DSA: socialismo ou “assimilação gradual” ao Partido Democrata?

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imagem: Juan Chirioca

por Fernanda Montagner

 

 

As eleições burguesas podem expressar de forma distorcida, eleitoral, a correlação de forças entre as classes. Vimos, encavalados, dois processos eleitorais marcados pela crise orgânica e de transcendência mundial: Brasil e Estados Unidos. Trataremos aqui de alguns resultados oriundos das eleições de meio de mandato nos EUA, a alta votação em candidatas mulheres, o primeiro candidato declarado gay e candidatas muçulmanas, como uma expressão eleitoral do rechaço ao governo Trump; e, em especial, do DSA, corrente autodenominada socialista, com alguns membros eleitos como parte desse novo entusiasmo pelo socialismo e rechaço ao governo republicano.

 

Partimos da pergunta: o que significaria o socialismo no principal imperialismo mundial? Primeiro, que a classe trabalhadora, hegemonizando a pequena burguesia em crise e os setores oprimidos, deve conseguir derrotar uma das burguesias mais fortalecidas do planeta e, para isso, precisa de uma estratégia. Segundo, que pelo próprio desenvolvimento do capitalismo em um país imperialista, a tarefa de socialização e desenvolvimento das forças produtivas, por um lado, se dará sob bases muito mais avançadas, mas, por outro, a burguesia possui muitas formas de cooptação e manobras. Por isso é tão fundamental construir correntes socialistas com independência de classe e profundamente internacionalistas.

 

Sob essa perspectiva, olhemos o recente processo eleitoral norte-americano. Pela primeira vez na história americana, 100 mulheres foram eleitas para a Câmara Baixa. Além disso, Ayanna Pressley será a primeira afroamericana a representar Massachusetts, a nova-iorquina Alexandria Ocasio-Cortez, latina, de 29 anos, do Partido Democrata, tornou-se a deputada mais jovem da história dos Estados Unidos. Verônica Escobar e Sylvia Garcia serão as primeiras hispânicas a representar o Texas no Congresso, e Debbie Murcasel-Powell, que tem origem equatoriana.

 

Ilhan Omar, nascida na Somália em 1981, e Rashida Tlaib, filha de imigrantes palestinos, serão as primeiras muçulmanas no Congresso. Além disso, em janeiro, dois nativos americanos vão sentar-se pela primeira vez na Câmara dos Representantes: Deb Haaland (Novo México) e Sharice Davids, que também será o primeiro deputado abertamente LGBT do Kansas no Congresso. São todas figuras nas quais a votação expressa um rechaço a Trump e parte do fortalecimento de movimentos identitários, principalmente o de mulheres.

 

Outra característica dessas eleições de meio de mandato foi o expressivo aumento de eleitores em comparação a anos atrás. Um milhão e meio de pessoas votaram na terça-feira, contra 600 mil em 2014, um aumento de mais de 50% (no chamado “early vote”, ou seja, os votos que caem nas urnas antes do dia da eleição; os números também registraram recorde: mais de 25 milhões de votos, frente aos 13 milhões de 2014). Esse aumento é fruto da politização dos últimos anos e um reflexo distorcido – porque ainda se dá principalmente no âmbito eleitoral e num partido imperialista como os Democratas – da vontade de combater a política de Trump, xenófoba, racista e ultraconservadora, refletindo também como as pessoas vêm enxergando a política como um espaço relevante e fundamental de disputa e combate.

 

Vista globalmente, essas eleições de 2018 configuram um revés parcial a Trump, já que os Republicanos perderam a Câmara dos Representantes para os Democratas; entretanto, este foi um revés incapaz de aplicar uma derrota dura ao trumpismo: Trump se fortaleceu no Senado, e a “onda azul” (cor dos Democratas) foi bem menor do que se esperava.

 

Assim, retornamos à primeira pergunta: o que isso significa para os socialistas? E, ademais, que ideia de socialismo cresce nos EUA?

