Os militares voltaram pra política. Mas com qual política?

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por Thiago Flamé

(ilustração por Juan Chirioca)

Ficou de fora do radar da imprensa, mas a nomeação do Secretário de Segurança Pública (SSP) passou por uma forte disputa entre os setores militares do governo. Depois de indicado, o General Santos Cruz assumiu outra pasta, a secretaria de governo, e a SSP ficou nas mãos do General Guilherme Teophilo, ex-candidato ao governo do Ceará pelo PSDB.

O anuncio, em 21 de novembro, foi feito por Carlos Bolsonaro no seu Twitter “…o General Santos Cruz, o novo Secretário Nacional de Segurança Pública é simplesmente uma ótima referência!”.  No mesmo dia, segundo a revista Crusoé e o Antagonista, Moro teria dito a interlocutores que Santos Cruz não estava garantido. Finalmente, depois da nomeação de Santos Cruz para a Secretaria de Comunicação do governo, foi anunciado no dia 04/12 o Gral Theophilo para a SSP. Segundo a Folha, a indicação partiu de uma reunião entre Villas Boas, o ministro da defesa Fernando Azevedo e Silva e militares do alto comando, com Moro nos dias que se seguiram ao twite de Carlos Bolsonaro.

Esse pequeno bate cabeça entre Carlos Bolsonaro e Santos Cruz de um lado, Villas Boas e Moro de outro, esconde mais do que uma simples desorganização da equipe de transição. Seguindo as pegadas dessa tensão, nos aproximamos das principais disputas que atravessam o governo Bolsonaro.

Santos Cruz comandou as tropas da ONU no Congo e no Haiti, chamado por uns de linha dura e por outros de Rambo brasileiro, também fez parte, como secretário de segurança pública de Temer, da preparação da intervenção federal. Foi chamado ao governo pelo General Etchegoyen, que assumiu o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) no governo Temer, cargo hoje ocupado pelo general Heleno.

Etchegoyen vem de família tradicional do Exército: seu pai foi assessor direto de Médici. Além de sua estirpe golpista e de torturadores, também nutre relações com o Instituto Millenium, de Paulo Guedes, pela via do filósofo também gaúcho Denis Rosenfield, que foi convidado por Temer para fazer a articulação com os militares. A ala de Etchegoyen loteou entre si os cargos no governo Temer, emplacou o ministro da defesa, general Luna e Silva, e o secretário de segurança, justamente Santos Cruz.

Esse setor, que somando o autoritarismo à la Médici da tradição familiar, defendida veemente por ocasião da comissão da verdade, foi quem no Exército mais empurrou para uma intervenção no Rio de Janeiro. Contra a vontade inclusive de Villas Boas, então comandante, e sem contar com a simpatia nem de Heleno nem de Mourão. Uma vez instalada a intervenção, o comando coube ao General Braga Neto. A prioridade do interventor, contra a política defendida por Santos Cruz de centrar no combate ao tráfico de drogas, foi o de se concentrar no roubo de cargas por um lado, e por outro na modificação de comandos da Polícia Civil e Militar carioca, na centralização administrativa e no apoio às operações da Lava Jato (dando apoio por exemplo à decisão que retirou Antony Garotinho do pleito carioca).

A tensão entre Villas Boas e Etchegoyen que surgiu durante a intervenção militar segue ainda no interior do governo Bolsonaro, como se vê nesse episódio da disputa pela Secretaria de Segurança Pública. Frente à crise de segurança no Ceará, Theophilo e Moro não seguiram a política de intervenção federal ou o GLO (Garantia da Lei e da Ordem), mas sim atuaram com a Força de Segurança Nacional criada por Lula. Essa questão, ao contrário de ser uma diferença pontual, é parte de tensionamentos em torno de uma série de questões importantes e até decisivas.

O clã Bolsonaro tem dado muito peso para seu programa e discurso social e cultural, o que desagrada praticamente todos os sócios do condomínio governamental, que exigem concentração nos objetivos fundamentais da aliança bolsonarista: a reforma da previdência e os ataques econômicos. O aumento das tensões entre EUA e China também provoca fissuras em alas do governo e da burguesia. A família Bolsonaro e a ala ideológica de extrema direita do governo representam um alinhamento automático com Trump em questões decisivas: guerra comercial com a China, Israel, Venezuela. Nem o alto comando nem os generais da reserva compartilham desse entusiasmo por Trump, seja por suas ligações com outras alas do imperialismo dos EUA, seja por quererem utilizar as disputas internacionais para barganhar as condições da subordinação do Brasil aos EUA. Também as diferentes alas militares têm uma ideia nem sempre convergente do seu próprio papel no regime político que está sendo construído sobre destroços do regime de 1988, que vai sendo demolido pelo golpe institucional e seu aprofundamento (tendo como seu ato mais recente a proibição de Lula ir ao velório e enterro de seu irmão).

