www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
CINEMA E PSICANÁLISE
A invenção da psicanálise
Fernando Pardal
Ver online

Não possuímos nosso eu. Ele sopra sobre nós,
foge por muito tempo para o mundo exterior,
e volta em um suspiro.

  •  Hugo Von Hoffmannsthal

    Todas as ideias, filosofias, ciências, religiões, teorias são fruto de seu tempo, seu lugar, sua história. Como afirma Marx, os homens fazem sua própria história, mas não a fazem de acordo com sua vontade, e sim a partir das condições herdadas do passado. São as ideias que recebemos a nossa matéria prima para formular nosso próprio pensamento, reelaborá-lo, refutá-las, recriar nossa visão de mundo. Partimos sempre do passado para construir o futuro.

    Essa noção, profundamente materialista, está sempre presente no belo documentário “A invenção da psicanálise” (1997), de Elisabeth Roudinesco e Elisabeth Kapnist, que procura retraçar a origem do pensamento psicanalítico desde a primeira formação de Sigmund Freud – pai da doutrina psicanalítica – no hospital de Salpêtrière com Jean-Martin Charcot, até a decadência da psicanálise nos EUA a partir dos anos 1970 e a hegemonia farmacológica.

    Longe de querer apresentar Freud como um ídolo intocável, o documentário, fundado em uma sólida pesquisa histórica e na entrevista com psicanalistas, como a própria Roudinesco, que é hoje uma das maiores pesquisadoras da história da psicanálise, apresenta a psicanálise como um conhecimento em permanente transformação, que freqüentemente contradiz seu próprio fundador. Entre o vasto panorama apresentado no filme, algumas questões são fundamentais para podermos entender como, longe de ser uma doutrina engessada e dogmática que repete os mesmos “mandamentos sagrados” desde a época de Freud, a psicanálise é uma teoria viva, polêmica, em constante transformação e cheia de divergências e atritos entre seus teóricos e praticantes, inclusive antes da morte de seu fundador, em 1940.

    Roudinesco, profunda conhecedora de tais polêmicas, situa bem os primórdios da teoria psicanalítica como sendo o lugar da cura pela fala, onde, a partir da escuta dos pacientes se procura entender as origens do sofrimento psíquico na história do desenvolvimento da subjetividade daquele indivíduo, muito distinto da “lista de sintomas” que manuais de psiquiatria modernos como o DSM transformaram na prática cotidiana dos médicos. Contando a história de um dos mais célebres paciente de Freud, Sergei Constantinovich Pankeiev – mais conhecido na historiografia como “o homem dos lobos” – Roudinesco cita uma frase de Freud que ilustra bem a sua concepção distinta das práticas médicas da época. Sergei, tendo passado por muitas clínicas e médicos renomados, conta toda sua história a Freud, que diz a ele: “Procuraram os motivos de seu mal em um penico. Agora, vamos procurá-los em você.”

    Outros entrevistados no documentário também chamam a atenção para o papel eminentemente revolucionário que Freud cumpriu para a compreensão da mente humana, sendo pioneiro em afirmar que a homossexualidade não era um crime, um pecado ou uma doença; chamando a atenção para o caráter universal e profundo da sexualidade, inclusive nas crianças; mostrando e elucidando o sofrimento psíquico das mulheres histéricas que eram relegadas pela medicina tradicional. Tudo isso é dito sem que se deixe de lado as contradições de Freud, que era um “bom burguês”, como afirma um dos entrevistados. Sua relação com os analistas adeptos do marxismo, como Wilhelm Reich, mostram isso nitidamente, pois Freud o expulsa da sua sociedade de forma absolutamente intransigente. Essas limitações, no entanto, não devem impedir que nos apropriemos da teoria de Freud.

    O filme é preciso em demonstrar não apenas o papel fundamental que cumpre o contexto histórico para o desenvolvimento da doutrina psicanalítica, mas, inclusive, para a evolução das próprias doenças que procura tratar. Roudinesco, fazendo uma comparação com as doenças orgânicas, mostrando como à evolução da medicina corresponde paralelamente uma evolução das doenças (da sífilis à AIDS, como ela exemplifica), chega às doenças mentais mostrando como paralelamente ao desenvolvimento do tratamento da histeria (a psicopatologia mais recorrente no século XIX e com a qual Freud inicia sua investigação) corresponde um desenvolvimento histórico das próprias doenças, em que hoje a depressão cumpre um papel análogo ao que era a histeria há cem anos.

    Além de expressar como Freud não era um homem imune às suas próprias contradições sociais, o documentário é profundo ao propor a reflexão de como as condições sociais afetam o próprio desenvolvimento da psicanálise, castrando-a de seu potencial transformador. Um dos momentos em que isso ocorre é no exílio forçado dos psicanalistas judeus após a ascensão do nazismo em Viena e Berlim. Nesse momento, Jones, um dos discípulos de Freud, irá propor sua via para “salvar” a psicanálise a partir de sua adaptação ao regime nazista. Freud, tendo se refugiado em Londres, em nenhum momento de opõe a essa prática. O resultado disso é uma psicanálise deformada e monstruosa, que serve para justificar as atrocidades do regime nazista. O filme nos coloca então a pergunta: teria restado ali algo da psicanálise, efetivamente?

    Essa questão teórica não é menor, pois, se dentro dessa construção teórica riquíssima que é a psicanálise, há um amplo espaço para o debate e a divergência, cabe questionarmos até que ponto a sua transformação não retira seu potencial libertador, transfomando-o em seu contrario. Um exemplo nítido da transformação as psicanálise em método terapêutico e teoria do funcionamento psíquico em uma norma reguladora foi oferecido pela atitude vergonhosa de analistas franceses que assinaram um manifesto contra a legalização dos casamentos homoafetivos, alegando, entre outros absurdos, que uma criança criada por um casal homossexual teria seu processo edipiano prejudicado. É de fazer Freud revirar em seu túmulo.

    A mesma questão é colocada em outro grau quando, após a destruição da escola de Berlim, mesmo com toda sua capitulação ao regime, esses mesmos analistas migram para os EUA e iniciam um novo tipo de adaptação da psicanálse, que é à sociedade pragmática e puritana norte-americana, que procura a todo custo erradicar a tristeza e promover a saída individual para os males. Essa mentalidade deu origem à nefasta política de higienização mental e do uso da psiquiatria como controle social, uma tradição que até hoje sobrevive na medicalização da vida, ainda que essa psicanálise deturpada tenha sido deixada de lado ao longo dos anos por um aliado muito mais poderoso: a poderosa indústria farmacológica, que gera bilhões com a ideia milagrosa de uma pílula que resolverá todos os males. A ideia que propunha a psicanálise desde sua origem, e que se mantém em todas as suas grandes linhas, é profundamente oposta: é a de que há determinações no sujeito que escapam ao seu controle, fazem parte de seu inconsciente, sua história, e o processo de análise consiste precisamente em tentar se aproximar dessas determinações para que possamos ter algum tipo de conhecimento e, portanto, de controle maior sobre nossas ações, sentimentos, pensamentos. Mas sem nunca chegar a uma cura mágica ou uma ilusória felicidade plena.

  •  
    Izquierda Diario
    Redes sociais
    / esquerdadiario
    @EsquerdaDiario
    [email protected]
    www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui