássemos todas as pessoas sem propriedade ou que não têm receita pela propriedade ou posição privilegiada, seguramente constataríamos que constituem a maioria da população dos países avançados. Mas este “proletariado” seria mescla de elementos totalmente diferentes, de classes que têm mais diferenças entre si que as existentes entre o “povo” de 1789 (...). Os assalariados atuais não são uma massa homogênea, privada em igual grau de propriedade, família, etc, como se dizia no Manifesto Comunista. Nas indústrias mais avançadas se encontra já uma hierarquia de trabalhadores, com grupos entre os quais existe apenas um vago sentimento de solidariedade."

Junto com o surgimento da aristocracia operária, Bernstein assinala que a classe trabalhadora industrial, tal como Marx concebia o proletariado, era minoritária na sociedade, na qual além das classes agrárias, emergiam setores médios que ascendiam ã pequena propriedade acionária.

Estas classes não proletárias não tinham, nem podiam chegar a ter uma consciência socialista. Disto concluía que se em geral compartilhavam da condição de assalariados, e isso permitia lutas sindicais, uma vez no poder não teriam objetivos comuns para dirigir um Estado.

Antes que Bernstein escrevesse, Marx já havia analisado em linhas gerais este problema em sua crítica ao Programa de Gotha [21], com respeito ã definição das classes subalternas não proletárias e ã política que devia ter o partido operário revolucionário para as camadas médias e os camponeses. Para Marx, a classe operária era a classe socialmente mais homogênea e a única verdadeiramente antagônica ao capital e, portanto revolucionária. No Manifesto Comunista se referia, em escala histórica, ao enfrentamento decisivo entre as classes fundamentais da sociedade, não a negação de outras classes e setores.

Para Laclau a “fragmentação” social é suficiente para levas adiante uma “desconstrução” do conceito de “classe”. Na realidade Laclau só “desconstrói” o conceito de “classe operária”, mas não diz uma palavra sobre se a burguesia também foi “desconstruída” e em conseqüência se a propriedade privada evaporou, o que mostra o caráter profundamente ideológico e enviesado de sua operação.

No entanto, para que o campo da política possa se abrir, são insuficientes a fragmentação em si mesma ou a pura diferença. Deve haver uma relação entre o “momento da pluralidade social” e o da articulação. Para resolver esta relação sempre equívoca, Laclau tenta reescrever em sua perspectiva pós-estruturalista o conceito de “hegemonia”, tal como ele havia sido concebido pelo marxismo russo e desenvolvido pela III Internacional, porém despojando-o de toda referência de classe e transformando-o em um “significante vazio”. Os distintos sujeitos sociais lutam para dar-lhe um conteúdo particular, que tenha efeitos universalizantes para outros sujeitos sociais, o que permite, por uma cadeia de equivalências, uma abertura do campo político.

Apesar de considerar o marxismo como uma teoria “essencialista” e “objetivista”, Laclau tem que reconhecer que a lei do desenvolvimento desigual e combinado e a teoria da revolução permanente, tal como foram formuladas originalmente pelo jovem Trotsky em 1904-1905 e generalizadas na década de 1920, rompiam com o determinismo e abriam a perspectiva da hegemonia do proletariado sobre as tarefas históricas burguesas, isto é, democráticas [22]. Mas o reconhecimento se detém aí, já que Laclau considera que a lógica política de Trotsky segue ligada ao “essencialismo classista”.

Efetivamente para Trotsky o fato de que o proletariado assuma as tarefas que a burguesia decadente havia chegado muito tarde historicamente para assumir, não alterava nem o caráter das mesmas nem a identidade da classe operária, o agente social que as levaria adiante como parte de sua própria revolução.

Diferentemente da interpretação que faz Laclau do conceito de “hegemonia” como independente de todo o conteúdo de classe, na tradição do marxismo russo e da III Internacional, incluindo Gramsci, a hegemonia só teria sentido na medida em que a sociedade estava dividida em classes, já que implicava nem mais nem menos que definir sobre qual classe o proletariado exerceria sua ditadura, e sobre qual sua hegemonia.

Nos anos anteriores ã revolução russa, a distinção sobre a hegemonia da classe operária concretizava o papel que deveria jogar o proletariado na luta contra a autocracia czarista. Concretamente significava que a classe operária devia persuadir os camponeses pobres para ganhá-los como aliados, o que implicava compromissos práticos enquanto as tarefas não específicas da revolução socialista como a reforma agrária. Esta hegemonia sobre as classes subalternas se opunha ã ditadura exercida contra as classes inimigas, a autocracia e a burguesia liberal, cujo poder e Estado havia que suprimir violentamente.

Para um socialista transformado em liberal como Laclau, junto com a teoria do partido revolucionário, esta é a base do que se chama “prática autoritária”, porque uma definição assim fixaria a priori, isto é, anteriormente ao ato político, o sentido classista de uma reivindicação e de um agente social determinados.

Trotsky incorporou a crescente heterogeneidade da sociedade e da própria classe operária em sua concepção do desenvolvimento desigual e combinado e na teoria da revolução permanente, defendendo a necessidade de manter a hegemonia proletária ã frente da aliança das classes exploradas, e de um programa transitório que una as distintas camadas e setores da classe trabalhadora.

Hoje, após a ofensiva neoliberal que teve como resultado uma fragmentação maior da classe operária, mas também contraditoriamente uma extensão das relações salariais, estas elaborações de Trotsky resultam indispensáveis para superar as divisões introduzidas no interior da classe operária - trabalhadores ocupados, desocupados, sindicalizados, precários, etc - e poder levar adiante uma política revolucionária.

> c) A cidadania universal

Bernstein chega à conclusão de que a ditadura do proletariado havia sido concebida para outra época, em que as classes privilegiadas detinham inquestionavelmente o poder na Europa, mas que o desenvolvimento capitalista e o crescimento eleitoral da socialdemocracia a tornaram obsoleta. Sobre isso defende

“Tem algum sentido, por exemplo, manter a frase “ditadura do proletariado” em um momento em que em todos os lugares possíveis os representantes da socialdemocracia têm se localizado praticamente na arena do trabalho parlamentar, têm se declarado a favor da representação proporcional do povo e da legislação direta - todo o qual é inconsistente com uma ditadura? A frase é hoje tão antiga que só poderia reconciliada com a realidade retirando da palavra ditadura seu atual significado e dando-lhe uma interpretação mais débil. A atividade prática da socialdemocracia está dirigida a criar as circunstâncias para fazer uma transição sem estalos convulsivos da ordem social moderna a uma superior. Em última instância - a segurança e a consciência de ser os pioneiros de uma civilização superior - está a justificação moral da expropriação socialista a que aspira. Mas a ditadura das classes pertence a uma civilização menor.”

A aspiração da socialdemocracia não era já a revolução proletária, senão estender a cidadania [23]. “A socialdemocracia não deseja romper a sociedade civil e fazer de todos os seus membros proletários; na verdade, ela trabalha incessantemente para elevar o trabalhador da posição social de proletário ã de cidadão e, portanto, para voltar ã cidadania universal”. [24]

Ainda que reconhecesse que os partidos liberais haviam se transformado em “guardiões do capitalismo”, Bernstein acreditava que o socialismo era o “herdeiro legítimo do liberalismo”, não só temporalmente como “em suas qualidades espirituais”, a ponto de considerar que o socialismo podia ser definido sinteticamente como “liberalismo organizado”.

Em última instância considerava que o regime parlamentar e o Estado representativo iriam atenuar progressivamente os conflitos entre as distintas classes, até chegar ao ponto em que se removeria diretamente a fonte de sua origem, resolvendo a contradição entre a “igualdade política” e a “desigualdade social”.

Mas justamente nisso residia e reside a fortaleza do capitalismo, no fato de que a pior “desigualdade social” isto é a exploração e a coerção econômica imposta ã maioria despossuída de seus meios de subsistência, coexiste com a mais plena “igualdade jurídica”, gerando a ficção de que os cidadãos individualmente e independente da posição social são iguais frente ao Estado, razão pela qual gozariam dos mesmos direitos políticos e se imporiam a eles as mesmas obrigações.

Mas a exploração capitalista não é um problema jurídico, nem desaparece com a legislação trabalhista. Como Rosa Luxemburgo lhe respondia nesse momento “nenhuma lei obriga o proletariado a submeter-se ao jugo do capitalismo. A pobreza, a carência de meios de produção, obriga o proletariado a submeter-se ao capital”.

Ao contrário do que acreditava Bernstein, o Estado democrático moderno representativo, não constituía nem constitui uma “civilização superior”, pois encarna a ditadura do capital que impõe seu despotismo sobre as massas assalariadas, ainda que lhes conceda direitos políticos formais.

Diferentemente de Bernstein, Laclau não considera que o mundo atual constitua já uma “civilização superior”, mas sim que é o único “mundo democrático” possível onde há espaço para que se “reconheçam” as diferenças (sexualidades, étnicas, etc.).

Para contrastar com esta “democracia” baseada nas identidades contingentes, Laclau faz um amálgama entre a sociedade de transição e uma futura sociedade comunista mundial, ã qual Marx se refere como uma nova sociedade livre dos antagonismos que haviam marcado a pré-história humana, e constrói um relato determinista e “totalitário” do marxismo e da revolução social como o fim da política, e o advento de uma sociedade uniforme e transparente.

> d) O retorno a Kant

Bernstein repudiava a dialética porque acreditava que, com a sua insistência na “luta de opostos” não só distorcia a realidade, apresentando os conflitos de maneira mais extrema do que eram na realidade, como também justificava falsamente a necessidade de uma revolução violenta. Esta visão negativa com respeito ã dialética o levou a afirmar que o núcleo teórico do marxismo deveria ser a evolução e seu conteúdo moral um tipo de neokantismo, no qual o socialismo, despojado de todo o seu fundamento científico na própria dinâmica das contradições capitalistas, passava a ter o valor de objetivo ético ou de “ideia reguladora”, livremente eleita pela vontade humana. Por sua vez, o avanço da suposta “civilização superior” que implicava a democracia nos países avançados aproximava a promessa de “paz perpétua” kantiana, o que foi totalmente desmentido pelos antagonismos que culminaram na I Guerra Mundial. Bernstein defende a existência de um dualismo entre “a necessidade natural” das leis econômicas do capitalismo e a “liberdade ética” da eleição do socialismo.

O evolucionismo sofreu um grande descrédito e está praticamente desterrado das teorias contemporâneas. Mas o “retorno a Kant” mantém sua influência no pensamento de esquerda, que reintroduziu uma espécie de dualismo entre as condições atuais e um ideal ético inatingível. As marcas deste dualismo podem ser encontradas, por exemplo, na promessa da “democracia por vir” de Derrida e sua espera messiânica. Em uma discussão com Ernesto Laclau, Slavoj Zizek defende que “a principal dimensão kantiana de Laclau radica em sua aceitação da brecha impossível de ser fechada entre o entusiasmo pelo Objetivo impossível de um compromisso político e seu conteúdo realizável mais modesto” [25], que traduzido em política concreta seria sustentar a promessa de uma “democracia radical” e uma nova hegemonia, enquanto se conseguem pequenas reformas dentro da democracia liberal representativa.

A filosofia política atual tende a considerar a dialética e o materialismo histórico negativamente, como a forma mais acabada do totalitarismo, do esmagamento das singularidades e em última instância, do que Derrida chamou “a metafísica da presença”, isto é, a ilusão de encontrar um fundamento objetivo que faça a realidade transparente, neste caso a sociedade para o sujeito. Frente a isto exalta o antagonismo. Mas estas filosofias da contingência não têm feito mais que restaurar velhos essencialismos, metafísicas e vitalismos que longe de poder dar conta da dinâmica do movimento e da transformação, caem em novos idealismos filosóficos e utopias políticas.

Esta breve comparação mostra também o caráter profundamente ideológico, no sentido negativo do termo, das teorias que hoje sustentam posições similares ás de Bernstein. Quando Bernstein defendia suas ideias reformistas, a classe operária conseguia conquistas importantes, e tinha um crescente peso social e político através das eleições e do parlamento. O desenvolvimento do capitalismo por sua vez gerava a ilusão de um progresso sem fim, e de uma harmonia crescente entre os Estados.

Mas o século XX - com suas crises econômicas, com as duas guerras mundiais, e também com o desenvolvimento da revolução social - não passou em vão.

Hoje o reformismo político da “democracia plural” não tem nenhum sustento na realidade. A ofensiva neoliberal, que implicou uma regressão sem precedentes nas condições de vida das massas “em tempos de paz”, mostrou claramente que abaixo das formas institucionais democráticas pode desenvolver-se uma grande contrarrevolução econômica e social, que como defendia Lênin, a democracia burguesa mostrou mais que nunca ser “a melhor envoltura da ditadura do capital”, e que ao poder burguês só se poderá derrotar com os métodos da revolução proletária.

A ditadura do proletariado como democracia de Massas. O debate atual

No ponto anterior nos referimos ã teoria chamada pós-marxista, cujo imaginário se limita ã “radicalização da democracia” e a um reformismo, que em linhas gerais é tributário da ala bernsteiniana da II Internacional.

Mas o encanto pela “radicalização da democracia” não se limita somente a círculos intelectuais. Também tem um forte impacto nas fileiras da esquerda que se reivindica marxista revolucionária, como a Liga Comunista Revolucionária [26] francesa, que em seu último congresso votou excluir de seu programa a fórmula de “ditadura do proletariado”.

A imprensa europeia tem comparado isto com o “abandono da ditadura do proletariado” por parte do Partido Comunista Francês em 1976, dando a entender que se o PCF marcou o giro ao eurocomunismo [27], a LCR hoje estaria iniciando um giro de consequências similares no interior do que se chama o movimento trotskista [28]. Disto advém a importância de discutir com essa corrente, que por sua vez tem em seu seio destacados intelectuais marxistas.

O abandono da ditadura do proletariado por parte da LCR não é meramente terminológico ou “discursivo” como têm pretendido justificar seus dirigentes, alegando como pretexto a carga negativa que indubitavelmente tem o termo “ditadura” para o movimento de massas, sendo de fato a consumação programática de um longo caminho no qual a LCR vêm avançando em teoria e prática política - em especial depois dos sucessos de 1989 - em apagar as fronteiras entre reforma e revolução.

Para somente alguns exemplos recentes, a LCR tem se adaptado ã ala reformista do Fórum Social Mundial, incluindo organizações como ATTAC, e no ano de 2002 chamou o voto na França para o candidato de direita Jacques Chirac ante o ascenso eleitoral do candidato ultradireitista Le Pen, com o argumento da defesa da república. O caso mais extremo é o da Democracia Socialista - sua seção irmã brasileira - que participa do governo capitalista de Lula com um ministro.

O que queremos demonstrar nesta polêmica é que esta trajetória reflete a influência das ideias pós-marxistas na LCR - e também de ideias liberais de esquerda - que substituem as definições de classe pela de cidadão e diluem a perspectiva de revolução pela radicalização da democracia. Isto se expressa através da fórmula recentemente enunciada por um dos dirigentes da LCR de que a “revolução é a luta pela democracia até o final”, e que o sufrágio universal, e não a democracia dos conselhos operários, é o princípio organizador da sociedade de transição ao socialismo.

Para introduzir a polêmica, começaremos com uma breve síntese sobre o conceito de “ditadura do proletariado”.

A ditadura do proletariado, a democracia dos conselhos operários e a extinção do Estado

Após a experiência stalinista, a ditadura do proletariado foi identificada automaticamente com a ditadura do partido único. Esta falácia faz necessário então restabelecer seu significado para a teoria revolucionária, que como veremos está associada com a democracia majoritária e a extinção do Estado. Na tradição do marxismo revolucionário, a ditadura do proletariado é equivalente a um novo tipo de democracia, a democracia proletária baseada em órgãos de autodeterminação de massas, quer seja vista como “questão estratégica”, isto é, não colocada imediatamente para a prática política, como em

Marx antes da Comuna de Paris, quer seja como forma concreta da organização da sociedade pós-capitalista, que tende ã extinção de toda a forma de Estado.

Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx expõe a definição mais concreta de como se organizaria a “classe operária como classe dominante”, na qual distingue claramente um período de transição entre a derrubada da burguesia e o advento de uma sociedade comunista, e chama a este regime-estado de transição de “ditadura revolucionária do proletariado”. [29]

Esta fase transitória, que Marx define como “a primeira fase da sociedade comunista”, não é o “reino da liberdade”. A organização econômica da sociedade ainda se rege pela falsa igualação entre indivíduos desiguais, segue vigente o direito burguês, e cada indivíduo recebe segundo o que proporciona ã sociedade. Como explica Marx, “O direito nunca pode ser superior ã estrutura econômica da sociedade e seu desenvolvimento cultural que o condicionam”. Na perspectiva comunista, este Estado que se erigia como a organização do proletariado como classe dominante e se propunha a reorganizar a sociedade através da expropriação da burguesia e da coletivização dos meios de produção, estava condenado a se extinguir, junto com os antagonismos de classe.

Sobre a base desta definição de Marx, de um Estado transitório que leva em si mesmo os germes de sua própria extinção, Lênin elaborou em O Estado e a Revolução sua concepção de “semi-estado proletário”, que após a derrubada da burguesia. Lênin demonstra como o desenvolvimento da técnica alcançado sob o capitalismo e o avanço cultural das massas, permitia simplificar ao extremo as tarefas de “controle da contabilidade” que o Estado devia desempenhar, e portanto punha a administração ao alcance da maioria dos trabalhadores. Para Lênin a redução da jornada de trabalho traria consigo a planificação democrática da economia, o programa democrático radical, baseado nos critérios de elegibilidade e revogabilidade de delegados, a liquidação dos privilégios materiais, e o armamento geral da população, iam garantir que o Estado se encaminhasse em direção a sua extinção.

