Um “1905 à francesa” e a crise histórica do sindicalismo

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Por Juan Chingo

Mais de trinta anos depois da derrota da Comuna de Paris, a Revolução de 1905 na Rússia recolocou em jogo a força da espontaneidade revolucionária das massas, colocou em crise os fundamentos da Social Democracia alemã e a rotina de seus sindicatos adaptados à ordem burguesa. E se a insurreição dos Coletes Amarelos for o 1905 das direções sindicais, especialmente da CGT?

Digamos logo de início: a revolução não começou na França neste início do ano de 2019. Também não seria correto dizer que a mobilização, que começou no meio de novembro do ano passado, já foi derrotada pelas autoridades. Qualquer comparação com a primeira revolução russa de 1905 poderia, portanto, parecer absolutamente exagerada ou errônea. Da mesma forma, podemos acrescentar que a mobilização não tem à sua frente, como na Rússia há mais de um século, os setores mais concentrados do proletariado das grandes cidades, nem se expressa através de um poderoso movimento de greve e não deu origem ao estabelecimento de sólidos organismos de auto-organização, como os sovietes. No entanto, preservando as proporções, a irrupção “revolucionária” dos Coletes Amarelos, que mostram, depois de dois meses (com um momento de refluxo durante os feriados), uma determinação e uma disposição ao enfrentamento com o Estado burguês talvez ainda maiores do que em 68, abrindo a crise mais importante da história da 5ª República, não deixa de lembrar janeiro de 1905, quando a entrada em cena das massas em São Petersburgo colocou em crise o regime do Czar.

A comparação, apesar das diferenças abissais entre os dois momentos, a saber, entre a Rússia em 1905 e a França de hoje, não deixa de ser interessante. A Revolução de 1905, de fato, abriu um novo período para o movimento operário, encerrando definitivamente o período não-revolucionário inaugurado pela derrota da Comuna de Paris em 1871. Essa mesma Revolução de 1905, igualmente, colocou em questionamento as bases estratégicas das principais organizações do movimento operário à escala mundial que haviam se consolidado no decorrer de várias décadas pacíficas: a Social Democracia e os sindicatos ligados a ela. Rosa Luxemburgo demonstrará isso em sua brilhante exposição em Greve de massas, partido e sindicatos. Deste ponto de vista, a partir de elementos estruturais, mas também políticos e de luta de classes, os quais a insurreição dos Coletes Amarelos coloca em evidência, é possível clarificar as razões que originam a crise do sindicalismo francês. Isso também permite questionar as maneiras pelas quais seria possível colocar em movimento o conjunto da força do proletariado, uma questão absolutamente central, hoje ainda não resolvida, para fazer Macron recuar e realmente entrarmos em um processo revolucionário. Estas são as linhas de pensamento que esse artigo se propõe a explorar.

Tendências à institucionalização e elementos “Orientais” no seio da França imperialista

Em um quadro marcado por uma estrutura tão complexa e avançada como é o capitalismo imperialista francês, a violenta erupção da insurreição dos Coletes Amarelos, sua radicalidade e suas particularidades estão ligadas a uma nova forma de desenvolvimento desigual e combinado que afeta o proletariado e suas organizações. Este mescla fortes tendências à institucionalização das organizações tradicionais do movimento operário, de um lado, e o desenvolvimento nas últimas décadas, por outro lado, de elementos que o revolucionário italiano Antonio Gramsci chamou de “Orientais”. [1]

As mudanças na reconfiguração da força de trabalho desde o início da ofensiva neoliberal e em resposta à greve geral de 1968, bem como a integração institucional dos sindicatos expressa através de múltiplos mecanismos (negociação, consulta, gestão paritária da proteção social) e que vem crescendo desde a Libertação [na Segunda Guerra Mundial], reforçaram as características “Ocidentais”, próprias do movimento operário francês. Isso é verídico mesmo que a integração institucional dos sindicatos franceses seja menor do que a das confederações escandinavas, belgas ou alemãs.

