Crítica marxista e os contadores de histórias revolucionárias

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imagem: Juan Chirioca

Por Afonso Machado

Na crista da onda conservadora naufraga aparentemente o pensamento crítico. Mas o oceano da extrema direita não apresenta nenhum horizonte nas praias da teoria precisamente porque sua vista é curta, medíocre, autoritária, lacônica, intolerante no comprimento e na largura. Como não poderia deixar de ser a atual conjuntura política impinge nos marxistas indignação, temor e até desespero. Mas sinceramente não existem razões históricas para o medo diante de mais uma coqueluche anticomunista no Brasil. Além de não podermos fazer feio perante as gerações de militantes que nos antecederam( muito especialmente a geração de 1930/40 que enfrentou em diversas partes do mundo o fascismo, e a geração de 1960/70 que resistiu às ditaduras militares na América latina)  precisamos encarar com objetividade a falsa realidade petrificada descobrindo suas fissuras, suas brechas. Nesta operação política as palavras desconstroem ídolos fascistas precisamente porque enquanto formas de percepção social elas podem interromper a narrativa da classe dominante, impressa ideologicamente nas redes sociais, na mídia capitalista, no fundamentalismo religioso etc.  

 Diante da evidência dialética de que novas situações políticas geram necessariamente novas contradições sociais, as ideias marxistas mantém, independentemente da crise da esquerda brasileira e mundial, sua eficácia no exame das questões econômicas, políticas e culturais. Em sua juventude Karl Marx chamara atenção para o fato de que é inútil censurar ou reprimir ideias, afinal estas não podem desaparecer enquanto elas não se realizarem no mundo. Ainda que o Congresso seja fechado, a Constituição rasgada e a censura imprensa decretada, palavras que exprimem ideias políticas continuam a existir. Palavras que influem sobre a realidade não podem ser totalmente controladas, seja sobre o mentiroso sol da democracia burguesa , seja dentro da horripilante noite da clandestinidade. A crítica do materialismo histórico dialético não caiu em desuso  porque além de fornecer um método eficaz para a compreensão da história, apresenta uma análise que ainda explica os mecanismos geradores da exploração e da miséria. Independentemente do histerismo da extrema direita, a narrativa marxista permanece e continua a ecoar enquanto força política. Longe de ser uma aposta ou  um ato de fé, o marxismo envolve uma constatação objetiva baseada nas contradições da realidade que não é estática, uniforme. Todas as classes dominantes ao longo da história, inclusa a própria burguesia, desejaram que sua ideologia e privilégios fossem eternos, imutáveis. Todavia o método científico demonstra e comprova que a história é um processo permanente de transformações. Seria risível tentar convencer um capitalista disso, e os marxistas não possuem tal intenção. É ao próprio movimento dos trabalhadores que interessa as narrativas revolucionárias , cuja significação reside na formulação de uma nova sensibilidade, de uma nova percepção acerca da vida social.

   A necessidade de contar histórias revolucionárias, ou ao menos expressar os dramas coletivos de acordo com a perspectiva da dialética materialista, coloca sérias responsabilidades literárias sobre os marxistas que agem sistematicamente no plano da cultura, da produção ideológica. As relações entre História e literatura devem ser corretamente problematizadas pelo fato da crítica literária necessária não se caracterizar apenas pela compreensão histórica da literatura, mas como afirma o crítico inglês Terry Eagleton em sua obra Marxismo e Crítica Literária(1976), por uma concepção revolucionária da história. O alienante ritmo das prateleiras leva dentro da imprensa capitalista a um entendimento domesticado da produção literária. É como se a função da crítica fosse meramente qualificar, valorar determinadas expressões literárias, atendendo aos consumidores cultos que desejam saber se este ou aquele romance “ presta “. Fazer do crítico sinônimo de degustador é estabelecer uma relação pobre, superficial com a literatura que encontra-se escravizada pelo mercado. 

A crítica literária marxista deseja compreender por um lado as implicações estéticas e logo os significados históricos de uma obra; e não importa se estamos falando de um poema novo em folha ou de um poema de William Shakespeare, se estamos falando de um romance embasado na teoria da arte pela arte ou na teoria do engajamento político. A dialética materialista dá conta do recado ao explicar todas estas e outras situações literárias. Mas se hoje assistimos a uma tempestade conservadora que impulsiona a precarização das relações de trabalho, o aumento da fome no mundo e a criminalização da crítica de esquerda, é legítimo que os marxistas sintam a necessidade ideológica de reabilitar a questão da literatura revolucionária: para a luta política não bastam informações históricas ou análises sociológicas se homens e mulheres do povo não experimentam no seu cotidiano histórias que despertam sentimentos de mudanças. Todavia as narrativas que interferem sobre a realidade material de seres assalariados, não cumpririam seu papel libertador sem o conhecimento científico da sociedade, sem um entendimento materialista do processo histórico. 

