Martinica: texto inédito de Rosa Luxemburgo

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O presente artigo foi escrito por Rosa Luxemburgo após uma enorme erupção vulcânica no porto de Saint Pierre, na ilha caribenha de Martinica, naquela época colônia francesa. O vulcão do Mont Pelée (Montanha Careca), que domina a ilha, entrou em erupção no dia 8 de maio de 1902 e começou a expelir grandes quantidades de lava. A cidade de Saint Pierre ficou completamente destruída. Levou a vida de mais de 30 mil pessoas.

Originalmente em alemão, o artigo foi publicado no dia 15 de maio de 1902 no jornal Leipziger Volkszeitung (em alemão, jornal do povo de Leipzig). Desde sua aparição, em 1894, foi uma importante publicação do movimento dos trabalhadores. Franz Mehring foi seu editor entre 1902-1907 e o órgão virou o porta voz mais importante da ala luxemburguista do Partido Socialdemocrata Alemão. Em 1933 foi proibido pelos nazis. Na atualidade é um jornal de circulação local em Leipzig, uma cidade alemã no noroeste doestado de Saxônia.

O texto é reflexo, sem dúvidas, tanto do interesse de Rosa Luxemburgo pelos fatos acontecidos fora da Europa como sua ferrenha oposição a toda ingerência colonial. Nesse texto denuncia com tom implacável a hipocrisia humanitária das potências imperiais.

A continuação, apresentamos o artigo na integra, em português, por primeira vez.

Publicado pela primeira vez na gazeta Leipziger Volkszeitung no dia 15 de maio de 1902.  Versão online: marxists.org 1999.

Notas tomadas de The Rosa Luxemburg Reader, editado por Peter Hudis e Kevin B. Anderson (Monthly Review Press, 2004).

Tradução do alemão de Alejandra Ríos. Tradução do espanhol de Juan Chirioca.

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Rosa Luxemburgo, Martinica (1902)

Montanhas de ruínas fumegantes, pilhas de corpos secos, um mar de fogo, vapor, fumaça, lama e cinzas por todo lugar: isso é tudo que sobrou de uma florescente e pequena cidade que sobre a ladeira rochosa do vulcão se possa como uma andorinha.

Durante um tempo o gigante raivoso era escutado retumbando e berrando contra tanta arrogância humana, contra o cego ennvaidecimento dos duendes bípedes. De grande coração, inclusive na sua ira, esse verdadeiro gigante avisou às imprudentes criaturas que se rastejavam aos seus pés sobre a sua presença. Vomitou ardentes nuvens de fumaça. No seu seio, enfurecido e em ebulição, brotavam explosões, como rajadas do fúzil e trovejar de canhões. Mas os senhores da terra, esses que decretam o destino da humanidade, permaneceram com  fé inabalável na sua própria sabedoria.

No 7 (de maio) a comissão enviada pelo governo anunciou ao preocupado povo de St. Pierre que, tanto no céu como na terra, estava tudo em ordem. Tudo está em ordem! Não tem razão nenhuma para se alarmar! Disseram a mesma coisa na véspera do Juramento do Jogo da Bola nos salões embriagados de dança do palácio de Luiz XVI, enquanto na cratera do vulcão revolucionário a ardente lava recompunha forças para a tão temida erupção. Em todo lugar reinava a ordem, a paz e a tranquilidade! – disseram a mesma coisa quando a erupção de março de 50 anos atrás em Viena e Berlim [em referência à onda revolucionária na Europa de 1848]. O velho e sofrido titã de Martinica ignorou os informes da honorável comissão. Após a mensagem do governador do dia 7, com o que se buscava tranquilizar o povo, nas primeiras horas do dia 8 o gigante entrou em erupção e na explosão ardente do seu indignado coração, em apenas alguns minutos, o governador, a comissão, o povo, as casas, as ruas e as barcas foram enterrados.

Radical foi o trabalho do vulcão. Acabou com a vida de quarenta mil seres humanos, só um punhado de trêmulos refugiados foram resgatados –o velho gigante pôde retumbar e trovoar em paz, mostrou sua força, e despertando o temor vingou-se dessa afronta com seu primal poder.

E agora nas ruínas da aniquilada cidade em Martinica apresenta-se um novo convidado, desconhecido, nunca antes visto: o ser humano. Nem lordes nem servos, nem negros nem brancos, nem ricos nem pobres, nem latifundiários nem escravos assalariados – seres humanos apareceram na distante ilha, seres humanos que sentiram só dor e viram só desastre, que somente queriam ajudar e socorrer. O velho Mont Pelée fez um milagre! Esquecidos estão os dias da Crise de Fachoda, esquecido o conflito sobre Cuba, esquecida “la Revanche”: os franceses e ingleses, o Czar e o Senado de Washington, os alemães e holandeses, todos eles doaram dinheiro, enviaram telegramas, estenderam a mão para ajudar. Uma irmandade de povos contra a natureza incendiada em ódio, uma ressurreição de humanismo nas ruínas da cultura humana. O preço para recuperar sua humanidade foi alto, mas o Mont Pelée rugindo conseguiu captar a atenção deles.

