A Revolução Alemã faz 100 anos: lições da batalha

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Autor: Wladek Flakin

Os social-democratas e os militares preparavam-se para esmagar a revolução que a classe trabalhadora havia feito, mas esta última não tinha um partido revolucionário para dirigi-la ao socialismo. Que lições podem ser tiradas dessa sangrenta derrota?

Continuação do artigo:  100 anos atrás em Berlim: Revolução e contrarrevolução na Alemanha (http://esquerdadiario.com.br/ideiasdeesquerda/?p=686)

 

Em 4 de janeiro, o Partido Social-Democrata (SPD) demitiu o chefe da polícia de Berlim. Emil Eichhorn não era tecnicamente um policial. Era um jornalista, membro do Partido Social-Democrata Independente (USPD), que no dia da insurreição (9 de novembro) se dirigiu, encabeçando um grupo de trabalhadores, para a sede da polícia de Berlim localizada na nevrálgica Alexanderplatz, conhecido como “a fortaleza vermelha”. Eles a tomaram sem lutar, enquanto a polícia fugia. Por dois meses, Eichhorn liderou, improvisou, sua própria força policial socialista. Quando foi demitido, ele se recusou a deixar o cargo: “Eu devo meu lugar à revolução, e só vou devolvê-lo à revolução!”.

O USPD, o Partido Comunista (KPD) e, especialmente, os Delegados Revolucionários convocaram uma greve geral para defender Eichhorn. As massas viram este revolucionário chefe de polícia, que havia começado a desmantelar o aparato de perseguição e repressão contra os trabalhadores e formar sua força com voluntários socialistas, como a última conquista que restava da insurreição de novembro. Então eles foram na rua para defendê-lo. Em 5 de janeiro, meio milhão de trabalhadores entraram em greve, apesar do frio extremo. Os líderes da greve ficaram chocados – eles tinham muito mais apoio do que esperavam. Naquele dia, Ebert convocou seus partidários para uma contramanifestação no Palácio do Governo: apenas alguns milhares de suboficiais do Exército e estudantes apareceram.

O comitê de greve, entrincheirado no Fortaleza Vermelha, decidiu dar ao movimento um novo objetivo. Não era mais apenas uma questão de defender Eichhorn, mas de constituir-se como um Comitê Revolucionário formado por 53 pessoas – encabeçadas por um triunvirato: Liebknecht (KPD), Georg Ledebour (USPD) e Paul Scholze (Delegados Revolucionários) – e decretaram a demissão do governo de Ebert e a tomada do poder em suas mãos, isto é, proclamaram isto como um fato consumado antes de realizar isto na prática. No dia seguinte, cerca de um milhão de trabalhadores entraram em greve em apoio.

O Comitê Revolucionário tinha um apoio esmagador das massas, mas poucos meios para exercer o poder. Soldados foram enviados para ocupar as estações centrais de trem, enquanto os trabalhadores ocuparam vários jornais, especialmente o Vorwärts. No entanto, eles eram exceções. Duzentos marinheiros foram para o Ministério da Guerra. Seu comandante escrevera ordens de Liebknecht, Ledebour e Scholze. As apresentou ao guarda na porta, que apontou que as ordens estavam assinadas, mas faltava um selo. Os marinheiros, ainda confusos com as ilusões formais de poder, começaram a se virar para resolver o acidente e cumprir a exigência… e desapareceram na multidão. Nunca se tomou o ministério.

As massas trabalhadoras passaram um dia inteiro na rua, com frio e depois um segundo, à espera de instruções claras para a ação. O Comitê Revolucionário, envolvido em deliberações intermináveis em sua sede, não transmitiu nenhuma diretriz para eles. No terceiro e quarto dia, a frente de ataque começou a desmoronar; principalmente em condições muito urgentes, os trabalhadores tiveram que voltar ao trabalho. O Comitê Revolucionário tentou entrar em negociações com o governo Ebert, o mesmo governo que supostamente havia derrubado!

O KPD desempenhou um papel contraditório nessa insurreição mal planejada e fundamentalmente prematura. Liebknecht e Wilhelm Pieck da Central do KPD (isto é, da direção) faziam parte do Comitê Revolucionário. No entanto, Radek, enviado pelo governo bolchevique russo para aconselhar os comunistas alemães, recomendou veementemente que nenhuma tentativa fosse feita para derrubar o governo naquela época. Ele os chamou para realizar uma retirada ordenada como aquela que os bolcheviques haviam realizado depois das Jornadas de Julho em Petrogrado. Ele sugeriu a adoção de um programa de ação que iam desde novas eleições para os conselhos, até o armamento dos trabalhadores e a formação de guardas operárias, a fim de evitar um confronto precoce e preparar a próxima ofensiva. A posição de Luxemburgo nesses dias cruciais era, em primeiro lugar, opor-se à revolta como prematura para, alguns dias depois, mudar de ideia e se movimentar para apoiá-la. A história burguesa oficial frequentemente se refere aos combates em janeiro como uma “revolta espartaquista”, embora, na realidade, não fosse.