 

O Democratic Socialists of America (DSA), que não é parte, mas atua através do Partido Democrata, teve avanços importantes com candidatos de destaque, como Ocasio-Cortez em Nova York, Ayanna Pressley em Boston e Rashida Tlaib em Michigan. A vitória de Salazar, que derrotou Martin Dilan na corrida do Senado estadual, é a mais emblemática para o debate. Dilan tinha oito anos de mandato e era o favorito das empresas imobiliárias de Nova York. Nos últimos 20 anos, recebeu cerca de US$ 325.000 em doações de proprietários – mais do que quase qualquer senador estadual. Salazar, por outro lado, fez campanha proclamando como não aceitou doações corporativas. Salazar venceu com uma maioria de 59% e vai concorrer sem oposição nas eleições gerais, garantindo um lugar no Senado do Estado de Nova York.

 

A votação em Salazar é a mais interessante, pois a candidata foi a que expressou uma campanha mais à esquerda, afirmando abertamente querer acabar com a propriedade privada, e dizendo que é “socialista democrata”, ao contrário até mesmo de Ocasio-Cortez, uma das principais figuras do DSA. Dessa forma, essa votação expressa – mais uma vez de maneira distorcida – um sentimento à esquerda difundido em setores de massas dos Estados Unidos (especialmente vinculados aos direitos das mulheres, negros, latinos e LGBT, em áreas urbanas e suburbanas).

 

Mas o quanto de fato essas posições que a esquerda conquistou conseguirá fortalecer a luta dos trabalhadores sob uma perspectiva de ruptura com o capitalismo?

 

É preciso assinalar, em primeiro lugar, o movimento de enormes camadas da juventude em direção à esquerda e, particularmente, a simpatia que vem nutrindo pela ideia do socialismo (ainda que seja concebido de forma confusa), após a Grande Recessão de 2008. Nos Estados Unidos, jovens com menos de 30 anos classificaram o socialismo mais positivamente do que o capitalismo – 43% a 32% – em 2016. Com base nesse descontentamento com a política tradicional, em 2016, a campanha do senador “socialista democrático” Bernie Sanders ganhou milhões de votos com a promessa de uma “revolução política contra a classe de bilionários”. O DSA cresceu de aproximadamente 7.000 membros em 2016 para 46.000 em julho de 2018, tornando-se a maior organização autointitulada socialista desde os anos 50. Esses dados colocam a potencialide de espaço à esquerda.

 

Contudo, já vimos as pressões do Partido Democrata sobre o DSA e suas principais figuras. Basta ver o caso de Ocasio-Cortez – que disse ser favorável a uma solução de dois Estados em Israel, naturalizando o massacre desse Estado terrorista e colonialista contra o povo palestino; também falou sobre substituir o Serviço de Imigração e Controle de Alfândega (ICE, na sigla em inglês) por um “mais humano” Serviço de Imigração e Naturalização (INS em inglês), negando-se a rechaçar abertamente qualquer interferência repressiva estatal nos direitos políticos e sociais plenos dos imigrantes. Cumpre dizer que Ocaiso-Cortez passa por alto um princípio básico dos socialistas, o internacionalismo proletário, que busca abolir de maneira revolucionária as fronteiras nacionais impostas pela burguesia para dividir a classe trabalhadora.

 

As políticas de Ocasio-Cortez estão ligadas à sua concepção de socialismo democrático (que é a concepção do DSA e de distintos setores de jovens que se aproximam inicialmente das ideias socialistas): “Eu acredito em uma América rica e moral, em uma América rica e moderna, ninguém deveria ser pobre demais para viver neste país”, disse Ocasio-Cortez a Meghan McCain, no The View. Muitos dos líderes nacionais e regionais do DSA vieram a público expor a sua versão de socialismo democrático, após afirmações como essas. Na época, Julia Salazar foi categórica afirmando que “um socialista democrático reconhece o sistema capitalista como sendo inerentemente opressor e está ativamente trabalhando para desmantelá-lo e para empoderar a classe trabalhadora e os marginalizados em nossa sociedade”.

 

Apesar dessa afirmação de Salazar antes das eleições, o que a realidade vem mostrando é uma diluição do Democratic Socialists of America no Partido Democrata, aceitando a pressão do regime para sua assimilação. Isso só é possível pela própria característica difusa dessa expressão neorreformista nos EUA. O DSA é uma organização “guarda-chuva”, com objetivos primordialmente eleitorais ainda que presente em determinadas lutas sociais. Inclui desde democratas progressistas até anarcosindicalistas. A direção do DSA, em boa medida, considera que usar a legenda de um partido imperialista como o Partido Democrata é uma manobra para “se esquivar do sistema bipartidário”, para que suas concepções tenham mais destaque nas eleições.