Etchegoyen e seus aliados militares, ainda que perderam espaço no governo Bolsonaro, conservam  posições convergentes com Mourão que foi aventado pelo próprio Etchegoyen como seu substituto no GSI, e com Heleno, que é seu substituto efetivo no GSI e tem relações tradicionais com o setor de inteligência. Convergem no papel do exército com mais protagonismo, ainda que Mourão e Heleno não tenham sido entusiastas da intervenção no Rio como se deu, convergem na política de neutralidade na guerra comercial entre EUA e China. Etchegoyen já em 2017 afirmava defendendo as privatizações e a relação com a China “As empresas chinesas não vão tirar daqui as linhas de transmissão e levar para a China. Nós temos urgência em superar o déficit do setor elétrico e, se os chineses quiserem ajudar, eles serão mais que bem-vindos”. Na mesma linha que o indicado por Guedes para a pasta de comércio exterior, que em outubro de 2018 afirmava que “o Brasil deve ficar neutro na guerra comercial entre EUA e China”.  Paulo Guedes, em linha com seus amigos civis e fardados, divide com Mourão as cortesias às delegações diplomáticas  chinesas.

Villas Boas com a lava-jato e o bonapartismo judiciário

Seguindo a pista da disputa pela SSP, vejamos os interesses do lado que venceu a disputa. Como dissemos, as diferenças sobre a política de segurança, com Etchegoyen representando a ala mais intervencionista, expressa divergências mais amplas. A mais evidente é sobre o papel dos militares no regime político em construção. A própria reserva em relação ao uso da GLO e a intervenção federal indicam que Villas Boas prefere preservar o Exército de uma exposição excessiva. Em temas mais amplos, a mesma questão aparece. Villas Boas critica a defesa aberta da ditadura, como uma questão que deveria ser deixada para trás. E, por último, mas não menos importante, Villas Boas em cada uma das suas aparições públicas busca reforçar o protagonismo do judiciário, mais especificamente da Lava Jato, deixando o Exército como força de reserva do bonapartismo judiciário.

Quando se pronunciou antes do voto de Rosa Weber no julgamento do habeas corpus de Lula o fez reforçando a Lava Jato. Mesmo tendo apoiado Bolsonaro na reta final das eleições, não deixou de fazer fortes críticas ao presidente eleito ainda quando estava no comando do Exército, o chamando de “messiânico”. Quando solicitado por Moro, junto de Fernando Azevedo para indicar um nome para SSP, escolheu um general tucano dando um sinal de que seu candidato favorito nas eleições era o mesmo da maioria das forças por trás do golpe institucional. Em cada uma das suas aparições públicas elogia a imprensa, a justiça e as instituições. Em seu discurso de despedida do Exército além das honraria protocolar ao presidente, fez gestos significativos ao citar Moro e Braga Neto. Se analisamos o discurso de Mourão, Heleno e outros generais da reserva, não encontraremos muitos elogios diretos a Moro, à Lava Jato, e muito menos à imprensa ou mesmo ao interventor no Rio de Janeiro (a não ser agora que os lobos vestiram pele de cordeiro por um momento).

No comando do exército suas ações foram convergentes com a da lava-jato não só na manutenção e aprofundamento do golpe institucional. Se a lava-jato trouxe ao primeiro plano procuradores e juízes formados  nos EUA como Moro, que tem relações com o Departamento de Estado desde pelo menos os tempos de Obama  , Villas Boas que assumiu o comando no inicio de 2015 mesmo sem ser o mais antigo dos generais de quatro estrelas, promoveu a maior aproximação com os EUA desde o fim da URSS, iniciada também sob Obama,  incluindo um exercício militar inédito na tríplice fronteira amazônica com Peru e Colômbia. Digno de nota é que quem coordenou a logística da operação foi o general tucano Theophilo, através de um programa chamado Amazonlog, inspirando em uma operação da Otan na Hungria em 2015. O mesmo Guilherme Theophilo indicado por Villas Boas para a Secretaria de Segurança do ministério de Moro.

Bolsonarismo e os generais

A relação entre Bolsonaro e o exército não é de confiança, ao contrário. Tido como rebelde já foi criticado por ninguém menos que Geisel, na mesma linha mantida por Villas Boas na sua última declaração. Inclusive, as relações diplomáticas com a Palestina que Bolsonaro quer romper a favor de Israel, foram promovidas por Geisel. Sua candidatura despertou muito mais entusiasmo na média e baixa oficialidade do que no Alto Comando e nos generais da reserva. Lembremos que tanto Mourão quanto Heleno flertavam eles próprios com a ideia de serem candidatos a presidência.