 Na formação política e cultural da classe trabalhadora, hoje carente de símbolos históricos e apartada da memória de suas lutas, os narradores engajados precisam  reescrever a história, ou ao menos, a história recente do Brasil. Isto é politicamente mais urgente do que se possa supor. É recorrente encontramos no cotidiano trabalhadores que orientam-se na realidade social a partir das narrativas da extrema direita: a coloração verde e amarela das Fake News disseminadas em vídeos e textos, falsifica constantemente a história do Brasil. Ignorando aonde e quando ocorreram supostos fatos históricos, as narrativas conservadoras disseminadas pela internet jogam com sentimentos patrióticos para lidar, por exemplo, com o período da ditadura militar(1964-85). É assim que encontramos gente humilde e explorada reproduzindo tais narrativas, segundo as quais somente  “vagabundos e maconheiros “  sofreram durante a ditadura. Este escandaloso exemplo de ignorância só confirma a necessidade cultural de contadores de histórias da luta de classes. 

                     No limiar entre a literatura e a Ciência histórica 

Contar histórias é um ato político que se faz a partir de construções artísticas dentro da história. Para o escritor atento à influência dos processos econômicos na escultura da sua narrativa, resumir séculos num único paragrafo ou narrar em capítulos um único dia na vida de um trabalhador, pressupõe técnicas de pensamento em que a formalização dos conteúdos históricos converte-se num gesto bélico na batalha ideológica. Tanto a Ciência histórica quanto a literatura lidam pela estruturação formal com a visualização dos dramas coletivos.  Narrar é uma ação no tempo e no espaço ainda que ela se refira a outros tempos e outros espaços(inclusive tempos e espaços fantasiosos). Para os escritores que buscam representar ou relatar os conflitos entre determinadas classes sociais, não existem razões para temer a ultrapassagem dos limites entre a criação literária e a metodologia científica. Se tomarmos como exemplo o modelo de romance social apresentado pela literatura brasileira entre as décadas de 1930 e 1940, encontramos como recurso recorrente a forma da reportagem social para estruturar na obra literária a exposição das realidades econômicas, dos problemas sociais e dos conflitos políticos do país. Foi o crítico Antônio Cândido que ao comentar o romance Terras do Sem Fim(1943)  de Jorge Amado, afirmou: (…) “ Chegamos, por assim dizer, à fórmula estética do Sr Jorge Amado. Documento e poesia se fundem harmoniosamente através do romance histórico “(…). As lutas, os interesses políticos e os crimes em torno da posse da terra na região cacaueira no sul da Bahia durante o início do século XX, são os elementos históricos com os quais o célebre romancista brasileiro trabalha para construir o enredo do seu livro. Ainda que em boa parte dos romances de Jorge Amado existam insistentes incursões pelo território das distorções históricas do Realismo Socialista, o que naturalmente compromete em vários momentos a veracidade dos retratos literários, não se pode negar que o autor baiano é um notável contador de histórias revolucionárias. 

  No moderno romance social nota-se assim, a partir de uma proposta realista, a necessidade de articular a expressão artística com a documentação da vida social. A postura literária  em que uma história é narrada dentro da perspectiva documental da realidade, foi recorrente entre muitos autores marxistas interessados em expor os fatos históricos com ritmo literário. É o que observamos na obra de escritores como o jornalista norte americano John Reed e o teórico e revolucionário russo Leon Trotski. Logicamente que não temos aqui a intenção de defender um restrito diagnóstico estético para a literatura. O que nos parece importante no atual momento, em que narrativas mentirosas orientam a realidade de muitos nas redes sociais,  é valorizar possíveis encontros entre a imaginação literária e a metodologia materialista da Ciência histórica. Trata-se de um caminho para a elaboração de histórias que contribuem com o pensamento crítico. Longe de formarem uma receita literária fechada, estas intersecções entre romance e História propiciam relevantes possibilidades criadoras. Especulemos algumas destas possibilidades.  