Em Sociologia política do sindicalismo [2], Karel Yon, Sophie Bérou e Baptiste Giraud destacam algumas características marcantes dessa crescente institucionalização. Assim, “a distância da política se tornou hoje uma restrição do papel dos sindicalistas. Além das restrições materiais já mencionadas, como o tempo gasto nas arenas profissionalizadas do diálogo social, a restrição dos sindicalistas ao domínio limitado das relações profissionais resulta, portanto, também de restrições sociais interiorizadas através de um “senso de limites” que os conduz, em cada situação, a se proibirem, por exemplo, qualquer tomada de decisão julgada como excessivamente política”. Além disso, “Longe dos estereótipos da mídia sobre sindicalistas preocupados acima de tudo com  fazer greve, é possível também conduzir uma carreira militante no sindicalismo assumindo um trabalho de escritório e se assentando sucessivamente em diferentes tipos de instâncias: em um comitê paritário de filiais, por exemplo, em um organismo paritário coletivo financiado aprovado para a formação profissional ou como conselheiro de tribunal do trabalho” [3].

Tudo isso, naturalmente, não ocorre sem consequências sobre o “repertório da ação sindical”, para usar a terminologia dos autores, inclusive no seio da central que é percebida como a mais contestadora, a CGT [Confederação Geral do Trabalho, principal central sindical francesa]. Dessa forma, eles apontam como “confrontados com a fraqueza militante de sua organização, a preferência dada à coordenação de dias de ação espaçados, principalmente na forma de manifestações ao invés de greves, é assim pensada como o meio de ampliar a mobilização – e, assim, reforçar sua legitimidade – privilegiando formas de mobilização menos onerosas ou arriscadas para os assalariados. No entanto, a vontade dos dirigentes da CGT de evitar as estratégias de radicalização da mobilização e de bloqueio da economia visa igualmente conter a mobilização às formas de ação julgadas menos políticas e mais compatíveis com sua aspiração de recuperar uma posição central no jogo da negociação coletiva” [4].

Para mencionar apenas os movimentos mais recentes: na derrota da luta contra a lei El Khomri, sob [o mandato presidencial de] Hollande, ou contra a reforma trabalhista XXL, no outono de 2017, ou ainda durante a reforma ferroviária, na primavera de 2018, essa estratégia se provou absolutamente incapaz de frear as reformas neoliberais.

O outro lado da moeda deste processo altamente “ocidental” é o desenvolvimento de elementos “orientais” dentro de segmentos importantes do proletariado, notoriamente nas zonas periurbanas* e rurais. Ou seja, um processo (que já ocorre há décadas) de enfraquecimento da sociedade civil, particularmente de suas “fortalezas” e de suas “casamatas”, para usar a metáfora gramsciana de um Estado Burguês ampliado cujo objetivo é o controle da população. Em outros termos, a ofensiva neoliberal das últimas três ou quatro décadas enfraqueceu e deteriorou toda uma série de mecanismos como o sufrágio universal, os partidos de massas, os sindicatos operários, as instituições civis intermediárias como a escola ou o tecido associativo, ou seja, todo um cimento que permitiu à classe dominante manter sua influência independentemente do aparato coercitivo, isto é, do Estado no sentido estrito do termo, que pode se resumir aos seus corpos de repressão. Tudo isso deu lugar a um sentimento de relegação social e cultural.

Christophe Guilluy, especialista em geografia social, relata à sua maneira esse processo, destacando estranhamente como a burguesia “perdeu sua hegemonia cultural”. Em “No society. O fim da classe média ocidental [5], um ensaio que tem sido polêmico, o autor analisa como “ao marginalizar seus próprios povos, as classes dominantes ocidentais criaram as condições de sua impotência. Ao romper o elo entre o alto e o baixo, as elites favoreceram a autonomia dos mais modestos que já não se sentem referenciadas no mundo dos de cima. A não ser que militarize a coerção, a classe política não poderá contar por muito tempo com o mundo midiático ou acadêmico para canalizar o mundo dos de baixo. Com mais ninguém dos de baixo levando a sério os políticos, economistas, acadêmicos ou a mídia, o século 21 começa com um grande paradoxo. Hoje, é o mundo dos de cima que perde sua hegemonia cultural. O soft power invisível do mundo de baixo é o inesperado da globalização”.

