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ELEIÇÕES EUA
Trump é eleito tendo perdido a votação nacional: como é possível?
Daniel Alfonso
São Paulo
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Dificilmente tenha passado batido a alguém com acesso a algum meio de informação a vitória de Trump sobre Clinton na virada de terça para quarta. A informação da vitória do racista, misógino, xenófobo Trump na maioria das vezes veio carregada de adjetivos que qualificaram sua conquista, transmitindo como “acachapante” o tom geral. É verdade: Trump levou os estados que a campanha de Clinton, que estava preparada até para perder Flórida, garantia que estava nas mãos dos democratas. Pennsylvania é um desses estados, e sequer contou com a presença de Clinton na campanha.

As análises, e serão muitas, buscarão explicar as vias pelas quais Trump ganhou – e também as que garantiram a derrota a Clinton. Mas tem passado desapercebido um detalhe: a vitória de Clinton no voto popular. Até a redação desta nota ainda faltavam votos a serem contabilizados mas Clinton ligou para Trump e reconheceu a vitória muito antes da contabilização total dos votos. Afinal, esses votos não importavam muito.

O que leva alguém que disputa a presidência da maior potência imperialista do mundo a reconhecer a derrota sem a contabilização total dos votos e com números absolutos tão próximos a seu oponente? A resposta passa por entender que o sistema eleitoral norteamericano é profundamente antidemocrático e...racista.

De onde vem o colégio eleitoral?

Junto com a notícia da vitória de Trump dezenas de milhões de brasileiros viram o mapa federativo dos EUA dividido nas cores azul e vermelho. As eleições presidenciais nos EUA, o país que exporta “democracia” com drones, golpes de estado, fuzis, tanques, são indiretas. Mais do que expor as minúcias de um processo que possui 6 etapas distintas e será finalizado somente no dia 20 de janeiro de 2017, vale a pena resgatar os traços essenciais desse show de horrores antidemocrático que é as eleições presidenciais norte-americanas.

Quando a Constituição norte-americana foi ratificada em 1787, o mundo atlântico vivia imerso na escravidão. Alguns dos limites da Revolução Americana, que garantiu sua independência frente a Inglaterra e expressou política e juridicamente aspectos do arcabouço iluminista, se encontram na relação entre a propriedade da terra e a manutenção da escravidão. O recém liberto país proclamava em sua Constituição o direito da busca por felicidade a cada um de seus cidadãos, mas negava cidadania aos escravizados responsáveis por sua riqueza econômica. Somente depois da guerra civil daquele país, a qual os exército da União venceu graças à participação em larga escala da população negra e escravizada, no final do século XIX, que os negros teriam um lapso de cidadania formal, rapidamente podada pela ordem política e as organizações racistas.

O colégio eleitoral surge junto com a Constituição norte-americana e é um alicerce do regime político. Parte da tradição federalista daquele país, seu objetivo original era fazer com que os estados do sul, com menor população branca e grande contingente de escravizados, não fosse subrepresentada nas eleições presidenciais. A cada estado foi garantido um número de delegados num total de 538. Cada estado recebe número de delegados baseado em sua população, mantendo o limite de 538. Os delegados dos partidos são decididos por regras de cada estado, mas em geral cabe à direção estadual dos partidos defini-los. O número mágico a ser alcançado é 270, uma maioria simples. Atingido esse número, conhece-se o novo presidente dos EUA.

Uma vez eleitos os delegados, estes votam para presidente em dezembro em seus estados, o governador ratifica e envia ao governo federal e ao arquivo nacional, que supervisiona o processo. Muitos estados votaram leis que obrigam os delegados a votarem de acordo com o voto popular, mas incrivelmente a penalidade não passa de uma multa caso isso não ocorra.

Um dos problemas centrais se dá pelo fato de, à exceção de dois, todos os estados decidirem a totalidade de seus delegados baseados em quem recebeu mais votos, independentemente da proporção. Assim, por exemplo, não importa se candidato A ganhou em um estado com uma margem de 60 mil ou 600 mil votos. Em outras palavras, se candidato B perder por 1 voto, não levará nenhum delegado. A votação em sistema de colégio eleitoral tem diversas consequências, mas outra distorção se dá em relação à quantidade de delegados por estado, que desfavorece regiões de maior concentração urbana. Em Wyoming, por exemplo, cada delegado representa 143 mil pessoas. Já em Nova Iorque, Florida e Califórnia, cada delegado representa 500 mil votos. Essa mesma lógica impera sobre a representação na Câmara de Deputados.

O sistema de votação pelo sistema de colégio eleitoral está ancorado na busca por estabilidade política e sobrerepresentação por parte dos senhores de escravos no pós-revolução americana e suas origens precisam ser entendidas junto a uma série de medidas, preocupações e correlação de forças dentre a elite política da época. Entretanto, sobrevive até hoje porque é o pilar de um sistema eleitoral que permite uma série de medidas antidemocráticas. Medidas que variam de estado a estado, mas que são renovadas a cada eleição com o objetivo de afugentar os eleitores mais pobres.

Não é por menos que o argumento presente na formulação do sistema de colégio eleitoral acerca da suposta incapacidade dos eleitores decidirem sobre assunto tão importante quanto a presidência da república se faz presente em cada eleição, com maiores restrições ao direito de voto. Nestas eleições novas medidas foram tomadas por alguns estados, como exigir documentação recente com foto, que inviabiliza a votação de considerável porção de eleitores, em sua maioria pobres, negros e latinos, assim como reduzir o horário de funcionamento das urnas. Vale lembrar que o voto para presidente nos Estados Unidos é facultativo e acontece sempre às terças-feiras. Os bairros mais pobres são os que possuem menos urnas.

Trump, o candidato “anti-sistema” foi eleito graças ao pilar antidemocrático do sistema eleitoral

Voltamos então ao telefonema de Clinton a Trump antes do resultado total da votação. Àquela altura, Clinton havia perdido não somente o estado da Florida, que não entrava em seus cálculos, mas Ohio, Wisconsin e Pensylvannia, entre outros estados dos quais necessitava manter a vitória que garantiu a Obama o segundo mandato. Como havia perdido, pouco importavam os demais números.

Embora a diferença no voto popular seja mínima (45.7% a 45.5% para Hilary com 92% dos votos apurados até o final desta edição), certamente inviabiliza a interpretação de uma vitória sensacional por parte de Trump. Entender o resultado dessa maneira somente é possível através da naturalização desse sistema eleitoral, que a grande mídia norteamericana, responsável por balizar a informação que os grandes meios de comunicação transmitem por aqui, se esforça em fazer.

Há uma profunda crise política nos EUA, que os partidos republicano e democrata vem tratando, a sua maneira e com divisões internas, aplainar. Parte desse esforço se revela na aceitação da derrota por uma Hillary desmoralizada, desde a ligação até o discurso da tarde de ontem. Por outro lado, Trump, o candidato “anti-sistema” da direita se elegeu graças.... ao alicerce do sistema eleitoral. Aceitou a vitória com gosto, e não poderia ser diferente.

Eleições diretas não seriam a solução: esta passa pela organização do povo pobre, das mulheres, dos LGBTs, dos negros, latinos junto à classe trabalhadora, que ao explorarem seu verdadeiro peso social abrirão um horizonte novo de possibilidades, tanto nos EUA quanto ao redor do mundo. Mas entender um pouco e denunciar a maneira antidemocrática das eleições presidenciais norte-americanas pode nos ajudar a buscar uma saída independente dos grandes partidos da ordem e que seja radicalmente democrática.

 
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