Rosa Luxemburgo e a greve de massas, ou como liberar as forças do proletariado

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Retomamos aqui um debate que cruzou a social-democracia europeia no início do século XX. Ali se debateu como liberar o enorme poder social das massas de trabalhadores.

Propomos aqui voltar a uma das discussões que marcou o movimento socialista internacional durante os primeiros anos do século XX.

Naquele momento, a revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo debateu com Karl Kautsky, o maior teórico da social-democracia. A polêmica, longe de se esgotar em seus principais protagonistas, abarcou uma multiplicidade de atores e publicações. Não são poucas as lições que poderiam ser tiradas dessa interessante discussão.

Um ar fresco vindo do Oriente

A discussão está marcada por um contexto de enormes convulsões sociais. A Europa vive a atmosfera da “paz armada” que precede a Primeira Guerra Mundial. Desde muitos anos, a classe operária continental protagoniza um poderoso movimento de greves. Em termos políticos e econômicos, o mundo inteiro assiste à consolidação de uma nova época, sob a dominação imperialista.

O novo momento histórico assiste também o retorno da revolução social, depois de três décadas de ausência. Em 1905 a classe operária russa protagonizará um poderoso movimento contra o czarismo. A greve geral política se constituirá como método de luta por excelência.

Estilhaços da explosão russa salpicam no continente europeu e chegam à Alemanha. Ali a inquieta mente de Rosa Luxemburgo espera.

Em seu folheto Greve de massas, partido e sindicatos (1906) a revolucionária apontará que “a Revolução Russa demonstra a necessidade de uma revisão fundamental da antiga posição marxista sobre a questão da greve de massas” [1].

A partir daí, desenvolve uma permanente batalha contra a direção sindical burocrática, fator conservador no cenário político alemão. No mesmo texto declara que

“… os sindicatos representam unicamente os interesses setoriais e só uma etapa do desenvolvimento do movimento operário. A social-democracia representa a classe operária e a causa de sua liberação como totalidade”.

O crescente processo de burocratização nos sindicatos se situa no nível organizativo. Nesse mesmo ano, a cidade de Mannheim será sede de um novo congresso partidário, onde se outorgará uma ampla autonomia a essa burocracia [2].

 Duelo de titãs

O debate sobre a greve de massas se atualiza em 1910, em meio a fortes mobilizações que exigem uma reforma eleitoral na Prússia.

Rosa Luxemburgo entra na discussão para mostrar uma perspectiva de radicalização do processo. Desta vez sairá em embate com Karl Kautsky, máximo referente ideológico do movimento socialista internacional.

Novamente a tensão da revolucionária na discussão estará colocada contra o aparato conservador dos sindicatos. A discussão implica, além disso, em apostar no livre desenvolvimento da auto-atividade política da classe trabalhadora. Em sua reflexão, a perspectiva da greve de massas aparece ligada à definição de Marx sobre o fato da liberação da classe operária ser obra dela mesma [3].

No artigo que abre o debate, Rosa aponta que

“Apesar de uma greve política de massas geral, em um primeiro momento levar a uma debilitação ou deterioração de alguns sindicatos, depois de algum tempo, não só renascerão as velhas organizações, como a grande ação removerá novas camadas do proletariado” [4].

Já na primeira resposta a Kautsky, Rosa sustentará que a agitação sobre a ideia de greve geral

“… oferece a possibilidade de esclarecer com nitidez toda a situação política, o agrupamento de classes e partidos na Alemanha, incrementar a maturidade política das massas, despertar sua sensação de força, seu entusiasmo pela luta, apelar a seu idealismo, mostrar ao proletariado novos horizontes” [5].

No pensamento da revolucionária polonesa, a greve de massas aparece como uma alavanca formidável para liberar a energia da classe trabalhadora em seu conjunto, aproximando suas diversas frações na ação.

Além disso, se constitui como uma ferramenta fundamental para fortalecer a confiança da classe em suas próprias forças, em oposição a qualquer política conciliadora com a burguesia liberal. Rosa escreve

“… não se trata de organizar subitamente, do dia para a noite, uma greve de massas na Prússia (…) e sim de aclarar às massas de forma histórica, econômica e política (…) que não se pode confiar a ação parlamentária aos aliados burgueses, e sim que somente podem contar consigo mesmas, com a própria e decidida ação de classe” [6].

A greve geral e o poder da classe trabalhadora

No livro Estratégia socialista e arte militar, Emilio Albamonte e Matías Maiello afirmam que “o que em Luxemburgo começa como uma discussão sobre a tática para intervir nos acontecimentos, Kautsky reformula em termos de estratégia” [7].

O autor de O caminho do poder irá opor sua perspectiva de estratégia de desgaste a de estratégia de abatimento, em que se localizará Rosa.

O primeiro conceito se definirá como a estratégia que concentra “a totalidade da prática do proletariado social-democrata até o presente, desde finais dos anos sessenta”. Uma prática que aponta a que, no enfrentamento com o Estado capitalista, “o proletariado se fortaleça constantemente e seus adversários se debilitem continuamente, sem se deixar arrastar para um enfrentamento decisivo, enquanto formos os mais débeis” [8].