Guilluy completa afirmando que “essa autonomia forçada do mundo de baixo, agora hermético aos discursos e às ordens do mundo de cima, permite às classes populares reafirmarem aquilo que são coletivamente. Contra todas as expectativas, elas exercem hoje um soft power invisível que contribui para o colapso da hegemonia cultural das classes dominantes e superiores. No conjunto dos países ocidentais, se vê uma inversão das noções de potência e poder”.

Sem compartilhar até o final as conclusões conceituais de Guilluy, no seu caso a serviço de uma política populista com algum setor da classe dominante imperialista, a descrição dessa maior “autonomia dos mais modestos” ou, em termos gramscianos, disto que poderia ser definido como sua “reorientalização” – ou seja, em um cenário de enfraquecimento dos corpos intermediários, bem como das mediações políticas, sindicais e associativas, mesmo enquanto o nível cultural do proletariado francês é infinitamente mais elevado, hoje, do que o da classe operária russa no começo do século passado – é o que poderia muito bem explicar a irrupção violenta do fenômeno dos Coletes Amarelos, seu caráter radical e explosivo, bem como muitas de suas limitações, que teve, contudo, o mérito de destacar e colocar em questionamento as estratégias de mediação e de luta do movimento operário tradicional, totalmente adaptado à democracia imperialista francesa.

“Greve de massas, partido e sindicatos” no calor da revolta dos Coletes Amarelos

Frente a esse “1905 invertido”, na medida em que, diferente do processo russo, não são os setores estratégicos da classe trabalhadora da indústria e do setor de serviços, com seus métodos, que se encontram na ofensiva, é inspirador examinar algumas lições que Rosa Luxemburgo retira deste mesmo processo russo, de maneira geral e em especial para o proletariado alemão. Neste ensaio revolucionário, Luxemburgo encontra a chave que permite melhor compreender o impasse em que se encontrava preso o proletariado alemão.

Sua orientação, a orientação da Social Democracia, consistia em evitar qualquer luta séria com a burguesia e seu Estado, mesmo que não obtivesse, como no passado e apesar de sua força, as mesmas conquistas políticas materiais e morais. Em sua brilhante síntese da entrada impetuosa das massas em cena, derrubando todas as certezas e os planos da direção socialdemocrata e dos sindicatos alemães, Luxemburgo argumentou que os “partidários de “batalhas ordenadas e disciplinadas” projetadas de acordo com um plano e um esquema, aqueles que em particular sempre querem saber de longe como “deveria ter sido feito”, estes consideram que foi um “grave erro” diluir a grande ação de greve geral política de janeiro de 1905 em um número infinito de lutas econômicas, o que, para eles,“paralisou” aquela ação, convertendo-a em “fogo de palha”. Até mesmo o partido socialdemocrata russo, que certamente participou da revolução, mas não a “fez”, e que teve de aprender suas leis na medida de seu desenvolvimento, ficou, em um primeiro momento, desorientado pelo refluxo, aparentemente estéril, da primeira onda de greves gerais. No entanto, a história, que havia cometido esse “grave erro”, sem se preocupar com os raciocínios daqueles que se autointitulavam como grandes mestres, realizava com este mesmo “erro” um gigantesco trabalho revolucionário, tão inevitável quanto incalculável em suas consequências”.

