Brasil: o que está em jogo na hora decisiva?

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imagem: Juan Chirioca

Por Edison Urbano

 

Na hora decisiva de um processo eleitoral quase tão rico em surpresas como o foi em manipulação e arbítrio, há pouco que valha ser dito antes de que o veredito das urnas estabeleça o quadro formal em que as disputas políticas irão se inscrever daqui para a frente.

Talvez o mais útil seja um breve exercício de reflexão, para lembrar: O que está em jogo? E o que não está?

Por incrível que pareça, ao escrever estas linhas, está em jogo ainda o próprio resultado eleitoral.

Aliás, já que falamos de “incríveis”, há pouco tempo seria incrível que a eleição brasileira em sua reta final estivesse encabeçada por uma criatura da estirpe do adorador do coronel Ustra.

Mas isso hoje já se refere a um passado remoto.

Numa inversão de último momento, agora é o espectro de uma virada inédita que espreita o veredito das urnas.

Mas não podemos nos deixar levar tão longe pela fábula da “democracia” dos ricos. Bastam os últimos dias, os abusos de juízes, fiscais e polícias invadindo universidades, na sequência das violências bolsonaristas e até seus assassinatos como o do mestre Moa do Katendê, para lembrar que não estamos em tempos “normais”, não se trata da manipulação burguesa “normal”, da fraude “normal”, do engano “normal” das massas pelos seus exploradores.

Não, no Brasil já faz tempo que aquela obscena “normalidade” foi posta entre parênteses, e agora o que vemos é a escalada cínica em direção a um ataque violento às riquezas do país, aos direitos dos trabalhadores, à existência das “minorias”.

O embrutecimento do regime político não é parte apenas do plano de governo de um dos candidatos, ele é o correlato necessário, do ponto de vista da classe dominante, para o caráter profundamente antinacional e antipopular do seu programa econômico.

A saída burguesa alternativa: tutelar de todos os lados um governo apenas formalmente encabeçado pelo PT, envolveria (envolverá?) um nível não tão menor assim de arbítrio.

Por isso é bom lembrar, sem diminuir o peso do resultado eleitoral em si, que o verdadeiro tabuleiro de nossas vidas segue outras regras mais complexas, e que a eleição é apenas um episódio cujo resultado, para o mal ou para o bem, não nos exime da real compreensão do panorama mais geral. Ou, em poucas palavras, é preciso discernir o que está e o que não está em jogo agora. E pensar, mais seriamente do que nunca, quais caminhos podem nos levar a uma verdadeira hora decisiva em que, ao contrário da atual, esteja em campo realmente o nosso direito histórico à emancipação e à liberdade.

O ‘programa’ estratégico da classe dominante não está em jogo

Por trás de Bolsonaro, do crescimento vertiginoso que mostrou na véspera do primeiro turno, impulsionado pelo giro violento de alinhamento burguês detrás de sua candidatura, existem perigos ainda maiores para as condições de vida das massas.

É o Estadão dizendo que caso as reformas não passem, “aí sim” a democracia se tornaria “inviável”. É a Globo, a Folha, a imprensa internacional que manifestou receio ou até medo do que Bolsonaro significa, mas que estão unificados quando o assunto é sacrificar a aposentadoria, a saúde e educação pública, as condições de trabalho, em nome de tirar o Brasil da crise através dessa solução que é a única que satisfaz a sua classe, a classe deles, que ainda domina mas já há tempos não é capaz de dirigir de fato a sociedade em direção a qualquer futuro válido.

Quando esses veículos “democráticos” acharem por bem, e no caso de o proletariado não ter se preparado a tempo, poderão muito bem decidir em bloco por uma saída autoritária que faria os arroubos de Bolsonaro soarem como a voz esganiçada de um adolescente imaturo.

O consenso burguês cada vez mais firme pelas reformas que o povo não quer… Esse é o motor mais imediato da luta de classes no próximo período. Mas não é o único.

O nível de autoritarismo, de arbítrio, de violência necessária para tal fim, esse é o foco de divergências entre eles, isso é o que separa as lágrimas de crocodilo de tantos “democratas” (que alentaram até aqui o golpismo) da agora incômoda euforia dos reacionários incontinentes.

Mas as contradições contidas no retrato atual, não são menores do que as que irão se expressar no filme em movimento.

Numa palavra, se o programa estratégico da burguesia não está em jogo, e contém poucas variações mesmo considerando o amplo arco de partidos desde a extrema direita até a centro-esquerda, por outro lado não está claro o plano efetivo para garantir a aplicação desse programa, não está clara a correlação e a hierarquia entre os distintos poderes burgueses atualmente em choque e disputa, e acima de tudo não está claro como recuperar a hegemonia de classe sobre a grande massa de explorados do país. 

Em termos mais imediatos, o protagonismo do Judiciário, que vem de fato conduzindo politicamente o país de forma cada vez mais aberta conforme avança o golpismo institucional, e que chamamos justamente de bonapartismo de toga, já está disputando a Bolsonaro qual a real fatia de poder que seu projeto bonapartista pessoal irá dispor no Executivo. Nessa disputa, que pode arrastar o conjunto do sistema político para o abismo, está em jogo o grau e o tipo de bonapartismo que irá se estabelecer, como sucedâneo de um regime de 88 que já não existe enquanto tal.

Lênin, nosso grande mestre revolucionário, ensinou que para analisar uma situação e medir a verdadeira correlação de forças, não basta olhar o grau de mobilização e de organização aqui entre os de baixo; é preciso analisar as crises e divisões, os impasses entre os de cima. 

