A ofensiva reacionária dos cavaleiros de Deus: disputas ideológicas de um regime em transmutação  

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Por Matheus Manucci
Um personagem tão medíocre como Bolsonaro não poderia ter surgido como um raio no céu azul. Para além de atores já reconhecidos no seu salto ao poder, como os bonapartistas do judiciário da laia de Raquel Dodge e Dias Toffoli; articulados com a mídia e sob tutela dos militares; o agronegócio e empresários; há um outro sujeito chave na disposição de forças que levaram tal figura à direção do país.

Bolsonaro sempre abre seus discursos recorrendo-se ao chefe supremo, ao rei imaginativo que o salvou do ataque à faca e destinou-lhe a missão de salvar o Brasil da corrupção e retomar a pátria que valoriza a “família, Deus e a propriedade” contra os comunistas do PT. Deus não está ali de enfeite. Deus e Jesus estão presentes em cada discurso de Bolsonaro, sempre, e não são meras figuras simbólicas.

 

Não muito reconhecidos enquanto importante sujeitos, por vezes secundarizados e esquecidos na esquerda centrista, que se adapta cabalmente a conduta petista em relação à religião e a Igreja, eles percorrem as entranhas da sociedade civil, no mundo terreno, em contato direito com as massas em suas assembléias, círculos e reuniões. Formando base, quadros e dirigentes da salvação. São um dos principais interlocutores e agentes da dominação do futuro governo; detém a capacidade do contato direto, do domínio ideológico e da percepção de mundo de milhões e milhões no Brasil, com seus milhares e milhares de dirigentes espalhados pelo país: as igrejas evangélicas.

 

Há décadas as correntes religiosas estão num intenso processo de  mudança no Brasil. Os pastores travam uma batalha longínqua contra os padres. Há no Brasil uma competição do curral de fiéis. Nos últimos anos, os evangélicos vem vencendo a disputa, conquistando milhões de seguidores. Politicamente, são muito bem representados e articulados no Estado, em comparação com a Igreja Católica. A bancada evangélica representa a superioridade política de Malafaias e Felicianos, enquanto que a política do Vaticano foi de manter-se mais separado. Em artigo, até o reacionário Reinaldo Azevedo coloca que “se em 1970 havia 91,8% de brasileiros católicos, em 2010 essa fatia passou para 64,6%. Quem mais cresce são os evangélicos, que, nesses quarenta anos saltaram de 5,2% da população para 22,2%.”

 

Enquanto o Papa “Pop” faz demagogia com pautas progressistas tentando recuperar a base – enfrentando enorme resistência dentro do próprio Vaticano, que contém uma ala descaradamente mais de extrema-direita – as Igrejas evangélicas, aproveitando a onda reacionária que atinge a América Latina em geral, com Macri, Temer, a intervenção imperialista na Venezuela  e agora destacadamente Bolsonaro, fortalecem-se na exaltação da família, dos bons costumes, colocando como alvo e receptáculo do anticristo os LGBTs e movimentos feministas, os verdadeiros inimigos do povo e destruidores do Brasil, e não os ataques de Bolsonaro que quer fazer com que sejam os trabalhadores pobres e minorias que paguem pela crise capitalista.

 

Nos seus programas na TV aberta, como na Record de Edir Macedo – que se fortalecerá muito devido a sua devota campanha militante bolsonarista que chegou a perseguir jornalistas do Intercept Brasil  – e dezenas de outros canais, exaltam que é a adoração de Jesus Cristo e Deus, visando o paraíso, que mudará as condições degradantes de vida enfrentadas pelas massas, e não a luta na terra. A religião como fator de dominação ideológica atinge fortemente as mulheres negras, muitas chefes de família e dirigentes espirituais de suas comunidades, que enfrentam os salários cerca de 60% menores que de homens brancos, a dupla ou tripla jornada de trabalho, o assédio no trabalho. Para essas, é dado exemplos que sobem aos palcos e contam seus relatos de vida, da dívida e dificuldade à glória de pequenos e médios empresários, tudo com a força da fé.