Ironicamente, Luxemburgo continuou, em Greve de massas, partido e sindicatos [https://rosaluxspba.org/wp-content/uploads/2017/04/Greve-de-massas.pdf], “Além disso, as greves aparentemente caóticas e a ação revolucionária “desorganizada” que sucederam à greve geral de janeiro transformam-se no ponto de partida de um febril trabalho de organização. A história ri dos burocratas apaixonados por esquemas “pré-fabricados”, guardiões ciumentos da felicidade dos sindicatos. As sólidas organizações concebidas como fortalezas inexpugnáveis e cuja existência tem de ser assegurada, antes de eventualmente se pensar na realização de uma hipotética greve de massas na Alemanha, são, ao contrário, fruto da própria greve de massas. E enquanto os ciumentos guardiões dos sindicatos alemães temem, antes de tudo, ver quebrar em mil pedaços essas organizações, como uma preciosa porcelana no meio do turbilhão revolucionário, a revolução russa apresenta-nos um quadro completamente diferente: o que emerge dos turbilhões e da tempestade (…) são sindicatos novos e jovens, vigorosos e ardentes”.

Rompendo com toda separação abstrata entre dois campos indissociavelmente ligados, Luxemburgo concluía que “no entanto, o movimento no seu conjunto não se orienta unicamente no sentido de uma passagem do econômico ao político, mas orienta-se também no sentido inverso. Cada uma das grandes ações políticas de massas se transforma, após ter atingido o seu apogeu, numa multiplicidade de lutas econômicas. Isso não é somente válido para cada uma das grandes greves, também o é para a revolução no seu conjunto. Quando a luta política se estende, se clarifica e intensifica, não só a luta reivindicativa continua como se estende, se organiza e se intensifica paralelamente. Há uma completa interação entre ambas”.

Quantos paralelos frente ao “caótico” e proteiforme movimento dos Coletes Amarelos! Sem mencionar as conclusões que ela tirou para o proletariado alemão, de tamanha atualidade, frente ao impasse estratégico dos sindicatos franceses, em especial os mais combativos. Mas vejamos o que aponta Rosa Luxemburgo tirando lições da revolução russa de 1905, em comparação aos “brilhantes” planos de luta inventados pelas direções sindicais francesas – o prêmio vai para aqueles que imaginaram, no decorrer da reforma ferroviária, uma “greve perolada” [greve perlée, que interrompe as atividades de uma empresa pela sucessão de pequenas paralisações de trabalho] que, em nome de uma persistência do movimento ao longo do tempo, reduzindo ao mínimo os custos, conduziu à invisibilidade da greve e à redução de sua eficácia, levando à derrota apesar do ânimo de luta da base dos ferroviários –: “nós constatamos, na Rússia, que essa revolução, que torna tão difícil para a socialdemocracia tomar a direção da greve e que, às vezes, a arranca, outras vezes lhe dá o bastão de maestro, resolve, no entanto, todas as dificuldades da greve, essas dificuldades que o esquema teórico tal como é discutido na Alemanha considera como a principal preocupação da direção a questão do“fornecimento”, das “despesas”, dos “sacrifícios materiais”. Sem dúvida não os resolve na maneira como podem ser solucionados, lápis na mão, no decorrer de uma pacífica conferência secreta, realizada pelas altas instâncias do movimento operário. A “resolução” de todos esses problemas se resume a isto: a revolução faz entrar em cena massas populares tão enormes que toda tentativa de regular previamente ou calcular ou estimar os custos do movimento – como se estabelece previamente os custos de um processo civil – aparece como um empreendimento desesperado. É claro que também na Rússia as organizações dirigentes tentaram apoiar com todas as suas forças as vítimas da luta. Foi assim que, por exemplo, o Partido ajudou por semanas as corajosas vítimas do gigantesco fechamento de fábricas que ocorreu em São Petersburgo, após a campanha pela jornada de oito horas. Mas todas essas medidas são, na imensa balança da revolução, uma gota de água no mar. No momento em que começa um sério e verdadeiro período de greves de massa de grande envergadura, todas as previsões e todos os cálculos de custos são tão fúteis quanto a pretensão de esvaziar o Oceano com um copo de água. Pois é de fato um oceano de privações e sofrimentos terríveis o preço que tem que pagar a massa proletária por cada revolução. Um período revolucionário resolve essa dificuldade aparentemente insolúvel ao liberar na massa tal soma de idealismo que a torna insensível aos sofrimentos mais agudos. Não se pode fazer nem a revolução nem a greve de massas com a psicologia de um sindicalista que consentiria em interromper o trabalho no 1º de maio somente na condição de que ele possa contar com um subsídio determinado previamente e com precisão, no caso de ser demitido. Mas, na tempestade revolucionária, o proletário, o pai de família prudente, que exigia garantir um subsídio, se transforma em um “revolucionário romântico” para quem até o bem supremo – a vida – e a mais forte razão, o bem-estar material, tem pouco valor em comparação com os ideais de luta”. Estes são os ideais de luta que a crescente institucionalização do sindicalismo terminou por liquidar e os quais o movimento dos Coletes Amarelos retoma à sua própria maneira.