Mas é Trotsky quem coloca desde a primeira revolução russa de 1905 mais concretamente como se perfilaria o novo poder operário, assinalando o papel dos soviets como embrião do Estado no período de transição. Em Conclusões de 1905, Trotsky defende que:

“O soviet organizava as massas operárias, dirigia as greves e manifestações, armava os trabalhadores e protegia a população contra os pogroms.(....) Se os proletários, por sua vez, e a imprensa reacionária pela sua, deram ao soviet o título de “governo proletário” foi porque de fato esta organização não era outra coisa que o embrião de um governo revolucionário (...) Ao ser o ponto de concentração de todas as forças revolucionárias do país, o soviet não se dissolvia na democracia revolucionária, era e continuava sendo a expressão organizada da vontade de classe do proletariado.” [30]

Essa visão premonitória de Trotsky do papel que teriam os órgão de autodeterminação de massas a partir do Soviet de Petrogrado, se viu amplificada na revolução de fevereiro de 1917 com a instauração de um regime de duplo poder. Este papel dos soviets como a base “enfim encontrada” do novo Estado proletário, se expressou na consigna bolchevique de “Todo poder aos soviets” que culminou com a vitória da revolução de outubro de 1917.
Segundo o historiador E.H Carr,
“O termo “ditadura do proletariado”, aplicado pelos bolcheviques ao regime estabelecido por eles na Rússia depois da revolução de outubro, não comportava implicações constitucionais específicas quaisquer (...) Os ecos emocionais da palavra “ditadura” associada com a idéia de mando de uns poucos ou de um somente, estava totalmente ausente das mentes dos marxistas que empregavam a frase. Pelo contrário, a ditadura do proletariado seria o primeiro regime na história em que o poder seria exercido pela classe que constituía a maioria da população, condição que havia de cumprir-se na Rússia levando a massa camponesa a se unir com o proletariado industrial. (...) Longe de ser o domínio da violência, prepararia o caminho para a desaparição do emprego da violência como sanção social, isto é, para a desaparição do Estado.” [31]

Este projeto não pode se realizar plenamente já que pouco depois da tomada do poder sobreveio a guerra civil que obrigou a tomar medidas excepcionais, e reforçou a centralização do poder político e militar no Estado e na direção bolchevique para defender a revolução [32]. Entretanto, o balanço que se impôs não foi o dos primeiros anos da revolução, senão o da degeneração burocrática da experiência russa. Como bem disse F. Ollivier, “os stalinistas utilizaram a noção de ditadura do proletariado para justificar a destruição de todo rastro de vida democrática na classe operária e na sociedade russa”. [33]

Se a teoria marxista foi degradada a um determinismo vulgar, a ditadura do proletariado foi tomada como sinônimo de ditadura de partido único, que tinha o monopólio sobre o Estado e a política.

A LCR e a luta pela “democracia até o final”

No debate em torno do livro Révolution! 100 mots pour changer le monde de O. Besancenot [34], Antoine Artous defende que se poderia sintetizar sua nova definição da revolução como “a luta pela democracia até o final” e “não qualquer democracia, senão uma democracia cujo princípio de base é o sufrágio universal”. Agrega que:

“se há que falar da novidade deste livro em relação ás tradições passadas da Liga [35] é, para dizer de maneira lapidar, o abandono de uma problemática geral de “democracia dos conselhos operários” (ou democracia soviética) em proveito de uma democracia cujo princípio de base é o sufrágio universal, ainda quando - naturalmente - ela não se reduz a este princípio, e que na sociedade de transição se trataria de uma “democracia organizada em torno das assembleias nacionais, regionais e locais, eleitas pelos sufrágio universal e proporcional, que represente realmente a cidadãos e produtores”.

Para evitar os efeitos “corporativos” que teria uma democracia baseada nas unidades produtivas, Artous coloca que:

“é necessário imaginar uma democracia funcionando sobre a base de um duplo sistema de representação: um baseado na eleição de cidadãos através do sufrágio universal das assembleias, e outro tendendo a representar do ponto de vista “socioeconômico” os assalariados e as camadas populares que compõem a imensa maioria da população. Sem entrar em detalhes (bastante complicados, e ademais, variáveis segundo o contexto) desta segunda forma de representação, pode-se imaginar então um sistema de dupla assembleia. Mas, em caso de conflito há que saber bem quem resolve. E isto não pode ser feito mais que sobre a base de um voto dos indivíduos como cidadãos, então com sufrágio universal no sentido clássico; por exemplo, um referendo.” [36]

Defender que a revolução é “a luta pela democracia até o final” evidentemente recria a ilusão de que os conflitos sociais e os antagonismos de classe podem ser resolvidos radicalizando os métodos da democracia. Com isso a LCR não apenas dilui toda a necessidade da centralidade dos trabalhadores na luta contra a burguesia, mas a idéia mesma de revolução como expressão de enfrentamento agudo de classes.

A LCR parece estar apropriando-se da conclusão a que E. Laclau chegava há vinte anos em seu livro Hegemonia e estratégia socialista, de que o “socialismo” é um aspecto da “revolução democrática”. [37]

Os marxistas revolucionários utilizamos as demandas democráticas do movimento de massas, inclusive as democrático-formais, quando mantêm a sua “força vital”, para enfrentar o Estado capitalista, que crescentemente cerceia estas liberdades. Mas o fazemos para superar os marcos dessa miserável democracia burguesa, que pretende ocultar seu caráter de classe através da igualdade política formal, e deste modo buscamos aproximar as massas a um novo tipo de democracia, a de organismos de autodeterminação que “esbocem os traços da sociedade futura”, como diz a LCR, ou se transformem no embrião do novo poder operário, como defendia Trotsky acerca dos soviets de 1905.

Mas não há passo democrático entre a sociedade capitalista e a “sociedade futura” sem a destruição violenta do Estado burguês, o que parece ter sido abandonado pela LCR. O que aparentemente também é ignorado pela LCR é que toda luta revolucionária supera as formas democráticas burguesas de representação, justamente porque implica a entrada em cena de um novo poder constituinte que não pode se realizar com os mesmos métodos do poder constituído que pretende derrotar. O papel dos conselhos como expressão revolucionária de poder constituinte das massas foi percebido inclusive por teóricos liberais como H. Arendt que assinala que:

“desde as revoluções do século XVIII todo grande levantamento tem desenvolvido os rudimentos de uma forma de governo inteiramente nova, que surgiu independente de todas as teorias revolucionárias anteriores, diretamente do curso da mesma revolução, isto é, das experiências da ação e da resultante vontade dos executantes para participar no desenvolvimento posterior dos assuntos públicos. Esta nova forma de governo é o sistema de conselhos.” [38]

Ademais a LCR parece estar imaginando uma sociedade de transição na qual logo após a expropriação da burguesia, desapareceram as classes sociais e a ameaça da contrarrevolução, tanto a nível nacional como internacional e que, portanto não é necessário manter a centralidade da classe operária e sua organização soviética que possa defender a revolução. Mas a realidade é que na sociedade de transição as classes não desaparecem, já que com a tomada do poder se exacerbam as contradições, e o Estado operário não só deverá se defender frente ã reação interna, como também resistir ã eventual agressão externa. Por isso o sistema de “dupla representação” que propõe a LCR, no qual a classe trabalhadora é diluída e atomizada na cidadania, e no qual em caso de “conflito de interesses” - e num Estado de transição os “conflitos de interesses” chave são os que se referem ã defesa frente a ofensivas contrarrevolucionárias - este se resolveria pelos mecanismos burgueses de sufrágio universal, é a liquidação de fato e de direito da ditadura do proletariado. [39]

As medidas de “democracia direta” que a LCR propõe, como o sufrágio universal e o referendum, longe de ser uma prevenção contra a burocratização, usualmente são instrumentos a que recorrem os regimes bonapartistas plebiscitários. O próprio Stalin incluiu na constituição “soviética” de 1936 o sufrágio universal como “princípio eleitoral”, logo após ter liquidado a democracia soviética por meio de uma contrarrevolução e em plenos processos de Moscou. Trotsky ressaltava que a constituição stalinista:

“difere da antiga na substituição do sistema eleitoral soviético, fundado nos grupos de classe e de produção, pelo sistema da democracia burguesa, baseado no chamado “sufrágio universal igual e direto” da população atomizada. Em poucas palavras estamos diante da liquidação jurídica da ditadura do proletariado.” [40]

Baseada no “sufrágio universal”, a democracia futura imaginada pela LCR, e a suposta “combinação de sistemas de representação” é na realidade a liquidação do sistema de representação soviético através do qual o classe operária exerce a sua hegemonia. [41]

Na realidade, a expressão mais concreta deste “sistema” proposto pela LCR, baseado em “assembleias locais ou regionais” não é nenhum regime de transição ao socialismo. Em seu “esboço” de sociedade futura podemos ver a experiência da “democracia participativa” e “orçamento participativo” que levou adiante sua organização irmã em Porto Alegre. O que para Daniel Bensaid constitui um tipo de “duplo poder institucional” [42], não é mais que uma adaptação ao “possibilismo” reinante, e um exercício aberto de reformismo municipalista que deixa intacto o poder dos capitalistas, demonstrando que esta “democracia radical” se detém “ante o limite da propriedade”, isto é, que não leva a nenhuma revolução social.

Cidadãos ou produtores?

Retomando o problema da relação entre emancipação política e emancipação social, Artous incorpora dentro de um esquema teórico marxista a separação radical arendtiana da esfera política, tornando sua a idéia de que em última instância a liberdade se realizaria através da ampliação dos direitos políticos aos cidadãos.

Nas conclusões de seu livro Marx, L’Etat et la politique, defende que não se pode pensar:

“a relação entre a emancipação política e a emancipação social como uma simples sucessão cronológica. A segunda respondendo ã primeira para traduzir-se na desaparição do poder político. A emancipação política não é uma mera etapa da história moderna, senão um momento repetido sem cessar - porque sem cessar é questionado - de uma instituição do social sobre bases democráticas.” [43]

Artous se refere a uma “subestimação do momento jurídico da emancipação” em Marx e retoma da teoria política de Etiene Balibar o conceito de “égaliberté”, como (aparência de) universalidade, como igualdade de princípio de todos os humanos por serem falantes, ou em outras palavras, como demanda incondicional-impossível-infinita de igualdade e liberdade que tem o potencial de fazer estalar a ordem positiva estatal.

Em um trabalho posterior [44] Artous postula para a sociedade de transição um dualismo entre “produtor” e “cidadão”. Ainda que esclareça que seu ponto de vista é a emancipação econômica como condição para a emancipação política, com o que a “cidadania” perderia seu caráter de igualdade formal que mantém sob o capitalismo, este dualismo entre “produtor e cidadão” remete a uma ruptura da dialética entre democracia econômica e democracia política.