 

22% ou mais da população é evangélica, cresceram, os católicos caíram. As igrejas evangélicas e seus pastores mafiosos, beneficiados pela isenção fiscal de sua indústria da fé, acumulam milhões e milhões de reais. Constatar esse fato não significa que a Igreja Católica é mais “progressista”, só olhar para nosso país vizinho, o “papa desconstruído” chegou a comparar as mulheres que abortam a nazistas. Somente para citar, os líderes evangélicos mais ricos são: Edir Macedo (a ordem dos bilhões, o pastor mais rico do mundo, presente na revista Forbes), Valdemiro Santiago (cerca de 400 milhões) e Silas Malafaia (300 milhões).  Eis os motivos materiais de sua ascensão política. Se no governo do PT, principalmente no de Dilma, já tinham a força – econômica e social – necessária para travar as “pautas progressistas” como o Kit Anti-Homofobia – barrado pela presidenta petista – e presidir a comissão de direitos humanos, com o medieval Feliciano, nas vésperas de Junho de 2013, agora já ocupam formalmente um ministério com Damares e todo seu obscurantismo digno da santa inquisição.

 
As igrejas evangélicas são mais fortalecidas nos setores mais empobrecidos da sociedade. Naqueles no qual, o ser humano diante da brutalidade desumana da civilização capitalista, diante do esmagamento do desemprego, entre a polícia, milícias e o tráfico, confinados a moradias que podem desmoronar com chuvas e deslizamentos, procuram uma saída para loucura da existência subordinada ao lucro e reconhecem sua humanidade em Deus. Percebem uma solução e, devotos e abnegados, buscam garantir seu espaço no céu.

 

 
“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo.”
 (Marx, na Introdução à crítica ao direito de Hegel).

 

 

Quem melhor tem noção disso, são as Igrejas Evangélicas.O próprio bispo Edir Macedo escancara sua nojeira empresarial neste vídeo. Não só ele, Damares e sua trupe sabem disso melhor do que ninguém. Se Bolsonaro tem um discurso fascistizante, Damares tem um discurso a lá ISIS versão latina. Representam uma forte visão totalizante de mundo e estão dispostos a ocupar o espaço que Deus lhe destinou. A ministra já disse que as Igrejas precisam tomar o Brasil. Os mafiosos dirigentes das Igrejas dominam a arte de persuadir milhões e milhões de trabalhadores, pobres, negros, mulheres e jovens que, diante da miséria imposta nesse sistema capitalista, que só defende a liberdade de explorar e oprimir da burguesia, buscam seu suspiro nas palavras benevolentes dos pastores, padres e nos escritos da Bíblia. Gastam de seu miserável salário que não garante nem sua própria sobrevivência com o dízimo e doações e militam pelas suas igrejas. No que se refere a militância ativa, os evangélicos também saem na frente.
Da mesma maneira que Trotski coloca o fascismo como personificação, enquanto método violento e campal na luta de classes, do jacobinismo¹ em tempos de putrefação do capitalismo, as Igrejas Evangélicas, pelo menos no estágio da crise que se encontra o Brasil, personificam os fantasmas ideológicos, com uma nova roupagem, do velho protestantismo inglês. Em tempos revolucionários da burguesia, esta religião serviu como arma contra as bases feudais da Igreja Católica à semelhança que o jacobinismo, na luta de classes, serviu ao enfrentamento à monarquia.

 

Hoje, podemos fazer uma comparação entre essas religiões, sendo o evangelismo um verdadeiro zumbi protestante, sob novas bases e novos tempos de crise e decadência da sociedade capitalista, sendo Brasil um grande palco desta desintegração. O evangelismo, principalmente suas grandes empresas como a Universal, são a representação do protestantismo na fase de putrefação do capitalismo.

 

Tanto na religião de origem Anglo-saxã como na evangélica, há um Deus verdadeiro por trás de Deus: o dinheiro acumulado. A riqueza material indica o caminho para os bem-afortunados. O empreendedorismo, o esforço e o mérito são o caminho para o céu. Poderíamos constatar nas Igrejas Evangélicas, nas declarações de suas figuras, nas lutas políticas, os germes do que seriam importantes alicerces da reconstrução de uma nova hegemonia no Brasil.
Nesse sentido, as igrejas evangélicas ocupam uma ótima posição, são os atuais dirigentes da consigna “Deus” na tríade da reação burguesa “Família, Deus e propriedade”, evocada nas crises de hegemonia e do regime, desde os tempos da reação bonapartista na Revolução Francesa, como consta no livro 18 de brumário de Luís Bonaparte de Marx. Em relação a isso podemos colocar que se configura tendências e cenários contidos mais em “potência” e menos em “movimento” das novas formas hegemônicas de dominação, aparece também possíveis choques na disputa interna e na dinâmica da correlação de forças da reação bolsonarista no seu aspecto ideológico.