Diante do fracasso dos insurretos, Ebert e Noske só fizeram uma farsa de negociação com eles. Na realidade, durante toda a semana eles concentraram milhares de soldados dos Freikorps (contra-revolucionários paramilitares voluntários, precursores dos bandos nazistas) em torno de Berlim. Quando a greve entrou em colapso, a contra-revolução entrou diretamente na cidade.

A derrota

 

Os Freikorps invadiram Berlim, entrando em bairros operários, um após o outro. Os combates logo se concentraram no distrito onde as redações e as impressoras de jornais estavam localizadas, especialmente nas proximidades do prédio de Vorwärts. Cerca de 200 trabalhadores tinham ocupado o prédio e publicado um “Vorwärts vermelho” por uma semana. Em 11 de janeiro, eles estavam cercados por tropas contra-revolucionárias com artilharias, lança-granadas, lança-chamas e até um tanque. O orgulhoso edifício, erguido graças a décadas de doações de trabalhadores em Berlim, sofreu sérios danos devido aos bombardeios. Os ocupantes enviaram uma delegação de sete pessoas com uma bandeira branca para negociar a rendição; todos foram levados para um quartel militar vizinho e espancados até a morte. Os outros 200 renderam-se pouco depois, e só por sorte eles evitaram ser assassinados em massa.

Luxemburgo e Liebknecht acabaram se escondendo, primeiro no bairro proletário de Neukölln e depois no mais burguês de Charlottenburg. Uma patrulha contra-revolucionária os descobriu no apartamento de um amigo. Eles foram presos e levados para a sede da Freikorps no Hotel Eden, em frente ao zoológico. O oficial comandante, Waldemar Pabst, não sabia o que fazer com seus dois prisioneiros famosos. Ele ligou para o Palácio do Governo e entrou em contato com Noske, enquanto Ebert estava no mesmo escritório após a conversa. Pabst não queria assumir a responsabilidade por uma execução. Noske também se recusou a assumir a responsabilidade, temendo que ele dividisse o SPD. Esse último líder, que se autodenominou “o cão policial”, finalmente disse a Pabst: “Você deve ser responsável pelo que precisa ser feito”.

Seguindo essas ordens implícitas, os Freikorps executaram Luxemburgo e Liebknecht. Rosa foi espancada até a morte, do lado de fora do hotel; Karl foi levado para um parque próximo e baleado. Os assassinos se cobriram dizendo que ela havia sido arrastada por uma multidão, enquanto ele tinha sido baleado “tentando fugir”. Jogiches e outros comunistas reconstruíram o crime com precisão durante as semanas seguintes.

A derrota da insurreição de Berlim não significou o fim da Revolução Alemã. As lutas de massas continuaram ao longo de 1919 na região do Ruhr (Oeste), na Alemanha Central e em Berlim. Em Bremen e Munique, havia repúblicas de conselhos de trabalhadores, que tiveram uma existência curta. Os Freikorps e o SPD conseguiram suprimir cada um desses movimentos individualmente. Somente em março de 1919, em Berlim, massacraram pelo menos 1.200 trabalhadores.

Em 1920, os paramilitares de direita chegaram à conclusão de que o movimento operário havia sido completamente esmagado, de modo que não precisavam mais de sua aliança com o SPD. O golpe do general Kapp e Ludendorff foi sua tentativa de destituir Ebert e tomar o poder novamente. Eles capturaram Berlim sem resistência, enquanto o antigo governo fugiu para Leipzig e depois para Stuttgart, incapaz de encontrar tropas dispostas a defendê-los. Desesperado, Ebert e companhia convocaram uma greve geral, a primeira e única a nível nacional na história da Alemanha. Milhões de trabalhadores responderam ao chamado. O governo do golpe, sem acesso a trens e telégrafos, entrou em colapso dentro de três dias.

O governo do SPD, salvo pela greve, decretou imediatamente uma anistia para todos os golpistas. No dia seguinte, a aliança renovada entre o SPD e os Freikorps já estava assassinando os trabalhadores que formavam o “Exército Vermelho do Ruhr”, que acabara de derrotar o golpe. Lutas como essa continuaram por toda a Alemanha até 1923. O número de mortos nunca foi contabilizado oficialmente. Fontes comunistas da época estimam que na guerra civil alemã de 1919-20, o governo do SPD matou cerca de 15.000 trabalhadores.