 

O slogan dos “99% contra o 1%” é comumente utilizado pelo DSA. Expressa a ideia de um “socialismo” para responder a um capitalismo financeirizado, em que a luta não seria mais dos trabalhadores contra a burguesia, mas sim da população contra os super-ricos. Nessa ideia de socialismo se cria uma espécie de nova divisão de classes, na qual se inclui todos, menos o 1% mais rico, ou seja, o definidor não é mais a localização na produção e a necessidade de uma classe ter que vender a sua força de trabalho, enquanto outra detém os meios de produção. Mas, sim, um critério de renda e de afetados pela crise, que vai desde um microempresário de classe média ao trabalhador precário, ou seja, o DSA não luta por uma concepção clara de um partido revolucionário, dirigido pela classe trabalhadora, com independência de classe munido de um programa anti-imperialista para acabar com a exploração capitalista.

 

Por essa razão, o DSA não está isento de se tornar um mecanismo de contenção do regime político a esta base que está à sua esquerda (e nem falar frente ao Partido Democrata). Isso porque, nos EUA, coloca-se ainda mais na ordem do dia que os socialistas levantem uma política de unidade dos trabalhadores internacionalmente, lutando contra sua própria burguesia imperialista opressora, apoiando os imigrantes, mas também as lutas operárias em outros países, com importante destaque ao caso do Brasil, que viveu uma eleição manipulada em que, com a vitória de Bolsonaro, expressa-se uma política mais subserviente e entreguista.

 

Essa concepção não cabe nesse dito socialismo de Ocasio-Cortez, “onde ninguém deve ser pobre demais para se viver”, sem questionar o modo de produção capitalista, a opressão imperialista e o nacionalismo econômico de Trump.

 

Os setores oprimidos e sua unidade estratégica com a classe trabalhadora

 

Outro ponto a se destacar é sobre o interessante fenômeno de votação das “identidades oprimidas” no capitalismo. Esse fenômeno coloca a potencialidade de expressar um descontentamento social com a política trumpista, mas, sem uma estratégia anticapitalista, essas tendências podem ficar inscritas dentro de uma política eleitoral. Advogar o espírito de inclusão e o “lugar de fala” dentro do regime não é suficiente para se chocar com o regime imperialista. Já vimos que, desde a vitória de Trump, o movimento de mulheres tem tomando um papel ativo, contudo, bastante controlado pelo próprio partido Democrata.

 

Essa força e revolta dos setores oprimidos deve ser um motor para se ligar e ativar o movimento operário, tal como foi a onda de greves docentes nos EUA em 2017, chamada de “primavera dos professores”, que recolocou no seio do imperialismo a luta da classe trabalhadora. Uma ligação explosiva, se for guiada justamente no sentido do combate ao “próprio” imperialismo e com uma estratégia socialista entendida como articulação de volumes de força real para aniquilar o capitalismo pela via revolucionária (que implica a construção de um partido operário leninista, e não um “partido socialdemocrata pré-1914”, como defendem setores do DSA). Essa estratégia supera a lógica de movimentos de pressão, que guardam expectativas de que “de luta em luta” é possível ir aos poucos incluindo as chamadas “minorias” e melhorando o capitalismo “contra o 1%”.

 

Sem o DSA romper claramente com essa ideia de um suposto socialismo “dignificador do capitalismo”, que na pratica é a ideia de um capitalismo melhor e mais humano aos norte-americanos, essa força das mulheres, negros e imigrantes será desperdiçada eleitoralmente. E ficará diluída nas disputas internas do Partido Democrata, que se mostrou uma máquina especializada em integrar e neutralizar todo movimento social ou de trabalhadores que lhe ameaçou pela esquerda (como durante a luta pelos direitos civis na década de 1960 ou do movimento antiguerra durante a Guerra do Vietnã), suficientemente flexível para dar lugar a Salazar sem alterar o fato de representar os interesses da força mais poderosa do mundo: o imperialismo norte-americano.