 

Quem sairá ganhando e terá o maior pedaço do Estado brasileiro que transmuta-se não só no campo do bonapartismo enquanto forma prática de dominação, mas também eu seu terreno teórico e ideológico? Não podemos fazer previsões ultimatistas quanto a isso, mas isso não nega o fato de que as arbitrariedades de Deus terão um seu espaço.

 

Há uma diferença considerável do peso dos empresários da fé, tanto no terreno da estrutura como na superestrutura – são grandes empresários que detém capital e uma bancada considerável, se compararmos agora com a reação em 64, temos uma diferença qualitativa no peso dirigente do cristianismo. O Estado brasileiro, portanto, poderia estar não somente em processo de maior agudização das tendências bonapartistas como, conseqüentemente no terreno ideológico,  da transmutação do já frágil Estado laico brasileiro por traços cada vez mais Teocráticos, o que tem relação direta na tentativa de formação da hegemonia que Bolsonaro e as classes dominantes tentam configurar, em atritos e conflitos, nada ainda consolidado, muito pelo contrário, sujeito a bruscos giros e mudanças, uma vez que o governo ainda terá que passar duros ataques, como a reforma da previdência, que testará sua capacidade de dominação e de impor uma agenda liberal derrotando uma correlação de forças que não esta fechada à direita.
As Igrejas Evangélicas podem ter forte força nessa disputa, pois sustentam uma verdadeira

(…)“teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, seu ponto de honra espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua base geral de consolação e justificação.”. Outro trecho do Crítica a Filosofia do Direito de Hegel, Marx.

 

Tal leitura de Marx sobre a religião entra em consonância com vários aspectos do conceito hegemonia em Antonio Gramsci. Bom enfatizar que uma nova hegemonia está longe de se consolidar. Pois, diferentemente de muitos setores da esquerda, até mesmo os mais centristas, que já se colocam completamente céticos com a capacidade de resposta dos trabalhadores e oprimidos, e apostam todas suas fichas na via institucional e parlamentar, confiando que “setores democráticos” da burguesia vão ser oposição a Bolsonaro, de Ciro ou FHC. Vemos que a classe trabalhadora ainda não está derrotada, ainda não engoliu a reforma de previdência, nem a trabalhista e também não aceita o conservadorismo de Bolsonaro, a maioria da população é a favor do debate de gênero e sexualidade nas escolas.

 

É neste setor massivo, engolidos pela alienação religiosa que obscurece as bases sociais e históricas de nossa existência, que está contida o potencial revolucionário que só pode existir com as massas em movimento contra a ordem estabelecida. No momento, parte desta capacidade brutal organizativa e política é cooptada pelas igrejas em suas assembleias semanais, grupos de debate e discussões frequentes sobre como alcançar a graça e o paraíso.

 