Forçando os acontecimentos e as palavras, Kautsky eleva Friedrich Engels à posição de “pai” desta concepção. Fará isso partindo de sua (recortada) introdução ao livro A luta de classes na França, de 1895 [9].

Kautsky irá polemizar sobre a greve de massas. Para ele, as condições da Alemanha impunham uma dinâmica distinta em relação ao acontecido na Rússia: o poderoso desenvolvimento político e organizativo da social-democracia alemã enfrenta um Estado respaldado por uma burguesia altamente concentrada.

Nesse marco, estabelecerá uma distinção entre greves demonstrativas e greves coercitivas. Precisamente Rosa Luxemburgo irá criticar que ele limita essa tática “à ideia de uma greve pacífica, planificada pela social-democracia e pelos sindicatos para exigir algo do Governo”.

Para a revolucionária polonesa, a greve política “consiste em um processo muito mais amplo, que combina a radicalização de setores de massas com a ação do partido para impulsioná-la, dando uma direção política” [10].

Vale a pena se deter um momento na definição que Kautsky fará sobre a greve geral de massas, apontando que

“A eficácia da greve de massas consiste em obrigar o Estado ao mais extraordinário desdobramento de forças, ao mesmo tempo que paralisa seus instrumentos de poder. Isto é conseguido por sua própria massividade. Seu efeito é maior dependendo da incorporação do proletariado assalariado na greve; não só nas grandes cidades e nas zonas industriais, como também nos povos mais afastados. Seria especialmente efetiva se também se incorporassem os trabalhadores rurais da grandes propriedades” [11].

A definição ilustra uma distância sideral entre uma medida de luta isolada – como uma paralisação nacional – e uma greve geral política que golpeia os cimentos do poder capitalista.

Logicamente, essa dinâmica abre a perspectiva de um enfrentamento pelo poder estatal, tal como efetivamente ocorreu na Rússia de 1905 [12]. Este problema é apontado pelo próprio Kautsky, que escreverá:

“Em condições como as que existem na Alemanha, só consigo imaginar a greve de massas política como um acontecimento único, em que todo o proletariado do império atue com todo o seu poder, como uma luta de vida ou morte, em que ou se derrota nossos adversários, ou se destroem, ou pelo menos paralisam por vários anos, todas as nossas organizações e nosso poder” [13].

No debate esta questão essencial ficará sem resposta por parte da revolucionária polonesa. O limite da concepção de Rosa reside na indefinição frente a esta situação. A greve geral política declara o problema do poder, mas não o resolve. Só uma insurreição preparada cientificamente pode conquistar o poder estatal, consumando o triunfo que a classe trabalhadora preparou ao paralisar o conjunto da economia [14].

De estratégias e interesses

Visto de conjunto, o discurso político e teórico de Kautsky funciona como justificativa de uma prática que, depois de várias décadas, decanta no fortalecimento de frações conservadoras no seio da social-democracia.

As mesmas se consolidam ao redor do aparato sindical e do setor ligado à tática parlamentário-eleitoral.

Isto será apontado por Rosa:

“… o camarada Kautsky opõe a greve de massas com nossa velha e provada tática do parlamentarismo. Na realidade, o único que faz é recomendar por agora e para a situação atual nada mais que parlamentarismo; se contrapõe então não com o socialismo utópico das barricadas, como Engels fazia, e sim contra a ação de massas social-democratas do proletariado para a conquista e o exercício de seus direitos políticos” [15].

O oportunismo cresceria a passos gigantescos na cúpula da social-democracia. A realidade outorga outra quota de razão à dirigente polonesa no transcurso do debate. Em julho de 1910, uma fração dos deputados socialistas do Estado de Baden vota a favor do orçamento do Governo. Faz isso, logicamente, rompendo com a disciplina partidária.

As ideias e a força

Em 1906, Rosa declara que:

“… se por algum motivo e em qualquer momento chegasse a abrir na Alemanha um período de grandes lutas políticas, de greves de massas, se abriria também uma era de violentas lutas sindicais, e os acontecimentos não iriam se deter para pedir o aval dos dirigentes sindicais. Se tentam marginalizar ou deter os acontecimentos, sejam dirigentes sindicais ou partidários, a maré dos acontecimentos lhes irá varrer da cena, as massas levarão suas lutas econômicas e políticas adiante sem eles” [16].

A revolucionária polonesa demonstra assim uma confiança formidável na força espontânea das massas, em sua capacidade de superar suas direções burocratizadas.

Entretanto, isto revelava um ponto débil de sua concepção. Em termos estritamente conjunturais, a burocracia sindical e partidária já evidenciava seu poder para paralisar as tendências à mobilização de massas na luta pela reforma eleitoral. A própria Rosa se viu obrigada a aceitar no debate, indicando que “as demonstrações nas ruas simplesmente foram dissolvidas pelas instâncias dirigentes do partido” [17].