França chora pelos 40 mil corpos da pequena ilha e o mundo inteiro precipita-se a secar as lágrimas da Pátria Mãe. Mas, o que aconteceu quando, séculos atrás, França derramou rios de sangue nas Antilhas Menores e Maiores? No mar ao longo da costa este da África encontra-se uma ilha vulcânica, Madagascar. Alí vimos como, há 50 anos, a República que hoje chora desconsoladamente pelas crianças perdidas, esmagou pelo seu domínio, com a espada e as correntes, a população nativa. Nenhum vulcão abriu sua cratera alí: as bocas dos canhões vomitaram morte e destruição; o fogo da artilharia do exército francês apagou da face da terra as florescentes vidas humanas até que o povo livre caiu no chão, até que a rainha morena dos “selvagens” foi tirada, arrastada, como troféu, à “Cidade Luz”.

Na costa asiática, banhada pelas ondas do oceano, jaz a sorridente Filipinas. Há 6 anos, vimos ali trabalhar os ianques benevolentes e o Senado de Washington. Ali não tinha montanhas cuspindo fogo, mas rifles norte-americanos abatendo vidas milhares de humanas. O Cartel do açúcar do senado que hoje envia montanhas de ouro para Martinica, para que a vida se levante das ruinas, enviou canhão após canhão, navio de guerra após navio de guerra, milhão após milhão de dólares a Cuba, para semear a morte e a devastação.

Ontem, hoje, no distante sul africano, onde há poucos anos atrás um tranquilo e pequeno povo vivia do seu trabalho, em paz, ali vimos como os ingleses fizeram estragos. Esses mesmos ingleses que hoje em Martinica às mães lhes devolvem seus filhos e aos filhos seus pais; no sul africano, com suas brutais botas militares, os vimos pisando corpos humanos, cadáveres de crianças, e caminhar por rios de sangue, com morte e miséria diante deles e às suas costas.

Ah! E os russos! O resgatista, o socorrista, o Czar chorão de todas as Rússias – Um velho conhecido! O vimos nos muros de Praga, onde o sangue polaco ainda morno corria pelos córregos e com sua fumaça pintava o céu de vermelho. Mas tratam-se de velhos tempos. Não! Agora, há apenas algumas semanas, vocês russos benevolentes, os temos visto nos empoeirados caminhos, em aldeias russas destruídas, enfrentar a multidão esfarrapada, selvagemente agitada e enfurecida; após tiros ensurdecedores mujiques ofegantes caíam no chão, sangue vermelho camponês misturada com o pó dos caminhos. Ainda morrerão, ainda cairão, pois seus corpos estão subjugados pela fome, porque por pão, por pão clamam!

E também vimos você, oh, Pátria Mãe, destiladora de lágrimas. Foi o 23 de maio de 1871: um glorioso sol de primavera brilhava sobre Paris; milhares de pálidos seres humanos, com roupas humildes, se amontoaram nas ruas, nos pátios dos cárceres, corpo a corpo, cara a cara; através dos buracos das paredes, com as metralhadoras apontavam com suas bocas sanguinárias. Nenhum vulcão entrou em erupção, não houve caudais de lava se derramando pelas ladeiras. Teus canhões, Pátria Mãe, apontaram contra a multidão misturada, os gritos de dor desgarraram o ar. Com mais de 20 mil cadáveres as ruas de Paris foram cobertas!.

E a todos vocês: sejam franceses, ingleses, russos, alemães, italianos ou norte-americanos; já os temos vistos unidos em acordo fraternal numa grande liga das nações, se ajudando e orientando uns aos outros. Foi na China onde esqueceram-se das diferenças entre vocês, também ali fizeram a paz para, juntos, assassinar o povo e queimar suas moradias. Oh, frente a suas balas, os trançados caiam em fileira igual o granizo que cai no campo semeado!. Oh, as mulheres em gritos de lamento submergiam seus frios braços na água, segurando neles os mortos que fugiam das torturas de vossos abraços ardentes!

E agora todos eles tem dirigido seus olhos a Martinica; num só coração e alma, ajudam, socorrem, secam as lágrimas e amaldiçoam o vulcão que tantos estragos causou. Mont Pelée, gigante de grande coração, podes rir, podes olhar com aversão esses benevolentes assassinos, a estes chorões carnívoros, a essas bestas em roupas de samaritano. Mas o dia chegará em que outro vulcão levantará sua voz de trovão: um vulcão enfurecido e em ebulição, sim ou sim, e irá varrer da face da terra todo sinal de cultura moralista manchado em sangue. E só sobre suas ruínas as nações se unirão numa verdadeira humanidade, que conhecera tão só um inimigo mortal, a inerte cega natureza.

NOTAS DE RODAPÉ

[1] O Juramento do Jogo da bola (francês: Serment du Jeu de paume) é um compromisso de união apresentado o 20 de junho de 1789 entre os 577 deputados do terceiro estado para não se separar até dotar a França de uma Constituição, enfrentando as pressões do rei de França Luiz XVI. Com o pretexto de alguns concertos que deviam ser feitos na sala na que aconteciam as sessões dos Estados Generais da França, a guardiã impediu que os deputados do terceiro estado se reunissem e estes então se reuniram na sala do jeu de paume de Versalhes.


[2] Em 1898 França e Inglaterra quase foram à guerra por um conflito em Fachoda, Sudão.


[3] Uma referência à guerra hispano-estadunidense de 1890 na qual Estados Unidos tomou a tutela de Filipinas e Cuba. Um conflito bélico tinha acontecido quatro anos antes, não seis.

[4] Os “muros de Praga” fazem referencia à massacre do exercito russo contra um levantamento polaco em Praga, um subúrbio na cidade de Varsovia, em 1831.


[5] Em referência à brutal repressão da Comuna de Paris de 1871, durante a qual milhares de revolucionários foram massacrados pelas forças do governo francês.

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