A arena que decidirá, em definitivo, as novas correlações de forças e traços ideológicos de uma nova hegemonia, que ocupará o lugar do velho lulismo e consolidará as bases propagandísticas da bancarrota do regime de 88, é a arena da luta de classes, a qual os embates e disputas que ocorrem atualmente representam sua faceta super-estrutural.
Podemos ver nas Igrejas Evangélicas, nas declarações de suas figuras, nas lutas políticas, os germes do que seriam importantes alicerces da reconstrução de uma nova hegemonia no Brasil, com traços mais abertamente teocráticos. Agora, isso se consolidar, somente na experiência prática e na luta dia diária entre as classes sociais e suas diversas frações.
Listo aqui, algumas das expedições das cruzadas ideológicas que buscam representar tendências de traços de uma nova hegemonia: tirar a bibliografia do material didático das escolas; Damares e todas suas esdrúxulas declarações, desde a opiniões medievais sobre mulheres e LGBTs, como o ataque aberto contra pensamento científico, sobretudo a evolução de Darwin, considerado por Trotski um “dialético inconsciente”, além de defender que as Igrejas invadam a ciência, uma verdadeira santa inquisição; Malafaia “polemizando” com o reacionário ministro astronauta Marcos Pontes, por este dizer que religião e igreja não se misturam; os diversos exércitos de Deus, ou de Jesus, que se constituem em pelotões, ainda desarmados, de religiosos fanáticos; nosso Estado já tem vários traços teocráticos (cruzes em vários edifícios públicos, nas notas, etc).
Os governos do PT fizeram parte do crescimento das Igrejas Evangélicas ao implementar políticas que levaram a formação de mão de obra precária com a triplicação das terceirizadas, de 4 milhões para 12 milhões. Alimentou também a ilusão de que era possível a ascensão social por meio do consumo e o espírito empreendedor. Porém, aqueles que uma vez fizeram parte da base aliada do governo, como o próprio PSC e outros fanáticos religiosos da Câmara, hoje colocam na mira projetos que o PT sustentou, como o ciências sem fronteiras e aumentou o acesso, criando universidades federais e pelos programas público-privados, ambos fortemente marcados pela precarização.

 

Atacar a ciência é importante para o novo governo porque agora é preciso, como mostra a reforma do ensino médio e o Escola sem Partido, formar uma juventude que seja uma mão de obra barata, muito bem disciplinada, pela repressão do governo, pela família ou Igreja. Além disso, um Estado com uma sustentação ideológica mais inquisidora dá terreno para os ataques aos quilombolas e povos originários não-cristãos.

 

Travar uma forte luta contra o obscurantismo
O marxismo surge enquanto marxismo, finca sua lança no solo da história a partir da crítica filosófica furiosa à religião no “Introdução à crítica a filosofia do direito de Hegel”. Trata-se de escancarar a humanidade de Deus, criação do homem e fazer da “crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra.” É do embate com a dominação divina, que mantém ainda a humanidade na sua pré-história, que Marx se forja como Marx. Não há como existir o Capital e o Dinheiro e toda sua onisciência, onipresença e onipotência se não houvesse mantida as bases da religião no sistema capitalista.

 

É tradição dos revolucionários travar uma forte luta ideológica contra essa onda obscurantista e reacionária das Igrejas, livrando a humanidade da ignorância forçada e das amarras do misticismo e do peso moral que recai principalmente contra a liberdade da mulher e da liberdade de gênero.

 

Da mesma maneira que o bonapartismo, na prática, retoma uma figura arbitrária sobre o conflitos das classes – Trotski classifica o bonapartismo como  “o czarismo do século XX” ² – podemos pensar nisso a partir do terreno ideológico: o “czarismo do século XX” no plano filosófico da burguesia é representado pelo obscurantismo teocrático, uma força a se combater através de um duro embate ideológico.

 

Na civilização capitalista, as forças motrizes são movidas pela onisciência, onipresença e onipotência do Capital. Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto do Partido Comunista, colocam:

 

“Na sociedade burguesa o trabalho vivo é apenas um meio para multiplicar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista o trabalho acumulado é apenas um meio para ampliar, enriquecer, promover o processo da vida dos operários.

Na sociedade burguesa domina, portanto, o passado sobre o presente, na comunista o presente sobre o passado. Na sociedade burguesa o capital é autónomo e pessoal, ao passo que o indivíduo activo não é autónomo nem pessoal.”

 

Por isso de uma vez ou outra, as classes dominantes evocam dos túmulos do Antigo Regime, as formas de dominação e pensamento. Pois o próprio capital, por todo seu processo histórico de origem e acumulação, é amarrado a essas forças reacionárias e aos fantasmas e roupagens do passado. Aos marxistas revolucionários, cabe fazer com que os mortos enterrem os seus mortos. Para isso, devemos atuar nas entranhas da sociedade capitalistas e lutar para que potência da classe trabalhadora se expresse em movimento, enquanto sujeito político que dirigirá a destruição do sistema capitalista, na arena da luta de classes.

 

1) Pilsudski, el fascismo y el carácter de nuestra época, Leon Trotsky, 4 de agosto de 1932.

 

 

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