 

O marxismo não é um instrumento para se ganhar eleições: é um guia para vencer na luta de classes

 

O programa de 1848 de Marx, “trabalhadores do mundo, uni-vos”, tão mundialmente conhecido, mas tão esquecido pelo neorreformista. O abandono da revolução como fim político coloca em primeiro plano o “encanto das reformas”, de discursos como de Ocasio-Cortez e da cooptação eleitoral que tem sido uma marca do neorreformismo mundialmente. Não aprofundaremos aqui, mas é sabido o desfecho do governo Syriza como agente dos planos de austeridade, o PODEMOS espanhol se integrando ao regime, e mesmo expressões como o PSOL, no Brasil, que em nada conseguiu ser uma alternativa com independência de classe ao petismo e toda sua adaptação às eleições manipuladas frutos do golpe institucional de 2016.

 

A principal conclusão desse “desfecho eleitoral” é que as expressões políticas neorreformistas são ou fruto da derrota da luta de classes, como mais claramente o Syriza na Grécia, ou resultado de uma situação em que a correlação de forças entre as classes não se fecha nem à direita nem à esquerda e, na falta de organizações de esquerda radicais e revolucionárias, o sentimento de combate e revolta contra a política tradicional, os ataques e a miséria capitalista, acaba se expressando de forma eleitoral e distorcida.

 

Nesse sentido, o projeto neorreformista não cumpre nenhum papel para romper essas ilusões institucionais que ainda existem na população. Como um dos principais exemplos de parlamentarismo revolucionário no mundo, a Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT) na Argentina, na qual o PTS é uma força determinante, atua no parlamento para fortalecer as lutas extraparlamentares, desmascarar a burguesia e denunciar seus ataques, e como uma tribuna dos interesses populares e dos trabalhadores, lutando para romper as ilusões institucionais na democracia burguesa e transformar a força expressa em milhões de voto em força material, militante, nas lutas.

 

Justamente o processo inverso que o neoreformismo, como na Grécia e no Estado espanhol, onde serviu de canal de desvio da luta de classes depois da derrota de processos de luta, integrando o descontentamento ao regime burguês. O DSA ruma no caminho oposto ao da Frente de Esquerda argentina; e o exemplo necessário vem da América Latina.

 

A candidatura de Salazar ainda está por se provar. Contudo, pelo andar do processo eleitoral e tomando a experiência de outras figuras, como Ocasio-Cortez, a tendência é de adaptação. Em agosto deste ano, Ocasio-Cortez participou da conferência Netroots Nation ao lado de potenciais candidatos à presidência em 2020. Seu discurso foi de unidade e conciliação: “Discurso não é discórdia. Famílias podem discutir, e está tudo bem, porque saímos mais saudáveis do outro lado”, disse. E fechou com uma hiperbólica “nós somos o partido de King, de Roosevelt, daqueles que foram à lua, que eletrificaram a nação, que conseguem os grandes sucessos e joias da coroa da nossa sociedade”.

 

Um discurso sem nenhuma independência de classe e adaptado aos democratas, trata-se de mais um exemplo da extraordinária capacidade do Partido Democrata de cooptar progressistas e movimentos sociais. Nesse momento, construir uma organização socialista nos EUA deve passar por assimilar profundamente o “trabalhadores do mundo, uni-vos” dito por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista; uma unidade estratégica para a construção de partido revolucionário (e não mais um espécime reformista) no coração do imperialismo mundial.

 

Diante da crise imigratória e da caravana de imigrantes que ruma aos EUA e contra a qual Trump já ameaçou de usar a força do exército, é preciso construir uma força socialista com independência de classe e com o internacionalismo como princípio fundamental para não ser cooptado pela burguesia democrática imperialista e lutar pela liberdade dos povos de todo mundo do jugo imperialista. E também pela expropriação sob controle operário das impressas imperialista, o fim do saqueio das riquezas nacionais dos outros países e da exploração da força de trabalho dos países da periferia capitalista.

 

A revolução mundial não vai se dar por fora de países como Brasil, Argentina, Egito e tantos outros que têm os Estados Unidos como figura opressora e exploradora. A classe trabalhadora americana tem o papel histórico de lutar contra sua própria burguesia, e só nessa perspectiva que o socialismo pode se desenvolver para ter êxito.

 

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