O “Escola sem Partido” e a reforma do ensino médio: para além da cortina de fumaça

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por Mauro Sala

(ilustração por Alexandre Alves)

István Mészáros, em seu livro A teoria da alienação em Marx, dizia que nenhuma sociedade pode perdurar sem seu sistema próprio de educação. Ele acentuava que “apontar apenas os mecanismos de produção e troca para explicar o funcionamento real da sociedade capitalista seria bastante inadequado”. Para ele, as sociedades só existem “por intermédio dos atos dos indivíduos particulares que buscam realizar seus próprios fins”. Assim, segue ele, “a questão crucial, para qualquer sociedade estabelecida, é a reprodução bem-sucedida de tais indivíduos, cujos ‘fins próprios’ não negam as potencialidades do sistema de produção dominante”. Para Mészáros essa é “a verdadeira dimensão do problema educacional”, onde a “educação formal” não seria mais do que “um pequeno segmento dele”.

Isso porque, seguindo o Antonio Gramsci dos Cadernos do Cárcere, “não há nenhuma atividade humana da qual se possa excluir qualquer intervenção intelectual – o Homo faber  não pode ser separado do Homo sapiens”.

Assim, a educação seria solicitada num duplo sentido: “além da reprodução, em escala ampliada, das múltiplas habilidades sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo, o complexo sistema educacional da sociedade é também responsável pela produção e reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem seus próprios objetivos e fins específicos”.

Segue o autor: “As relações sociais de produção reificadas sob o capitalismo não se perpetuam automaticamente. Elas só o fazem porque os indivíduos particulares interiorizaram as pressões externas: eles adotam as perspectivas gerais da sociedade de mercadorias como os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações”.

Esse acento dado por Mészáros, ainda em 1970, segue sendo um bom ponto de partida para compreendermos a educação, em geral, e a “educação formal”, particularmente. Embora escrito antes das profundas transformações que o modo de produção capitalista vem sofrendo desde os anos 1970, com seu momento de crise estrutural e seu processo de reestruturação produtiva, o duplo problema que Mészáros nos coloca para pensarmos a educação segue sendo bastante frutífero. Pensar a educação simultaneamente agindo na estrutura e na superestrutura ainda nos parece a maneira mais concreta de apreendermos esse fenômeno.

Assim, jamais podemos separar, na análise crítica da educação e das políticas educacionais, os momentos econômicos e ideológicos. Os dois fazem parte de uma mesma totalidade que se move alimentando-se reciprocamente. Entretanto, aqui ainda estaríamos numa discussão em geral sobre as relações entre educação e reprodução das condições de produção do capitalismo, o que não basta para compreender os caminhos da educação e das políticas educacionais hoje.

Dessa forma, a questão mais importante a ser colocada em perspectiva histórica é compreender, no quadro das transformações recentes do capitalismo no Brasil, os pesos que assumem a “reprodução, em escala ampliada, das múltiplas habilidades sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo” e a “produção e reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem seus próprios objetivos e fins específicos”. É na compreensão precisa dessa relação que poderemos compreender as políticas educacionais recentes e superar certa dicotomia entre “ataques econômicos” e “ataques ideológicos” ainda tão presente em muitas análises da política atual.

 

Crise capitalista, golpe institucional e políticas educacionais

Ver o golpe institucional apenas como uma saída política para uma crise puramente política é falsear a realidade. É necessário entender o golpe de 2016 também como uma resposta à crise capitalista porque passamos e a busca de uma saída rápida de ajuste contra os trabalhadores para que o capital pudesse recompor seus ritmos de acumulação.

Não é à toa que, na esteira do golpe, uma ampla agenda de contrarreformas foi imediatamente colocada em pauta com a Emenda Constitucional 95, a reforma trabalhista, a ampliação da terceirização, a reforma da previdência e, o que será nosso objeto principal, a reforma do ensino médio. É no movimento da totalidade das reformas propostas como uma saída capitalista para a crise capitalista que a reforma do ensino médio mostra todo o seu sentido.

O objetivo conjunto dessas reformas é diminuir os custos de produção para que os capitalistas possam aumentar sua taxa de lucro. Para isso era – e, do ponto de vista burguês, ainda é – necessário descarregar o peso da crise nas costas dos trabalhadores, modificando a legislação trabalhista e a seguridade social e também as políticas educacionais.[1]

Isso porque, ajustar a relação entre a reprodução entre as “múltiplas habilidades sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo” e a “produção e reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem seus próprios objetivos e fins específicos” é fundamental tanto do ponto dos ajustes econômicos – o barateamento da força de trabalho – quanto ideológico – a aceitação desse processo.