Mais de conjunto, sua reflexão não consegue discernir o abismo que já existia entre a burocracia operária a frente dos sindicatos e as amplas camadas da classe trabalhadora. Nessa distância há que buscar as razões mais profundas da estratégia de desgaste de Kautsky.

As últimas décadas do século XIX assistem o desenvolvimento e a consolidação da expansão imperialista em escala mundial. No interior do mundo dos assalariados, se desenvolve uma quebra horizontal entre a enorme maioria da classe e um setor minoritário, uma verdadeira aristocracia operária, ligada aos enormes benefícios que vinham das semi-colônias às metrópoles.

Em 1915, dando conta desse fenômeno, Lenin declara que:

“O oportunismo foi engendrado no curso de décadas pelas características especiais durante o período de desenvolvimento do capitalismo, quando a existência relativamente pacífica e culta ‘aburguesou’ uma camada de operários privilegiados, lhe proporcionando migalhas da mesa dos capitalistas nacionais, mantendo-os à margem das calamidades, dos sofrimentos e da disposição revolucionária da massa empobrecida e miserável” [18].

O surgimento da burocracia operária no interior das organizações sindicais constituía uma novidade histórica e implicava numa mudança de qualidade do caráter das lutas estratégicas no seio do movimento operário.

Contra essa realidade material surge a luta político-ideológica de Rosa Luxemburgo. A exigência à direção social-democrata para que adotasse um curso revolucionário resultava logicamente impotente.

Para desenvolver o poder social da classe trabalhadora em perspectiva de frear o Estado e o poder capitalista, faltou construir outra força política que se dirigisse aos setores mais combativos do proletariado.

Vale voltar mais uma vez a Albamonte e Maiello:

“… este enfrentamento de estratégias, diferentemente de todas as (inúmeras) lutas de tendências no interior do movimento operário no século XIX (…), já não estava declarado só em termos de luta ideológico/política, mas também de enfrentamento entre forças materiais” [19].

Lenin, partindo da experiência russa, elabora uma nova concepção de partido, apontando à “criação de uma força material partidária que vá no sentido oposto da burocracia, ou seja, revolucionária” [20].

Analisando em termos históricos o debate de 1910, a razão está plenamente do lado de Rosa Luxemburgo. A degeneração reformista da social-democracia evidencia um salto da qualidade no início da Primeira Guerra Mundial, quando a direção desse movimento acompanha politicamente essa imensa carnificina imperialista.

A atualidade dessa polêmica reside na continuidade de um dos autores. O processo de burocratização das organizações sindicais se aprofundou ao longo do último século. A batalha de Rosa Luxemburgo em liberar a energia combativa da classe trabalhadora segue, portanto, vigente.

Notas de rodapé
[1Huelga de masas, partido y sindicatos. Citado em marxists.org.
[2] “Daqui em diante, só se reconhecerá os chefes sindicais como ‘competentes’ para ‘proclamar’ a greve, incluindo a greve política de massas”. Ernest Mandel, Rosa Luxemburg y la socialdemocracia alemana.
[3] “A decisão de uma eminente ação de massas unicamente pode partir da própria massa. A liberação da classe operária pode ser obra unicamente da própria classe operária – esta frase do Manifesto Comunista, indicadora do caminho, tem também validez no particular” (Debate sobre la huelga de masas. Primera Parte, Cuadernos de Pasado y Presente, México DF, Ediciones PyP, 1978, p. 126)
[4] Ibidem, p. 125.
[5] Ibidem, p. 184.
[6] Ibidem, p. 183.
[7Estratégia socialista e arte militar, Buenos Aires, 2017, p. 49.
[8Cuadernos…, op. cit., p. 224.
[9] Sobre essa interpretação sobre Engels, recomenda-se consultar o já citado Estratégia socialista…, op. cit. pp. 60-62.
[10Estratégia…., op. cit., p. 85.
[11Cuadernos, op. cit., p. 216.
[12] Nas suas conclusões sobre 1905, Leon Trotsky escrevia sobre a greve geral política, apontando: “o principal método de luta aplicado pelo soviet foi a greve geral política. A eficácia revolucionária deste tipo de greve reside no fato de que, além de sua influência sobre o capital, desorganiza o poder do Governo. Quanto maior é a ‘anarquia’ que leva consigo, mais próxima está a vitória. (…) Na medida em que a greve destrói a atividade do Governo, a organização da greve se vê empurrada a assumir as funções do Governo. As condições da greve geral, enquanto método proletário de luta, eram as mesmas condições que deram ao Soviet de Deputados Operários sua importância ilimitada”. Citado em 1905, Buenos Aires, Edições CEIP-IPS, 2006.
[13Cuadernos, op. cit., p. 214.
[14] Leon Trotsky abordará esta questão em História da Revolução Russa, no capítulo dedicado à arte da insurreição.
[15Cuadernos, op. cit., p. 173.
[16Huelga de masas…, op. cit.
[17Cuadernos, op. cit., p. 267.
[18] “La bancarrota de la II Internacional”, Obras selectas, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2013, p. 450.
[19Estratégia, op. cit., p. 67.
[20] Ibidem, p. 105.

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