Nesse sentido, é fundamental entender que, caso Bolsonaro de fato ganhe, isso não significa ainda que a crise orgânica do país se feche pela direita, não ao menos até um incerto cenário em que ele fosse capaz de se firmar de fato como um líder bonapartista, ou seja, alguém capaz de se erguer por cima dos conflitos de classes e frações de classe, e usar a autoridade presidencial para impor com êxito os ataques ultraliberais e o retrocesso democrático generalizado.

De novo: não só as contradições no bloco bolsonarista, que já se apontaram antes mesmo de uma eventual vitória, irão com toda a probabilidade aumentar, como as disputas por poder entre as instituições de um regime decadente e golpista serão uma constante no próximo governo. Ao menos até que consigam impor uma derrota histórica do movimento de massas, ou pelo contrário, até que as massas consigam impor sua própria resposta encontrando a superação pela esquerda para toda a crise atual.

 O refluxo do bolsonarismo

Como tendência eleitoral é inegável: o ponto culminante da onda bolsonarista se deu ali, de cara ao primeiro turno, como cume de todo o processo manipulatório dessas eleições, e tendo por base a desinformação organizada e polpudamente financiada por megaempresários à margem da lei. (Mas as eleições são sempre um espelho distorcido, e ainda mais no caso atual; a política se faz no chão da vida cotidiana e da luta de classes.) 

Depois disso, caíram não só os números nas pesquisas de opinião, mas a momentânea “força moral” do bolsonarismo. Na vida miúda dos locais de trabalho, que tão pouco destaque possui no teatro da política burguesa, mas que é tão decisiva nos momentos de inflexão, todos pudemos ver como não poucos bolsonaristas de primeiro turno viraram seu voto, enquanto outros tantos passaram ao nulo ou à abstenção, e ainda um bom número se manteve no voto ao direitista, mas apenas em nome de um “PT nunca mais” acompanhado de níveis crescentes de apreensão e angústia pelo que esse voto pode significar contra si mesmo e seus iguais.

Esse fenômeno provavelmente não seja suficiente para virar a eleição a tempo, ainda mais porque, para além da virada numérica nas urnas, teria que sobrepujar a segura predisposição da institucionalidade golpista para garantir seu novo “cenário dos sonhos”, que passou a ser a vitória “o-mais-apertada-possível” de Bolsonaro… Uma vitória apenas apertada, junto com a existência de processos judiciais como o do Caixa 2/WhatsApp, são importantes trunfos das instituições tradicionais para controlar o aventureiro do momento.

Mas que isso tenha começado antes, e não depois, da eleição, que o sentido de alerta mesmo para o setor atrasado da classe venha antes, e não depois, do anúncio concreto dos ataques contra a classe trabalhadora e o povo, isso só reforça o quanto, independente do resultado eleitoral, as batalhas decisivas ainda não foram dadas.

Afinal, por que a alta burguesia, e os setores da “classe média” mais afins a ela, se blocaram de maneira tão contundente sob a bandeira de Bolsonaro? 

Porque o golpe institucional não foi suficiente, porque Temer que fez da impopularidade virtude e governou com maioria absoluta e qualificada em ambas as casas do Congresso Nacional, não foi capaz de vencer a batalha chave do seu mandato. Porque, apesar do controle das centrais sindicais, a força da classe trabalhadora e das amplas massas da população que se identificam com ela foi maior, porque a reforma da Previdência não passou, porque o proletariado não está estrategicamente derrotado.

A resposta estratégica das massas trabalhadoras está em jogo

Mano Brown deu, há poucos dias, uma “lição” ao PT, que petista nenhum teve a audácia de questionar, ao dizer que o partido perdeu o contato com o povo, que deixou de falar sua língua, e que é nessa brecha que o bolsonarismo (e muito antes dele, o evangelismo neopentecostal) se embrenhou.

Mas a complexidade do momento, que o rapper mais popular do país expressou à sua maneira, não se esgota nas suas palavras. Pois no caso do PT, não se trata simplesmente de um problema de proximidade ou diálogo com as bases.

O PT representou uma aposta de que seria possível ir melhorando gradualmente, conciliando com os exploradores do povo e seus políticos, as condições de vida das massas e o espaço democrático de participação política dos trabalhadores.

Porém o verdadeiro caráter da classe dominante brasileira, seu atraso e sua mesquinharia, se desvelaram novamente com o golpe institucional e, agora, com o estrondoso apoio que Bolsonaro adquiriu entre os de cima. E assim veio à tona, mais uma vez, a inviabilidade histórica de qualquer projeto de conciliação com essa burguesia.

O que abre espaço para tirar conclusões à esquerda.

Existe predisposição a resistir aos ataques que virão do novo governo, em particular para barrar novas tentativas de ataque à Previdência.

Para isso, a classe trabalhadora terá que garantir a mais ampla frente única, impondo a suas próprias direções a mobilização unitária de todas as suas organizações de massa, em primeiro lugar as centrais sindicais.

Mas no plano político também, as energias despertadas nessa reta final, na tentativa de combater o bolsonarismo nas urnas, pode e deve seguir como organização para combatê-lo e vencê-lo no terreno onde a vida se define, que é o terreno da luta de classes. Nesse caminho, o papel do movimento estudantil e das universidades, que foram o principal foco de efervescência democrática após o susto do primeiro turno, será de primordial importância, especialmente se amplas camadas dessa juventude forem capazes de se ligar ao movimento operário, e ajudá-lo a superar pela esquerda a fratura que a desilusão com o PT e as demagogias reacionárias lhe impuseram no último período.

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