Sabemos que, na sociedade capitalista, a força de trabalho é uma mercadoria. Nem mesmo a ideologia dominante faz muitos esforços para negar essa realidade evidente, pois que chamam de “mercado de trabalho” o processo de contratação da força de trabalho. Como mercadoria, a força de trabalho também está submetida à lei do valor que rege a produção de todas as mercadorias. Seu valor é igual o custo de sua produção e a diminuição dos custos de produção – e reprodução – da mercadoria força de trabalho é um elemento fundamental para o ataque geral contra os trabalhadores presentes nas reformas diretamente trabalhistas .

É claro que o barateamento da mercadoria força de trabalho tem limitantes próprios como as necessidades de reprodução da própria corporidade dos trabalhadores como indivíduos e as necessidades de sua reprodução enquanto classe. Esse barateamento também tem como limitante as necessidades técnicas exigidas no processo de trabalho. A reforma do ensino médio é a tentativa de adequar a formação da força de trabalho às mínimas necessidades técnicas exigidas pelo mercado de trabalho, adequando o custo de sua produção como elemento indispensável para a diminuição do seu valor.

É claro que uma diminuição em toda linha da formação da força de trabalho não é capaz de responder às necessidades do próprio mercado de trabalho, que exige uma qualificação desigual da força de trabalho, superqualificando em alguns ramos produtivos e desqualificando em tantos outros. Entretanto, nesse processo de “polarização das competências”, temos que reconhecer que a tendência à desqualificação do trabalho é o momento predominante que submete a imensa maioria dos trabalhadores no país.

Assim, como formação da massa trabalhadora, a reforma do ensino médio veio para diminuir o custo de produção da força de trabalho pela diminuição e barateamento de sua formação e qualificação. Isso fica bastante claro quando vemos que a reforma do ensino médio vem à tona justamente no momento em que Michel Temer fez aprovar uma Emenda Constitucional que impede qualquer aumento real no orçamento da educação.

O elemento principal da reforma, a separação entre base comum e itinerários formativos, entretanto, não responde apenas à necessidade econômica de redução dos custos de produção da força de trabalho da massa trabalhadora. Ela também tem um efeito ideológico de naturalização das posições desiguais ditadas pela divisão social e hierárquica do trabalho.

A redução da formação comum e a presença de itinerários diferenciados (separando a formação profissional da formação geral) busca dar ares de “escolha” para um constrangimento próprio da sociedade de classes. A vivência na escola pela juventude da divisão entre formação comum e formação profissional é ela própria a pressão ideológica de que “as perspectivas gerais da sociedade produtora de mercadorias são os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações”, como forma escolar da divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual.

 

Reformadores empresariais e o “Escola sem Partido”

Durante o governo de Michel Temer, o MEC estava entregue nas mãos dos reformadores empresariais. O MEC, apesar de formalmente ser comandado por Mendonça Filho, do DEM, era, de fato, dirigido pelo staff tucano, com Maria Helena de Guimarães Castro, na Secretaria de Educação Básica, e Maria Inês Fini, no INEP.

Assim, o MEC estava alinhado com as políticas dos reformadores empresariais centrado na meritocracia, na responsabilização e na privatização. Alinhados com os organismos internacionais, esse reformismo tinha como padrão de qualidade as avaliações internacionais como o PISA da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de alguma forma estava articulada com o tripé dos reformadores e com as pressões exercidas pelas avaliações em larga escala, nacionais e internacionais.

Embora o objetivo do governo Michel Temer fosse articular a reforma educacional com os ajustes gerais da economia e os ataques aos trabalhadores, de algum modo era necessário resguardar um currículo comum para todos os estudantes, já que esse seria avaliado e tido como o padrão internacional da qualidade da educação no país. O caminho que lhe restava era a da dualidade da formação, ou seja, a separação precoce entre formação geral – vinculada às avaliações – e formação profissional – vinculada às reformas econômicas.

Com o governo Bolsonaro, os reformadores empresariais perderam espaço para os reacionários do “Escola sem Partido”. Não à toa nomes vinculados aos reformadores, como Mozart Neves ou a própria Maria Inês Fini, foram duramente combatidos pela base bolsonarista e um cara como Ricardo Vélez Rodrigues acabou sendo empossado como ministro da educação. Outras nomeações em posições chaves no MEC mostram claramente o predomínio do setor vinculado ao “Escola sem Partido” na condução da educação no novo governo.

Com essa ala que hoje dirige o MEC começa a se romper o compromisso com as avaliações internacionais. Se instalou no MEC uma visão que é, ao mesmo tempo, anti-globalista e subserviente ao imperialismo norte-americano e ao Donald Trump e, com isso, o peso das próprias avaliações internacionais parecem que foram para segundo plano.