Em sua visão a democracia soviética como democracia dos produtores, resultaria no risco de fusionar “a economia e a política”, o que limitaria os efeitos da liberdade, já que de acordo com sua tese a produção estatizada mantém a separação entre os produtores diretos e os meios de produção, o que gera inevitavelmente uma esfera autônoma de planificação da produção, que poderia derivar em um novo tipo de dominação [45]. Isto conduz inexoravelmente a afirmar que na ditadura do proletariado - já não em sua degeneração stalinista - se incubam os germes que podem resultar num regime totalitário. É indubitável que na sociedade de transição o trabalho não é livre, e a falsa igualdade do direito burguês ainda rege. Mas isso não implica a consolidação necessária de uma “burocracia do saber”.

Artous parece dar como fato que a democracia soviética “se detém na porta da fábrica” e que não há possibilidade de planificação democrática da economia, considerando como um sentido inevitável o surgimento de uma burocracia ligada ã produção [46].

Ao contrário de Artous, para Trotsky a democracia política está indissoluvelmente ligada ã democracia econômica. No livro A Revolução Traída, antecipando em várias décadas a débâcle econômica dos países stalinistas na década de 1970, defendia que

Na economia nacionalizada, a qualidade supõe a democracia dos produtores e dos consumidores, a liberdade de crítica e de iniciativa, coisas incompatíveis com o regime totalitário do medo, de mentira e da adulação. (...) A democracia soviética não é uma reivindicação política abstrata ou moral. Chega a ser um assunto de vida ou morte para o país [47].

Mas para Artous, a forma de exercer os direitos políticos é dar autonomia ã cidadania em relação ã esfera da produção. Partindo desse ângulo critica a Constituição russa de 1918, porque ainda que esta crie um conceito de cidadania que não existia sob o czarismo [48], dando-lhe “igualdade de direitos aos cidadãos, independentemente de sua raça ou nacionalidade”, ele está ligado “a um status social e não ao direito do homem em geral”. Sua conclusão é que

“Dizer que a cidadania é um atributo da pessoa, e não de um grupo social de assalariados ou produtores é repetir, de maneira distinta, que faz falta igualmente liberar-se do trabalho (...) é afirmar que o objetivo central da emancipação é colocar a política no centro: isto é, a instituição de uma dimensão particular do social, que para além da esfera das necessidades, permita aos homens que vivam juntos.” [49]

Artous imagina a política, como o espaço para “estarem juntos”, ã maneira de H. Arendt. Mas com exceção da sociedade libertada completamente do “reino da necessidade”, isto é, no comunismo, os homens “não podem viver juntos” para além da “esfera das necessidades” apenas por meios políticos. Trotsky expôs de maneira irrefutável como a própria burocracia stalinista tinha uma raiz profunda na “esfera da necessidade” da atrasada Rússia. O que não só colocava com mais agudeza a planificação democrática, como também a estratégia internacional da revolução.

Classe, soviet e partido

As teorias “anti-essencialistas”, baseadas na caricatura stalinista, afirmam que para o marxismo há uma correspondência transparente e unívoca entre o proletariado como sujeito social e sua representação política, e que isso se traduz imediatamente em “ditadura de partido único”.

Isto é uma deturpação grosseira. O marxismo clássico construiu historicamente a complexa relação entre classe e partido revolucionário, elevando a teoria da organização ás experiências mais importantes do proletariado ao longo de sua existência. O stalinismo não é mais que uma perversão desta relação.

A concepção de partido em Marx estava marcada pela transformação de “classe em si” em “classe para si” [50]. No Manifesto Comunista defendia que “a organização do proletariado em classe” era equivalente a sua “organização em partido político”, o que queria dizer que a luta de classes se transformava em uma luta política do “partido proletário” contra o “partido da burguesia”. Neste sentido:

“os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos demais partidos de trabalhadores. Não têm interesses que os separam do conjunto do proletariado. (...) Os comunistas somente se distinguem dos demais partidos proletários em que, por um lado, nas lutas nacionais. (...) fazem valer os interesses comuns a todo o proletariado, e por outro lado em que nas diversas fases do desenvolvimento pelas quais passa a luta entre o proletariado e a burguesia, representam sempre os interesses do movimento em seu conjunto.” [51]

Os comunistas constituíam “o setor mais resoluto” dos partidos operários.

É com respeito a essa concepção de continuidade entre a atividade de luta das massas operárias e sua constituição política que Lênin introduz uma “inovação”, como a chama Artous, na teoria de partido com sua concepção expressa no livro Que Fazer? escrito em 1902. Ainda que este folheto ainda seja objeto de polêmicas, não vamos nos referir aos múltiplos problemas que levanta e ás críticas que suscita [52], mas assinalar que o central para Lênin, partindo de que não havia uma continuidade orgânica entre a luta econômica e a luta política, era fundamentar que não havia uma relação mecânica e transparente entre a classe operária de conjunto e sua representação política. Lênin o expressou cruamente em sua luta contra o economicismo, afirmando que o socialismo não surgia espontaneamente da luta de classes, mas que a ideologia espontânea do proletariado era sindicalista e, portanto, burguesa. Isto tornava necessário uma organização que nucleasse os elementos mais conscientes da classe operária e da intelectualidade e que mantivesse autonomia política com respeito ã classe de conjunto e a suas instituições de luta econômica, dedicando-se profissionalmente ã revolução. Rompia assim com uma visão evolutiva e linear do partido, mais próxima da socialdemocracia alemã, na qual o partido revolucionário abarcava em seu seio outras instituições de classe como os sindicatos, em uma relação hierárquica.

Se na concepção original de Lênin de 1902 não estava estabelecida em seu justo termo a relação entre a auto atividade das massas e o partido, a revolução de 1905 o levou a sintetizar esta relação para a luta pela tomada de poder. Pouco depois do levantamento de São Petersburgo, discutindo contra as posições incorretas que o Partido Bolchevique sustentava com respeito ã potencialidade dos soviets, Lênin escreve: “Creio que o camarada Radine não tem razão quando (...) coloca o problema do seguinte modo: Soviet de deputados operários ou partido? (...) Eu penso que não é assim que se deve colocar a questão, e que a resposta deve ser forçosamente: ‘Soviet de deputados operários e partido’”. Como via Lênin essa relação? O soviet constituía o órgão mais amplo de frente única de massas e “reunia a todas as forças realmente revolucionárias” [53]. Não era um “apêndice da socialdemocracia”, nem esta tinha que substituir o soviet, sendo que sua tarefa deveria ser lutar pela sua direção e pela hegemonia proletária no mesmo.
De acordo com esta observação de 1905, finalmente a fórmula política desta relação adotada por Lênin é que “a ditadura é exercida pelo proletariado organizado em soviets e dirigida pelo partido comunista bolchevique”.

Se foi Lênin quem introduziu a primeira “ruptura” com uma visão de identidade entre partido e classe que predominava na socialdemocracia clássica, será Trotsky em sua maturidade política [54] quem termina de estabelecer a relação dialética entre os distintos setores da classe trabalhadora, os organismos de frente única, o papel dirigente do partido revolucionário, antes e depois da tomada do poder, e o regime de pluripartidarismo soviético como forma política da ditadura do proletariado.

Em A Revolução Traída Trotsky defende que a ilegalização dos partidos esserista e menchevique, e posteriormente a proibição das frações ao interior do partido bolchevique, não estiveram isentas de consequências políticas. Mas o que para o governo bolchevique era uma “medida provisória ditada pelas necessidades da guerra civil, do bloqueio, da intervenção estrangeira e da fome” [55], Stalin havia transformado em norma, identificando o partido com a classe. Assim, o regime de partido único se baseava em um raciocínio mecânico de que com “a realização do socialismo” as classes haviam desaparecido e, portanto, os partidos. Trotsky, partindo de que a tomada de poder por si mesma não implica na abolição das classes sociais, lhe responde:

Na realidade as classes são heterogêneas, marcadas por antagonismos interiores, e só chegam a fins comuns pela luta entre as tendências, grupos e partidos. Se pode conceder com algumas reservas que um partido é uma “fração de classe”. Mas como uma classe é composta de numerosas frações - umas olham para frente e outras para trás - uma mesma classe pode formar vários partidos. Pela mesma razão, um partido pode se apoiar sobre frações de diversas classes. Não se encontrará em toda a história política um só partido representante de uma classe única, a menos que se consinta em tomar por realidade uma ficção policial.

E termina dizendo sobre Stalin que:

“seu raciocínio não estabelece que não possa haver partidos diferentes na URSS; senão que não pode haver partidos, pois onde não há classes, a política não tem nada a fazer.” [56]

A partir disso Trotsky desenvolve o pluripartidarismo soviético como norma programática. No Programa de Transição defende que:

a burocracia tem substituído os soviets, como organismos de classe, pela ficção dos direitos eleitorais universais, ao estilo de Hitler e Goebbels. É preciso devolver aos soviets não apenas sua livre forma democrática, como também o seu conteúdo de classe. Assim como em outro tempo não se permitia ã burguesia e aos kulaks ingressar nos soviets, agora é necessário expulsar a burocracia e a nova aristocracia (...) A democratização dos soviets é impossível sem a legalização dos partidos soviéticos. Os próprios operários e camponeses, com seus votos livres, apontarão os partidos que reconhecem como partidos soviéticos.” [57]

Artous assinala corretamente que Trotsky foi “o único dirigente marxista da revolução russa, a formular (o pluripartidarismo soviético) entre as duas guerras mundiais” e que esta constatação é inclusive mais surpreendente “quando em Gramsci, como observa Perry Anderson, a reflexão sobre a guerra de posição (...) vai ao encontro de uma visão autoritária do partido”. Esta concepção de Trotsky que surge da diferenciação social, não se limita apenas ao regime político de uma sociedade pós-capitalista, pois “a posição que desenvolverá Trotsky sobre o multipartidarismo é então o fruto de uma reflexão que não diz respeito unicamente ã evolução da URSS, mas que também aponta seu trabalho de elaboração sobre as perspectivas estratégicas de luta pelo poder nos países da Europa ocidental. [58]

Mas seja na sociedade capitalista ou na sociedade de transição, a multiplicidade de partidos nos soviets, ou nos organismos da classe operária e das massas populares, não implica de maneira alguma que o partido revolucionário renuncie à luta pela direção em favor de um consenso entre os distintos partidos. Por isso é incorreta a apreciação de Artous de que nas formulações maduras de partido, Trotsky volte “em parte ã sua visão de partido-consciência de seus textos de juventude” [59], o que levaria a conclusão de que não há diferenças de qualidade entre um partido proletário revolucionário, e os partidos ou frações centristas ou inclusive reformistas, já que de fato todos aportariam com suas posições para que a classe alcance seus “fins comuns”, o que transformaria a política em uma frente única permanente.