As relações entre o Bolsonarismo e os militares são complexas, por que refletem de maneira distorcida também as contradições entre os setores subalternos das Forças Armadas (a média e baixa oficialidade) e o estado de espírito das camadas médias da cidade e do campo nos quais são recrutados e o alto comando e os generais da reserva, que têm seus interesses ligados diretamente à grande burguesia e às finanças. Refletindo a participação política da burocracia civil e militar nas condições de crise orgânica, Gramsci afirma que “o processo se acelera quando a ‘vontade’ específica desse grupo (nos quais são recrutados os militares) coincide com a vontade e os interesses imediatos da classe alta; não só o processo (da expressão voltada para um fim) se acelera, como se manifesta de imediato a ‘força militar’ dessa camada, que algumas vezes, depois de se organizar, dita leis à classe alta, se não pelo conteúdo, pelo menos no que se refere à ‘forma’ da solução”. (Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, Caderno 13 parágrafo 23 – volume 3, p. 64, Ed. Civilização Brasileira)

Bolsonaro arrastou consigo nas eleições as classes médias da cidade e do campo que foram insufladas contra o petismo desde 2015 pela Lava Jato e pela Globo, com o apoio do Exército. Verbalizou os preconceitos e o reacionarismo que foram mobilizados nessa cruzada antipetista. Para todos esses setores, do campo, por exemplo, que consideram consideram que FHC ia contra o direito de propriedade no campo, das polícias militares e civis, de setores da classe média empobrecida das cidades, é preciso impor uma saída violenta contra a corrupção petista, a esquerda e ao problema da violência social. O porte de arma irrestrito, por exemplo, é sua demanda preferencial. Esse sentimento convergiu com a necessidade das “classes altas” de mobilizarem todas as forças para avançar nos ataques econômicos. Mas as classes altas e o alto comando resistem a aceitar uma solução nesses moldes imposta pelo bolsonarismo, pelo grau de risco em despertar uma violenta luta de classes que essa saída comporta. Sabem que FHC defendeu exemplarmente a propriedade agrária… A contradição se grava pelo fato de que a convergência de interesses entre parte dos setores médios mobilizados pelo bolsonarismo (e ainda mais as camadas de trabalhadores e setores empobrecidos que foram também arrastadas) e as classes altas contra o petismo, encontra seu limite justamente na reforma da previdência.

Assim, vão se mostrando a olhos nus no inicio do governo Bolsonaro as divisões profundas que existem no condomínio anti-petista que assumiu o poder como consequência do golpe institucional e das eleições manipuladas com a prisão de Lula. As diferenças são profundas, mas não significa que o governo está à beira da explosão como alguns analistas chegaram a dizer. A reforma da previdência e os ataques aos direitos sociais, a busca de uma saída autoritária para a crise do regime de 1988, e uma maior subordinação e reaproximação com os EUA (o que não significa aproximação automática com o trumpismo ou uma ruptura com a China ou com os países Árabes) unificam os interesses da maioria das forças armadas, depois que os setores mais comprometidos com a política externa lulista e o programa nuclear francês foram golpeados, através da prisão do almirante Othon em 2015, líder do programa nuclear brasileiro durante o lulismo. Ao mesmo tempo não existe um muro que separa as fricções no interior da “ala militar” do governo Bolsonaro das correntes de opinião que existem seja no alto comando, seja na media e baixa oficialidade, seja na tropa. Da mesma maneira que o exercito não está imune também a forte polarização nacional entre lulismo e bolsonarismo, e sem dúvida os setores subalternos das forças armadas do Nordeste e do Sul processam de forma muita distinta os acontecimentos políticos.

O grande embate da reforma da previdência

Mesmo em meio a tantos fatores de instabilidade no interior do governo, erraríamos de confundíssemos essas divisões que vêm à tona à luz do dia com fraqueza imediata, ainda que seja um impasse estratégico que vai precisar ser resolvido. Se sentem tão fortes que se dão ao luxo de trazer suas diferenças para o centro da arena política. Bolsonaro quer consolidar sua base social de extrema direita, sabendo que a reforma da previdência será um sério teste para o seu governo que colocará a maioria da classe trabalhadora e setores nas classes médias na oposição. Todos os seus parceiros estão menos comprometidos, ou são diretamente hostis, ao projeto desconjuntado de Bolsonaro, e pressionam pela aplicação rápida e impiedosa da reforma da previdência, o que ainda teria o beneficio extra de deixar um Bolsonaro mais enfraquecido e mais refém do Exército, das finanças e da justiça.

Apesar de nos últimos dias ter circulado as notícias de que o problema da reforma da previdência está apaziguado entre os militares, de se ter chegado a um discurso comum entre os generais da reserva que integram o governo, não quer dizer que o assunto se encerrou. Muito desse jogo também reflete a disputa entre as frações militares, o alto comando e o bolsonarismo pela influência na tropa. Agora a exigência é que em troca da entrada dos militares na reforma, se reestruture a carreira e os salários dos militares.

Nas próximas semanas o governo Bolsonaro vai ter que mostrar a que veio. A tendência será de cerrar fileiras pela reforma da previdência e utilizar dos métodos do bonapartismo judiciário tanto contra a casta política como contra os sindicatos e os movimentos de massas para garantir os interesses do capital financeiro? Ou as diferenças entre as diferenças de alas no interior do governo e as dificuldades do chamado presidencialismo de coalizão vão se impor e paralisar a reforma da previdência como já havia ocorrido com Temer? Esse será um primeiro grande teste de forças entre as diferentes alas que apoiaram o golpe institucional e o conjunto do movimento operário e de massas.

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