Finalmente, e em relação ao que nós elencamos no início deste artigo, é interessante notar como a crítica que Luxemburgo formula em relação ao conservadorismo das direções sindicais e a explicação das causas materiais que geram este conservadorismo permitem igualmente retratar a situação atual que caracteriza as direções sindicais francesas: “os dirigentes sindicais, pela especialização de sua atividade profissional e pela restrição de seus horizonte, resultada da fragmentação das lutas econômicas em períodos de calma, tornam-se vítimas do burocratismo e de uma certa estreiteza de visão. Estes dois defeitos manifestam-se em várias tendências que podem se tornar fatais para o futuro do movimento sindical. Uma delas consiste em superestimar a organização e em torná-la, pouco a pouco, um fim em si mesmo, no bem supremo ao qual os interesses da luta devem estar subordinados. Isso explica também o desejo declarado de trégua, esse medo de grandes riscos a serem assumidos e dos supostos perigos que ameaçariam a existência dos sindicatos, essa hesitação diante do resultado incerto das grandes ações de massas. (…) E, finalmente, às custas de esconder as limitações objetivas que a luta sindical tem dentro da ordem social burguesa, chega-se a uma aversão direta à toda crítica teórica que chame atenção para essas limitações em relação aos objetivos finais do movimento operário.”

Frente a um “poder ilegítimo radicalizado”, o movimento operário deve mudar sua estratégia a todo custo

Como dissemos no início, sem uma generalização da insurreição dos Coletes Amarelos, o movimento não pode se transformar em revolução. Mas mesmo antes do ato IX, a ação revolucionária dos Coletes Amarelos gerou um terremoto profundo que abalou o conjunto das organizações do movimento operário tradicional, especialmente a CGT, cuja fortaleza se concentra, de fato, nos grandes bastiões do proletariado, tanto do setor público quanto do setor privado. Sem a erupção revolucionária destes é impossível ultrapassar os elementos contraditórios que caracterizam a situação atual, ou seja é, igualmente e sobretudo, impossível  vencer. Entre essas contradições, há as dificuldades em operar um salto qualitativo na estruturação democrática do movimento através de organismos de auto-organização e potencialmente de contrapoder, para atacar de forma mais direta não apenas os representantes do grande capital, mas também o próprio Grande Capital e para levar à organização da greve geral como instrumento central para minar e paralisar as bases e a ação do Estado burguês, de modo a criar condições verdadeiras para a tomada do poder pelas massas insurgentes. Em outros termos, é preciso assegurar que a insurreição dos Coletes Amarelos se transforme em uma resposta generalizada da classe trabalhadora.