Para Trotsky o partido revolucionário busca “arrastar ao movimento revolucionário (...) a todos os setores do proletariado, todas as suas camadas, profissões e grupos” mediante um sistema de reivindicações transitórias, dirigindo as massas ã tomada de poder político e ã instauração de um regime de democracia soviética. Nesta tarefa deve enfrentar a luta política com outras tendências, pois ainda que:

“o proletariado é a classe menos heterogênea da sociedade capitalista (...) a existência de camadas sociais, como a aristocracia operária e a burocracia, basta, entretanto para nos explicar a dos partidos oportunistas que se transformam, pelo curso natural das coisas, em um dos meios da dominação burguesa.” [60]

A classe operária deve conquistar a hegemonia sobre as outras classes exploradas antes da tomada do poder, já que, como assinala Trotsky em História da Revolução Russa:

“não há nenhuma classe histórica que passe da situação de subordinada para a de dominadora subitamente, do dia para a noite, ainda que esta noite seja a da revolução. É necessário que já na véspera ocupe uma situação de extraordinária independência com respeito ã classe oficialmente dominante; mais ainda, é preciso que nela se concentrem as esperanças das classes e das camadas médias, descontentes com o existente, mas incapazes de desempenhar um papel próprio.” [61]

Isto volta a colocar a necessidade de restabelecer a dialética entre os órgãos de autodeterminação de massas e o partido revolucionário, que desde antes da revolução desenvolva as tendências operárias ã constituição de embriões de duplo poder, e que vá preparando as bases do novo poder operário.

Epílogo. Mais uma vez sobre “liberdade e liberação”

A liquidação da experiência soviética pelo stalinismo e as revoluções do pós-guerra, dirigidas majoritariamente por partidos burocráticos (camponeses ou guerrilheiros) favoreceram a ideia liberal de que a revolução social só podia realizar certa “liberação”, mas nunca a “liberdade”.

Nos últimos anos, após o colapso do stalinismo, predomina no campo das ideias uma posição que, para dizê-lo de maneira esquemática, é o reverso da anterior, isto é, uma reafirmação unilateral do outro polo da equação, de que é possível a “liberdade” independentemente da “liberação”. Isto se expressa em duas tendências na teoria política: a “democracia plural” por um lado, e o “autonomismo” por outro, que negam a emancipação social como base da emancipação política, por dois caminhos aparentemente antagônicos.

Como um ilusionista, Negri imagina a “imanência” do político no social, isto é, que a esfera político-estatal está deixando de existir e que o social - a “multidão” - como agregado de singularidades, atua sem que haja nenhuma instância de representação política. Daí que considere “superadas” tanto a forma de “soviet”, já que a democracia seria “direta” e exercida por cada singularidade da multidão, como a forma “partido”, e que anuncie a realização do comunismo sem mediar nenhuma transição. Como este “reino da liberdade” não existe exceto nos livros de Negri, e a “horizontalidade” do social tem uma expressão “vertical” na política, negar a necessidade de uma representação política revolucionária dos trabalhadores e dos oprimidos, leva inexoravelmente a optar por algum “mal menor” dentre os tantos que oferece o sistema político “realmente existente” - seja Lula, Kirchner, ou algum outro.

A esta “imanência” autonomista Laclau opõe o “momento da articulação política”, assinalando que “um desenvolvimento puramente pluralista do social que deixa de lado o momento da articulação política, ainda quando dê lugar a lutas sociais de uma profundidade crescente, a longo prazo pode ser politicamente estéril” [62]. Mas para Laclau esta “articulação” ou “hegemonia” se baseia em sujeitos sociais fragmentados, cujas identidades contingentes e precárias se constroem por fora das relações de produção e, portanto, só podem derivar em “blocos históricos” policlassistas, ou governos burgueses “progressistas”.

Contra essa visão resignada a não transpor o umbral da propriedade capitalista, a classe trabalhadora deu mostras no século passado de que em suas forças reside um novo poder constituinte. Soviet (conselhos) e partido revolucionário: eis aqui os termos insubstituíveis da equação que o conforma. Uma relação que encontrou na obra do Trotsky maduro sua mais acabada formulação programática, que é a que devemos retomar para as revoluções do século XXI, para que a “liberação” seja o caminho para o pleno exercício da “liberdade”, o que para nós, como para os clássicos do marxismo, significa nem mais nem menos que a sociedade comunista.


NOTAS

1 “Quiçá seja lugar comum afirmar que liberação e liberdade não são a mesma coisa, que a liberação é possivelmente a condição da liberdade, mas que de nenhum modo conduz diretamente a ela; que a ideia de liberdade implícita na liberação só pode ser negativa e, portanto, que a intenção de liberar não coincide com o desejo de liberdade”, Hanna Arendt, Sobre la revolución, Alianza Editorial, Buenos Aires, 1992, p. 30.

2 A partir da organização política da polis grega, H. Arendt reflete sobre a separação da esfera política como espaço do público, com respeito ã esfera privada, como o espaço da necessidade, a qual pertencia a economia e a vida familiar. Os cidadãos gregos que participavam da vida política eram os homens livres, isto é, os que não estavam atados ã necessidade e, portanto, se viam liberados do trabalho, que realizavam os escravos. Enquanto que a esfera privada - doméstica - está regida pela necessidade natural de sobrevivência individual e da espécie, a esfera da polis, era a da liberdade. Em seu livro “A condição humana” coloca que a “necessidade é um fenômeno pré-político, característico da organização doméstica privada, e que a força e a violência se justificam nesta esfera porque são os únicos meios para dominar a necessidade - por exemplo, governando aos escravos - e chegar a serem livres (...) a violência é o ato pré-político de liberar-se da necessidade para a liberdade do mundo”. Hanna Arendt, La condición humana, Ed. Pai-dos, Buenos Aires, 2003, p. 43-44

3 Hanna Arendt, op. cit., p. 65. Toni Negri responde muito corretamente a esta falsa dicotomia própria da teoria liberal, defendendo que “Depois de Marx e Lênin não é possível falar de liberdade política sem falar de liberdade econômica, de livre produção, de trabalho vivo como fundamento político. A liberdade se converte em liberação, a liberação é poder constituinte”. Antonio Negri, El poder contituyente. Ensayos sobre as alternativas de la modernidad, Ed. Libertarias/Prodhufi, Buenos Aires, 1994 p. 367

4 H. Arendt abre seu livro Sobre la Revolución com a seguinte frase: “Guerras e revoluções têm caracterizado até agora a fisionomia do século XX. Parece que se os acontecimentos se precipitaram, a fim de tornar real a profecia antecipada por Lênin”. Alianza Editorial, Buenos Aires, 1992, p. 11.

5 Zigmund Bauman, En busca de la política, Fondo de cultura Económica, Buenos Aires, 2003, pág. 7. A frase “não há alternativa” se tornou famosa graças Margareth Thatcher. Com seu sarcasmo habitual Slavoj Zizek diz “já ninguém mais considera seriamente alternativas possíveis ap capitalismo, enquanto a imaginação popular é perseguida pelas visões do iminente ‘colapso da natureza’, do fim de toda a vida na Terra; parece mais fácil imaginar o ‘fim do mundo’ que uma transformação muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse ‘o real’ que de alguma maneira sobreviverá, inclusive sob uma catástrofe ecológica global”. Ideologia. Un mapa de la cuéstion, Fondo de cultura econômica, Buenos Aires, 2003, p. 7.

6 Em algum momento estas teorias deveriam se enfrentar ã prova da realidade. Por exemplo, caberia perguntar a Holloway porque o zapatismo não apenas “não transformou o mundo sem tomar o poder”, mas tampouco transformou as condições estruturais dos explorados no México, e nem sequer em Chiapas; ou a Laclau porque após 20 anos do seu livro Hegemonia e Estratégia Socialista, se o poder é um significante vazio aberto a ser “hegemonizado” por qualquer grupo identitário, sempre o “hegemoniza” a burguesia.

7 “O problema do partido e da democracia dos trabalhadores deve inserir-se no terreno ontológico, referindo a uma ontologia que deixou para trás definitivamente toda a diferença entre o social e o político. Encontrar o político no social não é identificar uma sede utópica; pelo contrário, isso produz uma nova definição do social (...) Em outra época, o discurso da emancipação apontou em direção a um objetivo utópico de acordo com a técnica da progressiva sobredeterminação do desenvolvimento, do social ao político, até conseguir que transbordasse este para retornar ao social; na atualidade este discurso, tendo se convertido gradualmente e, conglomerado mistificado de toda hipótese de medida e hierarquia, fundado na separação do político e do social tem se esgotado, deixando espaço para as práticas de liberação”, Antonio Negri, “Interpretación de la situación de clase hoy: aspectos metodológicos” in Félix Guattari & Antonio Negri, Las verdades nómadas & General Intellect, poder constituyente, comunismo, Ed. Akal, Madrid. 1999 p. 112-113.