Os social-democratas alegavam que trariam a paz e a socialização dos meios de produção, desde que conseguissem manter os radicais à distância. Eles postaram cartazes em Berlim proclamando “Socialização em movimento!”, mas os paramilitares de direita dispararam contra os trabalhadores mesmo na frente desses anúncios. Um partido fundado 43 anos antes para esmagar o capitalismo tornou-se o baluarte central do governo capitalista.

A questão do partido

Lênin explicou certa vez que o Partido Bolchevique havia forjado, ao longo de 15 anos de uma “história prática (1903-1917) inigualável em qualquer outro lugar do mundo em sua riqueza de experiência”, que consistia em uma “sucessão rápida e variada das diferentes formas do movimento: legal e ilegal, pacífica e tempestuosa, clandestina e pública; círculos locais e movimentos de massa; formas parlamentares e violentas”.

Os socialistas revolucionários do Império Alemão, por outro lado, não tinham experimentado nada mais do que uma legalidade com certas restrições entre 1890 e 1914. Cada reunião socialista oficial incluía um policial que anotava tudo o que foi dito e poderia dissolver a reunião se ele considerasse que algum orador havia violado a lei. Os agitadores socialistas aprenderam a formular suas demandas dentro desse marco legal.

Dentro do SPD pré-guerra, revolucionários como Rosa Luxemburgo deram várias batalhas. Entre elas, podemos listar a luta contra o revisionismo – em bloco junto com Kautsky e outros -; a luta contra a suposta “neutralidade” dos sindicatos que queriam impor os novos burocratas líderes, bem como contra a reivindicação de que estes gozassem de um status especial dentro do partido para vetar as decisões dos congressos da organização; depois, a partir de 1910, e desta vez enfrentando seu ex aliado Kautsky, contra a chamada “estratégia de atrito”, que buscava justificar de maneira sofisticada a renúncia aos métodos revolucionários. Mas, à medida que a ala esquerda caiu lentamente fora da organização central do partido, produto de manobras burocráticas, eles não conseguiram organizar suas próprias estruturas para fundar uma fração. No final de 1913, Luxemburgo, Mehring e Karski tentaram estabelecer sua própria publicação, a Sozialdemokratische Korrespondenz, mas foi insuficiente. Quando a guerra estourou, eles limitaram-se a enviar 300 telegramas em busca de militantes que se opunham à guerra e receberam apenas algumas respostas. Eles tiveram que construir sua organização ilegal do zero. Embora Luxemburgo, Jogiches e Karski, todos poloneses, tivessem uma vasta experiência em trabalhos conspiratórios sob o czarismo, isso dificilmente se aplicava na Alemanha.

O fundamental é que após a traição da liderança do SPD no início da guerra (1914), eles não se propuseram a fundar um verdadeiro partido revolucionário. Como Lenin explicou, sob o imperialismo a burguesia não pode governar apenas por si mesma. Tem que corromper as camadas superiores do movimento operário, os burocratas sindicais e a aristocracia operária. Assim, organizações reformistas como o SPD são transformadas em uma espécie de polícia capitalista dentro do movimento operário. No calor da guerra civil, foi isso que tornou inevitável a aliança entre os social-democratas e os Freikorps.

Mas mesmo depois de formarem sua própria organização revolucionária, os espartaquistas esperavam uma refundação revolucionária da velha sócia-democracia em vez de convocar a formação de um novo partido e uma nova internacional sem reformistas. Essa foi a lógica que os levou a ingressar, em 1917, no USPD quando este foi fundado. Essa mistura de bandeiras políticas com setores que se opunham a um programa e estratégia revolucionários, como Haase e Kautsky, que se recusaram a se opor à guerra, foi um erro histórico que só podia confundir a classe trabalhadora. Aqui há um certo paradoxo: Rosa liderou a luta contra o desvio reformista da social-democracia, que revisava o programa revolucionário e a estratégia marxista; no entanto, ela não terminou de tirar dessa luta as mesmas conclusões que Lênin tirou sobre a construção do partido revolucionário. Uma liderança revolucionária não pode ser improvisada; deve ser construída em uma disputa palmo a palmo de estratégias entre diferentes camadas e tendências da classe trabalhadora, formando os quadros que podem “aproveitar o colapso do antigo partido no poder”, como sintetizaria Trotsky em “Classe, partido e direção”. Se durante a Primeira Guerra Mundial e o início da revolução Luxemburgo não terminou de romper organizativamente com reformistas e centristas, por que deveria a base dos trabalhadores fazê-lo?