Em 1905, foi através de seu gesto revolucionário que os trabalhadores russos, chamados de atrasados, puderam dar seu exemplo e educar a vanguarda do movimento operário alemão, muito mais poderosa e organizada. Hoje, as lições parciais que podem ser aprendidas com a insurreição dos Coletes Amarelos – esse grande movimento espontâneo dos setores menos contaminados pela ideologia da rotina sindical – podem servir para revigorar o conjunto da classe operária. Esse levantamento marca um antes e um depois: já colocou em questionamento todas as formas habituais da luta de classes na França; colocou em crise as modalidades de controle das lutas dos trabalhadores, tendo igualmente quebrado o tabu da intervenção política dos explorados, as modalidades de negociações secretas e descaradas com o poder, colocando também em questão as bases do poder constituído, sua legitimidade, seu papel central e regulador tanto das manifestações quanto da representação social e política. Como em 1905, todos os mecanismos de contenção estabelecidos, assim como as sucessivas armadilhas colocadas em oposição ao desdobramento do movimento dos Coletes Amarelos foram contornadas ou derrotadas. Não tanto graças a um plano pré-definido ou estabelecido, mas graças à enorme espontaneidade do movimento de massas. Os Coletes Amarelos começam a mostrar o que poderia ser um movimento de massas capaz de se transformar em sujeito autônomo e independente, senhor de seu próprio destino, rompendo com a dicotomia aberrante entre intervenção sindical e intervenção política existente há décadas no movimento operário francês: isto é, a prática de votar a cada cinco anos em nossos próprios carrascos, para logo se limitar a uma luta reivindicativa ou defensiva em resistência às contrarreformas antitrabalhadores e antipopulares que os felizes eleitos não tardam por botar em prática. Pior ainda, essa luta defensiva se faz através de calendários de ação absolutamente incapazes de fazer recuar o executivo, como se viu no decorrer dos últimos anos. Isto quando não é o caso, como no das centrais sindicais mais colaborativas, de incentivar a mera resignação por meio de negociações e consultas.

Desde a crise de 2008-2009, a estratégia de pressão das direções sindicais não conseguiu obter nenhuma vitória, mesmo que mínima ou parcial. Eis a grande diferença em relação ao movimento dos Coletes Amarelos que foi o único, até o presente, a forçar o macronismo a um recuo parcial. Conseguiu até mesmo impor uma outra agenda, contraditória à continuidade de sua ofensiva neoliberal, na medida em que se transformou no principal movimento social desde 1968, devido à sua duração, seu escopo anti-institucional e sua amplitude, embora não tenha se espalhado para todos os setores da classe trabalhadora, como foi o caso em 68.

Neste marco, e diante de um “poder ilegítimo radicalizado”, para usar a formulação de Bruno Amable em seu último artigo publicado no Libération, a questão que todo militante sindical deve se perguntar é o que fará, em última instância, o movimento operário.

Os sindicalistas honestos se veem diante de um dilema: devem continuar com o respeito à legalidade, os métodos pacíficos de lutas, clamar aos gritos que o poder constituído aceite “negociar” ou “dialogar”, ou, ao contrário, radicalizar seus métodos e sua estratégia com a mesma determinação que mostram, até agora, os Coletes Amarelos? É um dilema semelhante, porém mais agudo, que se coloca aos setores mais combativos e críticos da estratégia atual das direções sindicais, particularmente dentro da CGT: devem continuar a se queixar de maneira comedida da orientação impotente dessas mesmas direções, ou parar de se esquivar e acertar as contas, de uma vez por todas, com a burocracia sindical, recuperando as organizações sindicais para a luta de classes de maneira a criar organizações amplas com os Coletes Amarelos que permitam alcançar esses milhões de trabalhadoras e trabalhadores não sindicalizados, mas que estariam dispostos a entrar no campo de batalha, caso fossem apresentados a uma direção determinada, uma estratégia e um programa para vencer, como sugere, tal qual uma caixa de ressonância, o levante dos Coletes Amarelos?

Diante da radicalização de um poder que se parece cada vez mais com uma “democracia iliberal” como a de Viktor Orban na Hungria – que Macron denuncia da boca pra fora, enquanto na França implementa medidas ainda mais arbitrárias que as propostas pelo primeiro ministro húngaro –, o que defendia Leon Trotsky em março de 1919, no Manifesto da Internacional Comunista para os trabalhadores do mundo inteiro, adquire uma atualidade singular: “Na verdade, nas questões fundamentais das quais depende o destino das nações, é uma oligarquia financeira que governa nos bastidores da democracia parlamentar. (…) Exigir do proletariado que, em sua última luta de morte contra o capital, ele respeite piedosamente os princípios da democracia política, equivale a exigir de um homem, quando este defende sua existência e sua vida contra bandidos, que ele respeite as regras artificiais e convencionais do boxe francês, instituídas por seu inimigo que não as respeita”. Através de sua luta, os Coletes Amarelos começaram a evidenciar essa realidade e a compreendê-la. É imperativo que o movimento operário como um todo tome para si esta conquista e os acompanhe.