8 Por exemplo, dois dos principais expoentes das teorias da democracia como C. Castoriadis e C. Lefort provém do trotskismo. Iniciaram criticando a definição de “estado operário degenerado”, cunhando no caso de Castoriadis uma concepção de “capitalismo burocrático” para definir a URSS. Posteriormente romperam ambos com o marxismo e deixaram praticamente de mencionar, ainda que fosse por uma questão de honestidade histórica, a luta de Trotsky contra Stalin para defender a “tese” que havia se tornado lugar comum, de que o partido bolchevique continha o germe do stalinismo.

9 O “agonismo” é o fundamento da democracia plural. O termo remete a uma luta permanente, que no terreno político, surge da inevitabilidade dos antagonismos, mas os competidores são “adversários” e não “inimigos”, porque apesar de seus antagonismos compartilham de uma mesma ética democrática. Chantal Mouffe foi quem mais tem elaborado esta teoria da democracia.

10 O debate girou em torno de uma série de artigos publicados por Edouard Bernstein na revista Die Neue Zeit entre 1896 e 1898. Em 1899 foram recompilados por seu autor no livro Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie (as premissas do socialismo e as tarefas da socialdemocracia), traduzido para o inglês em 1909 sob o título de Evolutionary Socialism. No momento em que começou esse debate, Bernstein gozava de um considerável prestígio dentro da social democracia alemã, sobretudo porque era, junto com Kautsky, um dos discípulos e amigos mais próximos de Engels. No debate intervieram os dirigentes e teóricos mais importantes da II Internacional, entre eles Kautsky, Rosa Luxemburgo, Labriola, Plekhanov e Parvus.

11 Sem mediar nenhum esforço demonstrativo, dado que precisamente o século XX não tem confirmado as teses de Bernstein, Laclau afirma que “Bernstein entendeu claramente que os progressos futuros na democratização do Estado e da sociedade dependeriam de iniciativas autônomas que partiriam de diferentes pontos do tecido social, combinado de que os operários deixavam de ser “proletários” e passavam a ser “cidadãos”(...) A visão de Bernstein era, sem dúvida, excessivamente simplista e otimista, mas suas predições foram fundamentalmente corretas”. “Postmarxismo sin pedido de disculpas” (com C.Mouffe) in Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo, Ediciones Nueva Visión, Argentina, 2000, p. 143.

12 Edouard Bernstein, Evolutionary Socialism. Todas as citações de Bernstein estão traduzidas do inglês da versão disponível em www.marxists.org.

13 Os principais fundamentos desta crítica já haviam sido defendidos por Böhm-Bawerk. Bernstein na verdade, como coloca em seu livro, não faz uma crítica original, mas retoma elementos que já tinham sido assinalados, reservando para si o mérito somente de “por de manifesto não algo desconhecido, senão o que já tinha sido dito até o momento”.
As leis e tendências econômicas do capitalismo elaboradas por Marx, como a lei do valor, têm sido criticadas quase desde a sua formulação. Os teóricos pós-estruturalistas em sua “desconstrução” do marxismo, não têm se dado ao trabalho de estudar, por exemplo, o problema da lei do valor. Exaltando a “exorbitância do político” têm decidido não abordar as tendências do capitalismo atual, aceitando sem mais a tese de “fim do trabalho”. A. Negri é quem, se apoiando em elemento reais que negam parcialmente a lei do valor como medida, tem questionado integramente este aspecto da teoria marxista.

14 Para uma discussão sobre estas correntes ver “Desafiando a miséria do possível. Discussões a partir de Trotsky com as idéias dominantes de nossa época”, nesta mesma revista.

15 Este horizonte reformista é compartilhado por um amplo leque que abarca algumas administrações de governos locais ou municipais, como havia sido a prefeitura de Porto Alegre, ONG, grupos políticos e associações civis como a ATTAC. Estes setores que defendem distintos tipos de reformas, sejam em nível estatal ou financeiro, terminaram hegemonizando o movimento conhecido primeiro como “no global” e rebatizado como “altermundista” nucleado no Fórum Social Mundial.

16 A tal ponto cria no papel “civilizatório” do capitalismo ocidental, que neste mesmo livro inclui um capítulo no qual fundamenta o caráter progressivo do colonialismo, se referindo em particular aos efeitos benéficos da colonização do Marrocos.

17 Para Bernstein “pelo nível alcançado no desenvolvimento econômico, os fatores ideológicos e éticos têm maior espaço para a atividade independente. A evolução econômica perde parte do poder de ditar a forma ã evolução de outras tendências sociais”. No caso de Laclau e das teorias pós-estruturalistas em geral, se trata de uma epistemologia chamada “anti-essencialista”, regida pela contingência, cujos fundamentos estão na teoria lingüística e na concepção do social como discurso. Para uma apreciação crítica mais profunda, ver “La impostura postmarxista”, EI 20.

18 Em um artigo, Chantal Mouffe, colaboradora de Laclau, defende que “é importante distinguir a democracia liberal do capitalismo democrático e entendê-la em termos do que a filosofia política clássica conhece como regime, uma forma política de sociedade que se define exclusivamente no plano político, deixando de lado sua possível articulação com um sistema econômico”, Chantal Mouffe, “La paradoja democrática”, Editorial Gedisa, Barcelona, 2003, p. 36.

19 Ernesto Laclau, Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo, Ed. Nueva Visión, Buenos Aires, p. 144.

20 E continua defendendo “A antiga sociedade grega foi uma democracia escravista. O mesmo se pode dizer, em certo sentido, das democracias britânica, holandesa, francesa e belga. Os Estados Unidos não tem colônias patentes, mas tem América Latina, e o mundo inteiro é uma espécie de colônia para os Estados Unidos, para não falar de que possuem o continente mais rico e se desenvolveu sem tradição feudal”. Leon Trotsky, Discusiones sobre el programa de transición, Ediciones Crux, p. 157.

21 Conhece-se por este nome o projeto de programa que constituiu a base da discussão do congresso de unificação, que se realizou em Gotha em 1875, entre o Partido Operário Socialdemocrata e a União Geral de Operários Alemães, do qual surgia o Partido Socialista Operário da Alemanha. Marx criticou duramente este programa que encarnava mais a herança de Lasalle que o marxismo revolucionário. Sobre o problema das classes, o programa de Gotha defendia que o conjunto das classes sociais constituía um bloco reacionário com respeito ao proletariado.

22 A referência à lei do desenvolvimento desigual e combinado pode ser lida em distintos textos de Laclau, por exemplo, em Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo defende que “a tendência a fazer do deslocamento estrutural o eixo mesmo da estratégia política será acentuada e desenvolverá boa parte de sua riqueza potencial na obra de Trotsky. Para Trotsky a possibilidade mesma da ação revolucionária depende dos desníveis estruturais. Consideremos em primeiro termo a formulação da perspectiva permanentista em seus escritos em torno da revolução de 1905 (...) O desajuste estrutural entre burguesia e proletariado estava na base da impossibilidade de que a burguesia pudesse liderar a revolução democrática. Esta última seria, portanto hegemonizada pelo proletariado e, na concepção de Trotsky, isto implicava na necessidade de ir mais além das tarefas democráticas e orientar-se em uma direção socialista”, op. cit., p. 63-64.

23 O conceito de “cidadania” tem uma longa história. Na Grécia antiga, o temo cidadão indicava o pertencimento a polis, Segundo Aristóteles, o cidadão era aquele que tinha o direito de participar na deliberação política de sua comunidade. Deste direito estavam expressamente excluídos os estrangeiros e os escravos, porque só um homem que não estivesse atado ã necessidade de trabalhar poderia ser politicamente livre, pelo que a posição de cidadania refletia no terreno político a condição econômico-social. A base doutrinária do conceito de cidadania ligado ao ascenso da burguesia está no liberalismo de Locke, que afirma a supremacia do indivíduo e a propriedade como condição do direito de cidadania, A cidadania foi uma idéia revolucionária fundamental na luta da burguesia contra a dominação feudal e punha fim aos privilégios dos nobres e do clero. Uma de suas formulações mais radicais é a de J. J. Rosseau em sua denúncia do ancien régime. A revolução francesa de 1789 elimina a propriedade como condição e declara a todos cidadãos livres desde o ponto de vista jurídico, mas em sua primeira Constituição estabelece dois tipos de cidadãos, os ativos, que tinham direito na voz e eram uma minoria, e os passivos que não podiam votar. Sob o capitalismo, a cidadania tende a velar a desigualdade social com a igualdade jurídica ante o Estado. A extensão dos direitos políticos a todos os cidadãos como o sufrágio universal foi subproduto de duras lutas de trabalhadores e mulheres, que progressivamente foram conquistando este direito, finalmente generalizado entre o início e meados do século XX. O aspecto fundamental da concepção burguesa de “cidadão” é a consumação da separação entre a esfera econômica, marcada pela oposição entre o capitalista e o trabalhador; a esfera política, onde esta oposição é velada, rege a igualdade jurídica de todos os habitantes de um estado e todo indivíduo é livre para vender ou não sua força de trabalho. No sistema político burguês, a cidadania é uma categoria abstrata que acoberta os conflitos de classe que desgarram a sociedade. Ainda que também cristaliza conquistas, como por exemplo, os direitos sociais ã saúde e educação públicas, que se estenderam sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, e que hoje estão retrocedendo. Nos países centrais, os imigrantes estão excluídos destes direitos básicos de cidadania.

