Direitas brasileiras

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imagem: Sagüi

Por Edison Urbano

Frente à ascensão eleitoral de Bolsonaro, que transformou em possibilidade real sua vitória nas urnas, a reação espontânea em muitos setores é um sentimento de medo.

É evidente que se trata de uma reação natural e esperada, ou para falar como o velho teórico militar, o medo faz parte da guerra. A questão é que ele não nos paralise, nem obscureça nosso entendimento de qual o caráter da ameaça com que nos enfrentamos.

De que extrema direita estamos falando?

É preciso refletir sobre o significado do fenômeno Bolsonaro. Certamente não se trata de algo exclusivo do Brasil. Caberia em outro artigo compará-lo não somente com o caso de Trump nos EUA, mas com a Lega Norte italiana, ou os “governos fortes” da extrema direita na Polônia e Hungria. Um analista inteligente sugeriu que talvez o paralelo mais direto seja com o caso de Rodrigo Duterte das Filipinas.

Fica aqui apenas a indicação do tema. Voltemos ao nosso caso.

De início, Bolsonaro ganhou uma primeira base relativamente sólida ao vocalizar o  “desrecalque” dos valores reacionários, não apenas contra o progressismo de esquerda, mas centralmente contra o “politicamente correto” liberal que conforma o senso comum. 

Esse conservadorismo de direita, de tendência autoritária, sempre expressou um setor minoritário de massas, mas ganhou potencial expansivo, a partir do início da “crise orgânica”.

Os problemas crônicos da segurança pública, agravados pela crise econômica e social, somados à campanha permanente da mídia em favor de pautas como a redução da maioridade penal ou reforço das polícias, tudo isso cumpriu seu papel.

Mas um elemento chave foi, sem dúvida, a incapacidade da direita tradicional de expressar o antipetismo, após junho de 2013.

Chamamos de crise orgânica, mas tem a ver com isso. Não é uma questão discursiva, é material. Por mais que tenha sido bem sucedida a operação midiática e judicial para identificar corrupção com PT, os demais partidos, em particular PSDB e MDB, não conseguem aparecer separados o suficiente – são parte de um mesmo sistema em que a corrupção é o óleo entre o dinheiro e o poder.

O partido Novo, de João Amoedo e do “Vem pra Rua”, é expressão da mesma rejeição, em outra chave.

Analisamos em outro artigo como se trata, para um setor das classes dominantes, da necessidade de romper o pacto que se formou sobretudo com o regime de 88, que se assentou sobretudo após o impeachment de Collor, com o Plano Real e a eleição de FHC. 

Romper o pacto, para esse setor burguês, significa liberar as amarras para um novo ciclo de expansão capitalista que não tenha o compromisso com o padrão médio de vida do trabalhador brasileiro e da classe média empobrecida. Com valores meritocráticas e individualistas, que não tenha vergonha da desigualdade, não tenha medo de lançar a taxa média de exploração no país para um patamar mais próximo… já não dizemos dos chineses, pois lá a tendência vem sendo inversa, mas sim à dos países pobres do sudeste asiático, como Vietnã ou Bangladesh.

“O mercado quer ver sangue” é uma velha máxima dos analistas econômicos especializados. Hoje ela se explicita na figura do jovem executivo nas propagandas das agências de investimento, de terno slim e cara limpa, chamando à compra de ações e prometendo um “boom econômico com Bolsonaro”.

Bolsonaro vs establishment?

Ainda estaria por se ver qual seria o equilíbrio possível entre um Bolsonaro eleito na correlação de forças atual, e o peso do chamado “establishment” sobre ele. Em outras palavras, até que ponto sua vocação de falastrão e fantoche faria dele apenas uma cara mais autoritária a ser usada convenientemente dentro dos limites estreitos do que desejam os setores mais concentrados da classe dominante, e até que ponto um efeito “caixa de Pandora” poderia se desenvolver…

O que é inegável é que teríamos sem dúvida um salto de qualidade na dinâmica aberta pelo golpe institucional. Se até aqui este fortaleceu sobretudo a casta judiciária, e em medida acessória a Polícia Federal e politização das Forças Armadas, então é evidente que uma eventual eleição de Bolsonaro radicalizaria esse processo, transferindo o próprio eixo do regime para o aparato policial-judiciário-militar.

Faz falta uma radiografia mais precisa do estado atual interno das Forças Armadas, qual o real alcance na corporação daquilo que os comandantes reacionários como Mourão ou Villas-Boas verbalizam, ou qual grau de lealdade poderiam contar se tentassem passar das palavras aos fatos.

Mas o que é indubitável é que nas forças policiais, militares ou civis, o reacionarismo militante que Bolsonaro expressa é uma força viva, que já se expressa antes mesmo do resultado eleitoral no discurso de um João Doria quando diz que em seu governo (de SP) a polícia irá “atirar para matar”.

O grau efetivo de deslocamento daquele eixo político do regime pode ser impossível de prever de antemão. Mas compreender o que se passa teoricamente, e para não cair num alarmismo exagerado em torno da palavra esvaziada de “fascismo”, é  importante assimilar o conceito marxista de bonapartismo, e mais ainda, aprendendo sobretudo de Trotski, entender que existem gradações de bonapartismo, transições de mais a menos e vice-versa, e que o próprio fascismo é um movimento específico, que pode tanto ser auxiliar para reforçar a correlação à direita sobre a qual um “bonaparte” qualquer se assenta, quanto uma aposta real de poder para a burguesia, em conjunturas das quais ainda estamos muito distantes –  quando o processo vivo da luta de classes se impuser como ameaça concreta para a propriedade privada capitalista.