Notas:

 [1] A distinção entre Oriente/Ocidente é utilizada por Gramsci para analisar as diferenças evidenciadas entre diferentes tipos de sociedades e no papel do aparato Estatal em cada uma delas. Sem se referir a uma realidade geográfica, mas aos conjuntos sócio-políticos menos articulados, como da Rússia czarista, em oposição ao “Ocidente”, ou seja, às sociedades tradicionais europeias, Gramsci escreveu em seus Cadernos do Cárcere que “no Oriente como o Estado é tudo, a sociedade civil [é] primitiva e gelatinosa; no Ocidente, entre Estado e a sociedade civil, [há] uma verdadeira relação e, em um Estado precário, se [descobre] imediatamente uma estrutura robusta da sociedade civil. O Estado [é] apenas uma trincheira avançada, atrás da qual se [encontra] uma robusta corrente de fortalezas e casamatas”. (Escrito entre novembro e dezembro de 1930).

[2] K. Yon, S. Béroud et B. Giraud, Sociologie politique du syndicalisme, Paris, Armand Collin, 2018

[3] Os autores também apontam como “ao mesmo tempo em que as arenas militantes, nas quais ocorriam discussões políticas e ideológicas, se retraiam [durante as últimas décadas], os espaços de encontros entre profissionais das relações de trabalho, sejam os que representam o Estado, os empregados ou empregadores, multiplicaram-se. Os sindicalistas se viram cada vez mais encorajados a assumir funções de técnicos e especialistas, a nível nacional, europeu ou local”.

[4] Para aqueles que são da CFDT [Confederação Francesa Democrática do Trabalho, segunda central sindical francesa] e de seu sindicalismo de acompanhamento, os autores mostram como “nos cursos da CFDT, a iniciação às técnicas de negociação se encaixa na perspectiva de desenvolver uma prática sindical contratual, ou seja, um sindicalismo capaz de fechar acordos com a patronal. Por meio da negociação, trata-se de demonstrar aos assalariados a utilidade do sindicato para defender seus interesses de forma pragmática e concreta, sem remeter à intervenção do Estado. Portanto, o objetivo prioritário atribuído aos militantes é o de procurar criar as condições de um possível compromisso com sua direção, apostando no desenvolvimento de relações de confiança com ela: eles devem demonstrar sua capacidade de chegar a acordos, para convencer o empregador de seu interesse em tornar a CFDT seu interlocutor privilegiado e em conseguir concessões para obter em troca a assinatura do sindicato”. Por outro lado, deve-se notar também que esta tendência para a institucionalização dos sindicatos também pode ser considerada como “limitada e indicativa de uma certa fraqueza. Os sindicatos têm pouco poder em empresas, filiais ou em nível interprofissional para obrigar os empregadores a negociar sobre temas que lhe parecem importantes ou para garantir que as negociações sejam bem-sucedidas. Além disso, as instituições de representação estabelecidas em diferentes escalas no mundo do trabalho não são neutras. Elas conseguiram constituir pontos de apoio para a obtenção de direitos, para um maior reconhecimento dos sindicatos no espaço público. Elas tendem hoje a tomar o lado dos empregadores, mas também das autoridades públicas – através das muitas reformas do Código do Trabalho – para estabelecer uma concepção de sindicatos como atores do diálogo social integrados à ordem gerencial das empresas”.

* Periurbano: Termo muito usado recentemente para descrever zonas localizadas entre as grandes metrópoles e o campo

[5] C. Guilluy, No society. La fin de la classe moyenne occidentale, Paris, Flammarion, 2018

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