24 Bernstein volta aos temas clássicos do liberalismo, apresentando-os com valor de verdades científicas. Como assinala R. Luxemburgo “Fiel a sua lógica até o fim, tem mudado, junto com a sua ciência política, moral e maneira de pensar, a linguagem histórica do proletariado pelo da burguesia. Quando utiliza a palavra “cidadão” sem distinções para se referir tanto ao burguês como ao proletário, querendo com isso, se referir ao homem em geral, identifica o homem geral com o burguês, e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. “Reforma o revolución”, Obras Escogidas, Tomo 1, Ediciones Pluma, Argentina, 1976, p. 107. 25 J. Butler , E. Laclau , S. Zizek, Contingencia, Hegemonía, Universalidad. Diálogos contemporáneos en la izquierda. Fondo de cultura Económica, Buenos Aires, 2003, p. 316.

25 J. Butler , E. Laclau , S. Zizek, Contingencia, Hegemonía, Universalidad. Diálogos contempo-ráneos en la izquierda. Fondo de cultura Económica, Buenos Aires, 2003, p. 316.

26 A LCR é a principal sessão do Secretariado Unificado da Quarta Internacional e um dos grupos que se reclamam trotskistas mais importantes do mundo.

27 O que se conhece como “eurocomunismo” foi o giro iniciado individualmente por distintos partidos comunistas, principalmente os PCs da Itália, França e Espanha, a até certo ponto também da Inglaterra, Bélgica, Suíça, na década de 1970, em que abandonaram formalmente a ditadura do proletariado e se declaram independentes do Partido Comunista da União Soviética, traduzindo em programa sua política de colaboração de classes. Não constituíram uma corrente teórica-política homogênea, em linhas gerais considerava que nos países da Europa ocidental a democracia era a única forma de superar o domínio do capital monopólico, o socialismo seria alcançado por meios democráticos, tomando uma posição muito similar ã da socialdemocracia, e que o instrumento para a transformação social era o sufrágio universal. Etienne Balibar escreveu em 1976 “Sur la dictadure du proletáriat”, para um livro que concentra a sua crítica ao giro eurocomunista do PCF, no qual alguns dos argumentos que rebate, como por exemplo, que a teoria marxista do estado estava atrasada porque só levava em conta seus aspectos repressivos, são muito similares ás que defendem hoje alguns intelectuais da LCR.

28 A LCR defende que esta comparação é mal intencionada, já que diferentemente do PCF, esta mudança estatutária não implica a renúncia a lutar pelo “socialismo auto gestionário”, pela democracia sem limites, e pelo poder dos trabalhadores e trabalhadoras, isto é, a imensa maioria da população, contra a ditadura dos acionistas”.

29 Entre os pontos democráticos que constavam no Programa de Gotha, figurava a luta do proletariado por estabelecer um “estado popular livre”. Para Marx isto era impossível. Em sua crítica coloca: “Cabe, então, perguntar-se: que transformação sofreria o Estado na sociedade comunista? Ou em outros termos: que funções sociais, análogas ás atuais funções do Estado subsistiram então? Esta pergunta só pode ser respondida cientificamente, e por mais que acoplemos de mil maneiras a palavra povo e a palavra Estado, não nos aproximaremos nem um pouco da solução do problema. Entre a sociedade capitalista e a comunista existe um período de transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro que a ditadura revolucionária do proletariado”.

30 Leon Trotsky, La teoria de la revolución permanente, Compilación, CEIP, Buenos Aires, 2000, p. 40-41.

31 Edward H Carr, Historia de La Revolución Rusa. La revolcución bolchevique (1917-1923), Alianza Editorial, Madrid, 1973, p. 169. O grande cronista da revolução russa, John Reed, faz o seguinte relato dos soviets deste período: “Nunca antes havia se criado um corpo político mais sensível e perceptível ã vontade popular. Isto era necessário, pois nos períodos revolucionários a vontade popular muda com grande rapidez. Por exemplo, durante a primeira semana de dezembro de 1917 houve desfiles e manifestações em favor da Assembléia Constituinte - isto é, contra o poder soviético. Um desses desfiles sofreu tiros de algum guarda vermelho irresponsável e várias pessoas morreram. A reação a esta estúpida violência foi imediata. Mais de uma dezena de deputados bolcheviques foram cassados e substituídos por mencheviques. Passou-se três semanas antes que o sentimento popular se tranquilizasse, e os mencheviques fossem substituídos um a um novamente por bolcheviques”. Este princípio de revogabilidade que regia este “órgão sensível ã vontade popular”, chegava até a máxima hierarquia do estado soviético. “Se sua direção fosse insatisfatória, Lênin poderia ser destituído em qualquer momento pela delegação das massas do povo russo ou em um período de poucas semanas pelo próprio povo russo diretamente”. E mais em geral, “se uma parte considerável da Rússia se opusesse seriamente ao governo soviético, os Soviets não durariam nem uma hora”. Extraído de “Los soviets en acción”, 1918. Disponível no site do MIA.

32 Inclusive sob o período de exceção da guerra civil, é interessante voltar a este estudo de E. Carr, no qual documenta como apesar de os partidos menchevique e eserista haviam sido legalizados por suas práticas que favoreciam a reação, eram amplamente tolerados, seguiam tendo sua imprensa faziam seus congressos e inclusive participavam com delegados nos congressos dos soviets. Em resposta ã crítica de um delegado bolchevique no congresso do partido em 1919 ã nova legalização de mencheviques e eseristas, Lênin responde “Se requer que mudemos constantemente nossa linha de conduta e isto pode parecer estranho e incompreensível ao observador superficial. Que é isto?, dirá. Ontem fazia promessas ã pequena burguesia e hoje Dzerzhinki de-clara que os mencheviques e eseristas têm que ir para o paredão. Que contradição! Sim, uma contradição, mas há também uma contradição na conduta desta mesma democracia pequeno-burguesa que não sabe onde se sentar, tenta fazer entre dois assentos, salta de um a outro e tanto vai ã direita como ã esquerda... A isto dizemos: “não sois um inimigo sério; nosso inimigo sério é a burguesia. Mas se alinhais com ela teremos que aplicar também a vós também as medidas próprias da ditadura proletária”. Edward H Carr, op. cit., p. 191.

33 “Et la dictadure du prolétariat?”, Rouge 2040, 20/11/2003. A maneira dos pós-marxistas, a LCR tem começado a defender uma posição que desliza a igualar o regime soviético sob o partido bolchevique com o stalinismo. No artigo citado, F. Ollivier defende: “Em nome da ditadura revolucionária do proletariado concebida como um regime de exceção em circunstâncias excepcionais, Lênin, Trotsky e muitos outros dirigentes bolcheviques tomaram medidas que têm asfixiado progressivamente a democracia no seio das novas organizações revolucionárias. Se assiste a substituição da democracia dos soviets pelo poder do partido, a perda de substância dos conselhos e comitê, ao rechaço em convocar uma assembleia constituinte, depois da proibição de tendências no próprio sei do partido bolchevique. O exercício da ditadura do proletariado na Rússia, inclusive entre 1918 e 1924, se traduz na fusão do estado e do partido, assim como na supressão progressiva de todas as liberdades democráticas”. Em sentido similar, A. Artous em seu comentário ao livro de O. Besancenot defende que este tem uma “visão crítica com relação aos primeiros anos da revolução russa de Outubro de 1917, ainda que nos “trotskistas” seja tradicional opor radicalmente este período ã URSS stalinista”. E agrega que “há dois enfoques sobre as causas que levaram ã burocratização da revolução: um digamos clássico, põe o acento no conjunto de condições ‘objetivas’ (guerra civil, estado do país) que permite dar-se conta dos problemas a que se enfrentaram, e explica que o comportamento da direção bolchevique era essencialmente pragmático. O outro destaca igualmente os efeitos das condições ‘subjetivas’: o desenvolvimento nos bolcheviques não apenas de práticas, mas de concepções autoritárias de poder. O livro se situa com muita razão, neste segundo enfoque”. “La revolution c’est la démocratie jusqu’au bout...”, in Critique Communiste, N° 196-170, p. 42.

34 Olivier Besancenot é a nova figura pública da LCR, foi candidato presidencial no ano de 2002.

35 Em 1977 o Secretariado Unificado publicou a resolução “Democracia socialista e ditadura do proletariado”, na qual se pronunciava pela democracia soviética e pelo pluripartidarismo, mas isto não lhe impedia de adaptar-se as mais variadas burocracias como o regime castrista ou o sandinismo. Posteriormente cifrou suas esperanças “democráticas” na glasnost de Gorbachov.

36 Antoine Artous, “La revolución c’est la démocratie jusqu’au bout...”, in: Critique Communiste n° 169/170. Nessa mesma revista, Isaac Joshua defende que Marx e Engels tinham uma visão mais fragmentária do Estado burguês, e que Lênin “retém apenas o aspecto repressivo” da definição de Engels e do estado, e a partir dali deduz que a este poder especial de pressão burguesa, há que opor um poder especial de repressão proletária, que manteria este caráter repressivo apesar de estar em mãos da maioria da população. Evidentemente esta é uma interpretação enviesada de Estado e a Revolução, já que Joshua defende que o Estado é o “terreno da hegemonia política da burguesia sobre a sociedade, das alianças de classe”. É certo que desde a época de Marx e de Lênin, a burguesia aperfeiçoou sua maquinaria estatal e os mecanismos de consenso, mas o domínio burguês não é só exercício da hegemonia, mas que esta se combina com a força repressiva, que como na época de Marx ou Lênin continua sendo o último recurso em caso de que o poder burguês esteja ameaçado. Com respeito ás medidas de sufrágio universal ou plebiscitos, Joshua defende que “as formas de auto-organização, as bases do novo poder político, podem se esvaziar-se de conteúdo (...) e as funções públicas tendem a se cristalizar nas instituições e nos órgãos permanentes”, há que instituir formas permanentes “que possam permitir que irrompam os de baixo como referendum ou a iniciativa popular”.