 Enquanto personagem de uma obra literária, um camponês francês do fim do século XVII poderia receber diferentes abordagens no seu destino individual. “ Pierre “ poderia ser um personagem imaginário que em sua trajetória individual contrasta, independentemente de suas pequenas alegrias e grandes malogros, com o luxo da corte de um personagem histórico, isto é, o rei Luiz XIV. Mesmo enquanto ser inventado, cujas personalidade definida demanda uma vida ficcional desenvolvida, o personagem “ Pierre “ torna-se parte integrante de um quadro coletivo, no qual ele é um homem explorado. O contexto histórico não é pano de fundo mas o produto das forças sociais que formam o personagem, logo sua situação e posição de classe. A condição miserável do campesinato francês no referido contexto e seu antagonismo com a nobreza, são comprovados em seu impacto estético pelo economista belga Ernest Mandel na sua obra Introdução ao Marxismo(1978), através de um fragmento literário que ele retira dos “ Caractéres “ de La Bruyére: (…) “ Espalhados pelos campos veem-se certos animais bravios, machos e fêmeas, negros, lívidos e requeimados pelo sol, agarrados à terra que escavam e revolvem com uma obstinação invencível; tem como que uma voz articulada, e quando se erguem sobre os pés, mostram uma face humana; e , com efeito, são homens. Retiram-se à noite para as tocas, onde vivem de pão negro, de água e raízes “(…). Os escritores que possuem compromisso histórico deparam-se com possibilidades de representar o personagem de uma classe dentro do desenvolvimento de panoramas coletivos de uma determinada época: os dados econômicos expressam situações sociais que assumem uma forma literária. É este o tecido histórico sob o qual o escritor trabalha para representar a realidade.

 “ Natália “, uma outra possível personagem imaginária, poderia ser uma das inúmeras Natálias presentes na Revolução de Fevereiro na Rússia de 1917. De acordo com o objetivo de representar o avanço político do proletariado russo, encontramos um caminho épico no qual “ Natália “ é uma das inúmeras operárias em luta. É neste sentido que a prosa que Trotski apresenta em A História da Revolução russa torna-se um caminho interessante: no primeiro volume da trilogia publicada entre 1930 e 1933, o autor pinta com palavras o movimento coletivo das massas. Um exemplo disso surge na reconstituição dos eventos ocorridos entre os dias 23 e 27 de fevereiro de 1917: (…) “ No dia seguinte, o movimento longe de apaziguar, dobrou em intensidade- cerca da metade dos operários industriais de Petrogrado declarou greve no dia 24 de fevereiro. Os trabalhadores compareceram às fábricas pela manhã, porém, em vez de começar a trabalhar, organizaram meetings e, à saída, dirigiram-se para o centro da cidade. Outros bairros e outros grupos da população aderiram ao movimento. A palavra de ordem “ pão “ desapareceu ou foi abafada por outras fórmulas: “ Abaixo a autocracia !“ e “ abaixo a guerra ! “ (…) Os manifestantes mantiveram-se com todas as forças, sem arredar o pé. “ Não vão atirar “. E, com efeito, não atiraram “(…). A partir desta forma de representação, “ Natália “ não seria uma heroína solitária pois ela é parte do herói coletivo chamado classe operária, ou seja, as massas formam o personagem revolucionário.

 “ Pierre “ e “ Natália “, ambos nomes de possíveis personagens anônimos de épocas e lugares diferentes. Ambos vitimas do absolutismo. A segunda poderia ser uma militante operária que, segundo o trajeto da pena de um possível romancista, teria sido golpeada pela lança de um cossaco nas manifestações de rua em Petrogrado. Ela poderia ainda ser uma mulher receosa, temente ao poder do Czar Nicolau II e ter ficado em casa durante as manifestações operárias. Já o primeiro personagem poderia rebelar-se contra a miséria, sendo preso e morto pelas autoridades do rei. Se o enredo da história do camponês “ Pierre “ não se passasse no século XVII mas o final do século XVIII, ele poderia ser um dos enrangés que no bojo da Revolução francesa ateava fogo nos castelos e exterminava a nobreza com as próprias mãos. As inúmeras possibilidades para o destino de personagens fictícios em cenários reais não poderiam nunca existir, para a literatura politicamente engajada, de fora do desenvolvimento histórico: o “ Pierre “ que se insere no processo revolucionário francês iniciado em 1789, estaria num contexto em que a burguesia revolucionária e o campesinato, em seus interesses antagônicos, lutam juntamente pela destruição dos resquícios da ordem feudal. Já a “ Natália “ de 1917 é uma operária num país em que a burguesia era muito frágil, chegou tarde demais para a história(Trotski) , cabendo ao proletariado concentrado dos centros urbanos a incumbência política de destruir o absolutismo do Czar. 