Franz Mehring, em uma carta aos bolcheviques de 1918, defendeu a tradição espartaquista, mas acrescentou o seguinte ponto:

Nós estamos apenas errados em uma coisa; ou seja, quando nos unimos organicamente ao partido independente [social-democrata] após sua fundação – é claro, mantendo nosso próprio ponto de vista – na esperança de fazê-los avançar. Nós tivemos que abandonar essa expectativa. Todas essas tentativas fracassaram porque os melhores e mais comprovados entre nós foram acusados pelos líderes dos independentes como provocadores da polícia, um belo obstáculo à “velha tática comprovada”.

Parafraseando Leon Trotsky, os trabalhadores alemães não careciam de armas ou organizações para realizar a revolução socialista. O que faltava era um partido revolucionário. Seria um exagero completo dizer que Luxemburgo realizou uma “teoria da espontaneidade” e acreditava que os trabalhadores poderiam consumar a revolução sem qualquer orientação política. No entanto, ela permaneceu convencida de que os trabalhadores, após a traição dos líderes reformistas, criariam uma nova direção no calor da batalha. A tentativa de fundar o KPD no momento em que a revolução estava em andamento acabou se atrasando. Luxemburgo e seus camaradas teriam necessitado de mais tempo para forjar um programa e os quadros necessários que dessem carne e osso ao partido.

Paul Levi – advogado de Luxemburgo, que a sucedeu como líder do KPD depois de seu assassinato – “disse em 1920 que o principal erro dos revolucionários alemães tinha sido sua recusa em se organizar de forma independente antes de 1914, mesmo que a organização tivesse que ser como uma seita”. (Pierre Broué).

Cerca de vinte anos depois, o trotskista alemão Walter Held explicou que:

Enquanto a concepção leninista de 1903 encontrou sua maior confirmação na planejada insurreição de outubro, a concepção de Rosa sofreu um terrível naufrágio em janeiro de 1919, e a esquerda alemã nos deixou, além de uma série de personagens notáveis e mártires da causa, apenas a amarga lição de uma nova derrota.

Conclusão

 

A insurreição de Berlim, derrotada no início de 1919, mostra a dialética da história. Durante décadas, a classe trabalhadora alemã trabalhou para construir estruturas para lutar pela sua libertação: jornais, sindicatos, associações de todos os tipos e seu próprio partido político, com forte presença no parlamento. No entanto, na ausência de uma estratégia clara para conquistar o poder através da luta revolucionária, e com a expectativa de crescimento lento em direção ao socialismo, esses mesmos instrumentos de libertação acabaram se tornando armas contra os trabalhadores. Foram as estruturas social-democratas construídas pelos sacrifícios de gerações de trabalhadores que salvaram o capitalismo da onda revolucionária de 1918-19.

A Revolução Alemã mostra que toda revolução proletária criará estruturas de auto-organização como conselhos. Essas estruturas, sejam elas chamadas Räte ou sovietes ou qualquer outro nome, são necessárias para levantar a questão do poder. Mas a formação de conselhos em toda a Alemanha não foi suficiente para garantir o poder para a classe trabalhadora. Um partido revolucionário que trabalhe dentro desses espaços de auto-organização é necessário para que a maioria da classe trabalhadora dê golpes decisivos na burguesia e seus agentes. Os conselhos dirigidos pelos reformistas eram piores que inúteis.

Em números absolutos, não havia muitos Freikorps na Alemanha. No entanto, eles tinham a vantagem decisiva de estar organizados centralizadamente. Eles poderiam se mover de uma cidade para outra, esmagando o movimento revolucionário onde quer que ele crescesse. Os trabalhadores, por outro lado, tiveram que lutar com os escassos recursos que tinham localmente. Muitos trabalhadores, influenciados pelo USPD, acreditavam que seria possível criar um sistema que conciliasse conselhos com o parlamento. Portanto, estavam dispostos a negociar com o governo do SPD e seus paramilitares de direita, que, pelo contrário, não tinham ilusões sobre a possibilidade de chegar a um acordo.

A revolução terá um novo combate prematuro em 1921, e então, em 1923, ressurgiu abertamente e foi novamente derrotada. Foi o resultado das derrotas destas lutas e o resultado dos confrontos assim como das lutas não dadas (aqui como um papel fundamental do stalinismo) nos últimos dias da República de Weimar que possibilitará o triunfo do nazismo. À sua maneira, por causa da recusa, os social-democratas mostraram que Luxemburgo estava certa: a alternativa era “socialismo ou barbárie”. A social-democracia salvou a Alemanha do “bolchevismo”, mas a custa de entregar o país à barbárie facista.

Traduzido de: http://www.laizquierdadiario.com/La-Revolucion-alemana-hace-100-anos-lecciones-de-batalla

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