37 “Bem entendido, todo projeto de democracia radicalizada supõe uma dimensão socialista, já que é necessário por fim nas relações capitalistas de produção que estão na base de numerosas relações de subordinação; mas o socialismo é um dos componentes de um projeto de democracia radicalizada e não o inverso”. Laclau E., Mouffe C. Hegemonía y estrategia socialista. Hacia una radicalización de la democracia, Fondo de Cultura Economica de Argentina, 2da. Ed. Buenos Aires, 2004, pág. 224. Note-se que em 1985 Laclau todavia usava expressões como “socialismo” ou “relações de produção capitalistas”, que desapareceram completamente de seu discurso.

38 Hanna Arendt, Crisis de la república, Taurus, 1999, p. 232. Formulações similares podem ser encontradas em outros textos como Sobre la revolución, no qual exemplos se estendem ás revoluções anti-stalinistas como na Hungria em 1956. H. Arendt considera que há uma contradição insolúvel entre a expressão democrática dos conselhos- das massas sem partido- e os partidos revolucionários, pelo que compartilha em grande medida a explicação simplista da degeneração da URSS com os que a atribuem ao partido bolchevique, e em particular a Lênin. No entanto, H. Arendt só aplicou o termo “totalitarismo” ao regime stalinista (e ao nazismo), e definiu os primeiros anos da revolução russa como uma “ditadura revolucionária bolchevique”que era o oposto ao totalitarismo. Para H. Arendt a ditadura revolucionária (não só bolchevique como também a jacobina) se caracterizavam por “intensificar o movimento revolucionário”, mas a paródia para Arendt é que esta sorte de “revolução permanente” era impossível sem perpetuar a “ditadura”, já que os revolucionários ou se negavam ou se viam impedidos de por fim ã revolução e criar um governo constitucional, cumprindo assim seus fins. Apesar de ser declaradamente “anti-leninista” estas elaborações têm valido a crítica de não poucos acadêmicos e teóricos da democracia liberal, que consideram que sua análise do totalitarismo, restrito ao stalinismo e ao nazismo, “justifica regimes como o soviético sob Lênin”.

39 Só para ilustrar suas consequências, se aplicamos o critério “democrático” da LCR, teríamos que admitir por exemplo que na Nicarágua, ainda que não se tratasse de um estado operário, foi legítima da revolução nas eleições gerais, onde a Frente Sandinista foi derrotada e entregou o poder ao governo pró-americano de Violeta Chamorro.

40 Leon Trotsky, La revolución traicionada, Ed. Crux, p. 230.

41 Significativamente, na crítica que publicaram tanto o MAS como o PO à posição da LCR, nenhum faz sequer menção aos soviets como forma concreta de organização da ditadura do proletariado. O MAS ainda que seja “muito crítico” de se levantar consignas democráticas como a Assembleia Constituinte em países semicoloniais para permitir a experiência das massas com suas ilusões e aspirações democráticas e acelerar a formação de organismos de autodeterminação, quando discute a transição em lugar de propor as medidas que aprofundam a democracia operária, coincide com a LCR na “combinação” de uma série de medidas formais como o sufrágio universal, desligado de toda estrutura e perspectiva de classe, isto é, coincide em diluir a ditadura do proletariado. Apaga assim de uma vez os soviets e a relação entre estes e o partido revolucionário na transição. Por outra via o PO chega a um resultado similar, repetindo de forma “ortodoxa” fórmulas que não têm nenhum conteúdo concreto, parece que a “norma” para o PO para a sociedade de transição se assemelha mais com uma ditadura burocrática que a ditadura revolucionária do proletariado, já que no extenso documento de Jorge Altamira intitulado “Tesis Programáticas para la IV Internacional”, só há uma menção de passagem dos conselhos operários no subponto 1 do ponto 25, que se refere a indicações gerais que daria a “IV Internacional” para a revolução política em Cuba. Mas no ponto sobre “La cuéstion del poder, del partido y de la Internacional” não há nenhuma menção aos órgãos que segundo Trotsky eram “o embrião do novo estado proletário”. Este artigo de J. Altamira está publicado na revista En defensa del marxismo, n° 33. A crítica do MAS ã LCR saiu publicada em sua revista Socialismo o Barbarie de abril de 2004, sob o título: “El concepto de ‘dictadura do proletariado’. La LCR francesa y las críticas del PO argentino. Revolución socialista, democracia y dictadura” de Isidoro Cruz Bernal. Se o leitor consultar a versão eletrônica deste artigo, poderá constatar usando o buscador de seu processador que a expressão “soviet” ou “soviética” aparece apenas duas vezes neste extenso artigo, em citações da própria LCR.

42 Daniel Bensaid, Le sorire du Spectre. Nouveau esprit du communisme, Editions Michalon, França, 2000, p. 197. É interessante a leitura completa do capitulo “La démocratique ã venir”, para apreciar a concepção de democracia da LCR.

43 Antoine Artous, Marx, l’Etat et la politique, Editions Syllepse, França, 1999, p. 356

44 Idem, Travail et émancipation sociale. Marx et le travail, Editions Syllepse, França 2003.

45 Artous defende que na Rússia a estatização, ao manter a separação dos produtores com respeito aos meios de produção e ao subsistir a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, havia se criado uma esfera própria da produção, na qual s tendia a reproduzir pelo comando burocrático, o despotismo capitalista da fábrica. Ainda que a LCR nunca tenha adotado o coletivismo burocrático como definição da URSS, tendo sustentado a definição clássica de Trotsky de Estado operário degenerado, Artous parecia estar deslizando em direção a uma posição deste tipo. Em seu livro considera incorreta a definição de Estado operário degenerado após o triunfo da contrarrevolução stalinista. E defende que tanto Lênin quanto Trotsky esqueceram dos efeitos do despotismo de fábrica na sociedade de transição, que se reproduziram tal como os havia definido Marx para a sociedade capitalista.

46 Justamente por isso cita em seu livro a célebre “premonição” de M. Weber de 1917 sobre a revolução russa e as tendências ã burocratização que ele via no desenvolvimento do capitalismo. Weber considerava que a eliminação progressiva do capitalismo privado era uma possibilidade teórica. Mas que isto não levaria a destruir a “jaula de ferro” desumanizante do trabalho industrial, senão que a gestão das empresas privadas seria substituída por uma burocracia estatal e esta dominaria sem nenhum controle. Para Weber, a existência de uma burocracia privada permitia até certo ponto um controle mútuo com a burocracia estatal. Mas com a desaparição do capitalismo privado, emergia uma burocracia estatal única, cujo domínio seria muito mais forte.

47 Trotsky, op cit, p. 243.

48 Com respeito ã constituição de 1918, Carr escreve que “A Declaração do Povo Trabalhador e Explorado não era uma declaração de direitos no sentido convencional, senão a proclamação de uma política social e econômica” e, portanto, não reconhecia “nenhuma igualdade formal de direitos. Na Rússia não existia tal tradição na prática constitucional, pois os súditos do czar haviam estado divididos em cinco hierarquias legalmente estabelecidas que gozavam de um estatuto legal diferente”. Estas eram nobreza, clero, comerciantes, pequena-burguesia (lojistas, artesãos, empregados) e elementos camponeses. O proletariado urbano carecia de status legal. “Estas distinções se aboliram e se criou uma única categoria legal de cidadão”. No texto da declaração se explicava que “Pelo interesse geral da classe operária, a RSFSR priva aos indivíduos ou grupos separados de todos os privilégios que possam detê-los para utilizá-los em detrimento da revolução socialista”. Edward H. Carr, op. cit., p. 156-160.

49 Antoine Artous, op. cit. p. 188.

50 Esta visão de passagem de classe em si a classe para si como tomada de consciência volta a se colocar no marxismo ocidental de Lukács.

51 Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escogidas, Editorial Ciencias del Hombre, Buenos Aires, 1973, tomo IV, p. 103.

52 Nos últimos anos há uma tentativa de “recuperar” Lênin como estrategista político, das expressões de esquerda das correntes pós-modernas, enfatizando a autonomia do político e o aproveitamento do momento estratégico ã maneira do acontecimento da teoria de Alain Badiou.

53 Lenin, V.I. “Nuestras tareas y el soviet de diputados obreros (Carta a la redacción)”, Editorial Cartago, Buenos Aires, 1969, Tomo X, p. 13.

54 Suas posições incorretas na juventude que aproximava da visão do “partido como classe” e seu conciliacionismo entre a fração menchevique e bolchevique, que o levaram a se opor duramente a Lênin e a sua concepção de partido, ao qual considerava “substitucionista” da auto-atividade do proletariado, foram superadas. Por outras vias, Trotsky chegou a uma relação similar entre soviet e partido ã de Lênin, o que o levou a confluir com o Partido Bolchevique pouco antes da revolução de outubro.

55 Leon Trotsky, op. cit, p. 234.

56 Leon Trotsky, op. cit., p. 235.

57 Idem, El programa de transición, Ed. Crux, p. 73.

58 Antoine Artous, op. cit, p. 317.

59 Idem, p. 380.

60 Leon Trotsky, La revolución traicionada , p. 235.

61 Leon Trotsky, Historia de la revolución rusa, Sarpe, Madrid, 1985, Tomo I, p. 177.

62 Extrato da transcrição da conferência de Ernesto Laclau na Facultad de Ciencias Sociales, 15 de julho de 2003. Disponível em www.fsoc.uba.ar.

 
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