Se com os reformadores a própria vivência dos itinerários formativos e da meritocracia eram suficientemente ideológicas, com Vélez Rodrigues e Bolsonaro isso não parece mais ser suficiente. É necessário acabar com qualquer perspectiva formativa da escola que agora passa a ser atacada não apenas pelo seu desperdício ou ineficiência nos resultados – como faziam os reformadores empresariais -, mas como espaço puro e simples de doutrinação ideológica.

 

BNCC, “Escola sem Partido” e reforma do ensino médio: por que Bolsonaro é contra a BNCC?

Sabemos que para a implementação plena da reforma do ensino médio era necessária que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) fosse aprovada no Conselho Nacional de Educação (CNE). De algum modo, a aprovação da BNCC é a coroação da reforma do ensino médio tal como impulsionada pelos reformadores empresariais no governo Temer. Por isso denunciávamos como a BNCC estava articulada com os processos de avaliação, meritocracia e responsabilização que levam a educação pública para uma caminho ainda mais largo de privatização.

Entretanto, o “Escola sem Partido”, à sua maneira, também dava um combate em torno da BNCC. Enquanto os reformadores empresariais queriam que a BNCC fosse aprovada no CNE – onde os reformadores tinham maioria e, de fato, era o procedimento -, os reacionários do “Escola sem Partido”, capitaneados por Rogério Marinho, queriam que a BNCC fosse aprovada no Congresso Nacional, onde teriam maiores chances de impor a marca do movimento.

Como prevaleceu a posição dos reformadores empresariais e a BNCC foi decidida no CNE, o “Escola sem Partido” passou a questionar a própria BNCC. Não é casual que no plano de governo do então candidato Jair Bolsonaro constava a revogação da BNCC. Mas a BNCC não era a coroação da reforma do ensino médio que o próprio Bolsonaro votou favorável? Será que ele passou a ser contra a reforma do ensino médio?

Nada disso. O discurso mobilizado por Bolsonaro, o “Escola sem Partido” e seu ministro da educação contra a “doutrinação ideológica esquerdista” nas escolas, contra o “marxismo cultural” e contra a “ideologia de gênero” não é apenas “cortina de fumaça”, como aparece para alguns. Esse discurso é uma das formas de levar a reforma do ensino médio até o seu limite, buscando romper com qualquer perspectiva educativa da escolarização.

Se para os reformadores empresariais a escola tinha que manter elementos de formação geral – que seriam objetos das avaliações padronizadas -, embora no esquema da dualidade e da separação entre formação geral e formação para o trabalho, com Bolsonaro e o “Escola sem Partido” qualquer tipo de formação geral para além da alfabetização e o ensino de matemática básica é vista com desconfiança, como sendo o espaço da doutrinação esquerdista.

Não é à toa que o “Escola sem Partido” insiste na ideia de que “o professor não é educador”, já que a escola deveria ter uma dimensão estritamente técnica-profissionalizante e não educativa. Qualquer pretensão de educar por parte dos professores será imediatamente denunciada como doutrinação ideológica, é claro que somente quando for uma “doutrinação” que contraria a doutrina  e a ideologia oficial do governo. Para a divulgação dessa doutrina oficial, o ministro Vélez Rodrigues quer ressuscitar a tão mal afamada “educação moral e cívica” para formar os “valores fundamentais” da juventude, “a base do comportamento sobre o qual se sedimenta a vida comunitária”, segundo um vídeo gravado e divulgado no site do MEC.

Na verdade, o que eles querem é que a escola seja alijada de qualquer dimensão educativa que não seja a própria propaganda oficial, se opondo até mesmo àquela garantida pela BNCC dos reformadores empresariais. A defesa de que a “educação” cabe à família é o grande guarda-chuva desse esvaziamento. A proposição do homeschooling, onde se abre mão da própria escola como espaço formativo, é um dos caminhos extremos que esse ajuste na educação pretende trilhar.

A declaração do ministro Vélez Rodrigues de que “a Universidade não é para todos”, mas apenas para uma “pequena elite intelectual”, não pode ser vista como uma simples incontinência verbal; ela é um elemento da batalha ideológica por um projeto de escola articulado a um projeto de sociedade. Essa declaração é a expressão nua e crua das intenções do governo e da forma como ele pretende ajustar a educação à sociedade capitalista e sua crise. Ela aparece como a afirmação da violência, da distinção e da desigualdade social como ideologia de si mesma. É uma forma de ideologia que não opera pelo mascaramento do real, mas pela sua explicitação afirmativa. E ela diz muito do projeto para o ensino básico do governo atual, que busca forçar uma separação entre o Homo faber e o Homo sapiens, como expressão da separação ainda mais radical entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, já que a educação intelectual, curiosamente, deverá ser posta fora da escola.

 

[1] Outro elemento fundamental nesse processo é a mudança na legislação ambiental como forma de diminuição dos custos de produção. Para ser mais preciso, é nas costas dos trabalhadores e da natureza que o capital quer descarregar sua crise.

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