                  Narrativas históricas e consciência de classe

 Se a narrativa revolucionária que nasce da articulação entre literatura e Ciência histórica é uma destruidora de mitos, ela não poderia contentar-se em ser a padronizadora científica que desidrata a imaginação humana. Quer dizer, a metodologia científica presente no trabalho do historiador ou do sociólogo, não impede voos literários tal como comprova o trabalho de importantes escritores marxistas do século passado. Perante as narrativas históricas das classes dominantes, ou seja as biografias das grandes personalidades históricas e as crônicas dos prestigiados acontecimentos históricos e lendários dos povos, a oposição literária exercida pela escrita materialista não consiste em um solvente das paixões mas numa força apaixonada empenhada na ação, na transformação, na transmissão estética das lutas das classes oprimidas e dos atos limites da revolta humana.  Esta escrita alimenta-se dos mais variados documentos históricos que comprovam a existência das lutas sociais nos diferentes espaços e nos tempos mais longínquos; afinal, no milenar campo da luta de classes, os conflitos entre opressores e oprimidos são anteriores às lutas entre burguesia e proletariado. É o que por exemplo A Sátira das Profissões , redigida no Egito antigo há mais de 3500 anos, demonstra através da imagem de camponeses explorados por escribas reais(estes últimos são comparados pelos primeiros a parasitas). Parafraseando o teatrólogo alemão Bertolt Brecht, precisamos desenvolver a sensibilidade histórica. Enquanto que para a classe dominante o conhecimento histórico abrange um diletante amontoado de curiosidades, para os trabalhadores o estudo da história permite compreender através dos diferentes enredos das trajetórias dos povos, exemplos de lutas dos oprimidos; tais lutas podem ser apresentadas como narrativas literárias que alimentam a imaginação dos trabalhadores da atualidade. 

A necessidade de narrativas é obvia no seio da classe trabalhadora, fazendo-se  necessário entender quais narrativas atuam sobre a subjetividade da população hoje. Ler, ouvir ou assistir uma narrativa é uma questão de hábito. Fatos bíblicos, partidas de futebol, telejornais, telenovelas e filmes hollywoodianos apresentam narrativas cujas propriedades estéticas estão internalizadas, fazem parte do patrimônio emocional de boa parte do povo brasileiro. Neste contexto ideológico a literatura de viés materialista apresenta-se como um corpo estranho. Para habituar-se às narrativas materialistas da história da luta de classes, se faz necessário constituir no cotidiano iniciativas culturais. Estas últimas não se dão no vazio, isto é, elas dependem também de uma conjuntura política favorável em que as informações literárias ganham força, educam a sensibilidade da classe explorada. Se não existe primavera política sem o cultivo do árido solo da consciência, as estações da história, demorem ou não, sempre chegam porque tudo está em movimento: as mudanças de temperatura na economia, os ventos da cultura e a tempestade política produzem conflitos sociais que  tornam-se objetos de narrativas literárias que agem por sua vez sobre a consciência dos trabalhadores.  A literatura de combate adquire projeção em tais circunstâncias históricas.  

  Reescrever a história para os que não sabem que a fazem, é um ato político que possui qualidades artísticas. Necessitamos de narrativas mergulhadas nos panoramas coletivos, que apresentam quadros murais em que a multidão e os personagens individuais misturam-se em diferentes níveis de exposição. Nestes tempos de Fake News precisamos de escritores que realizem a fusão entre documento e poesia: romancista, cronista, historiador, jornalista e memorialista confundem seus limites no ato de escrever obras engajadas. Se nos dias que correm a mídia capitalista cria narrativas que apresentam-se como verdade absoluta acerca dos fatos sociais, um romancista pode apreender a realidade de modo mais contundente que um jornalista. Um ficcionista pode representar os fatos históricos de modo mais atraente do que um historiador.  Todo problema literário/ ideológico reside na formulação de narrativas capazes de fazer os leitores trabalhadores sentirem a necessidade de preencherem com suas ações políticas o espaço em branco das folhas que ainda não foram escritas. Existem muitas histórias a serem narradas.  

 

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