Quando pensamos o que será o novo regime pós-88 que apenas começa a se desenhar, é fundamental ter em conta que vivemos um momento histórico particularmente rico em situações transitórias, intermediárias, inclusive fenômenos aberrantes de todo tipo, e que só quando vistos em escala histórica adequada é que poderão ou podem ser avaliados em seu conteúdo político preciso.

Uma comparação histórica: o caso do integralismo

De fato as diferenças são tantas que cabe reconhecer de pronto: o que nos fez pensar no integralismo foi uma questão de “sociologia do cotidiano”, que nos remeteu a uma velha frase de Antonio Candido.

Dizia o nosso grande crítico literário, num prefácio que escreveu à obra de Chasin sobre o integralismo, no qual aliás não esconde sua discordância com a tese do autor que então prefaciava: “Confesso que a leitura me fez voltar quase insensivelmente às minhas experiências de moço, quando os meus companheiros e eu éramos contra o integralismo, mas nos interessávamos por ele e tínhamos colegas e amigos integralistas, com os quais convivíamos bem, apesar de alguma pega ocasional (…)”. O ingresso ao movimento “não foi para muitos rapazes adesão consciente a uma modalidade de fascismo, mas fruto de inquietação honesta, embora quase sempre reacionária, nascida da revolta contra o império do coronelismo atrasado e bilontra (…)”.

Esse é um dos aspectos mais chamativos do fenômeno atual em torno de Bolsonaro: seu relativo enraizamento social, que faz com que nos “grupos de moços”, nas escolas públicas, nas torcidas organizadas, periferias e inclusive nas fábricas, seja comum encontrar não apenas eleitores do ex-capitão como mostram as pesquisas, mas inclusive um setor menor de defensores ardentes de suas ideias reacionárias. 

Esses ovos de serpente é que assustam, e por isso a comparação com o que eles ainda não são devem servir para dar o combate correto para que não venham a se tornar…

No caso, estamos muitas vezes diante de uma “inquietação honesta, embora quase sempre reacionária” , já não contra o coronelismo atrasado dos anos 1930, mas sim contra uma democracia degradada que lhes oferece pouco mais que angústia e desilusões.

Mas a real discrepância, essa de fato enorme, se refere à situação concreta da luta de classes, a possibilidade no mínimo já visível da revolução proletária, e o recurso à contrarrevolução estatal e paraestatal para tentar detê-la. 

Não por acaso, a retórica integralista era contra o capitalismo, não meramente contra a corrupção ou o sistema político, como a dos bolsonaristas.

Isso tinha a ver com questões de fundo.

No caso do fascismo “clássico”, especialmente na Itália e na Alemanha, mobilização reacionária da pequena burguesia, a serviço do capital financeiro, foi fator decisivo para impedir a revolução e para submeter o proletariado a condições de exploração que deram impulso aos grandes monopólios nacionais. Não à toa ambos os países montaram máquinas de guerra e foram, junto com o Japão, disputar a hegemonia mundial na maior carnificina que a humanidade já viu.

No caso brasileiro, a violência fascista ou semifascista buscava derrotar a revolução proletária para se acomodar ao lugar de país periférico e espoliado. 

Basta contrastar a ideologia do futurismo italiano ou da expansão industrial-militar hitlerista, com os lemas com que Plínio Salgado buscava enfeitar o seu movimento, tais como: “o espírito do sertão está invadindo as cidades”, ou “nós, caboclos dos trópicos, proclamamos, em face de uma civilização que nos quer deprimir, os sagrados direitos do homem brasileiro”.

No ambiente de agitação política dos anos 1930, que a chamada “Revolução” getulista apenas exacerbou, e com uma classe operária que se fortalecia e dava pela primeira vez uma base de massas a um partido que via como seu, o PCB de Prestes, os serviços do integralismo eram bem avaliados pela burguesia e pelo próprio Vargas. Apenas mais tarde, quando o governo bonapartista de Vargas conseguiu se assentar mais fortemente na repressão estatal, pôde prescindir deles e simplesmente dissolveu a AIB, junto com todos os demais partidos, como parte da criação do seu “Estado Novo” a partir de 1937.

De todo modo, o fato é que a dissolução do movimento organizado não significou de nenhuma forma o desaparecimento total da “doutrina”, que seguiu de forma subterrânea como corrente de influência dentro das Forças Armadas, nos poderes de Estado (em particular no Judiciário), nas lojas maçônicas e demais sociedades secretas ou semissecretas da sociedade civil burguesa.

Nesses subterrâneos, a “doutrina do sigma” se manteve, com seu violento reacionarismo social que mirava de fato pra trás, e não “para frente” (sob lente desfiguradora), como os congêneres europeus.

Outros tempos, certamente. Mas uma coisa em comum: as ideologias fascistizantes, na periferia capitalista como o Brasil, se adaptam intrinsecamente à condição subalterna. Um desejo agressivo de subordinação, por assim dizer.

A ‘lógica’ do pensamento conservador

Vimos que o bolsonarismo atual está muito distante de ser uma ideologia como a do integralismo, e mais ainda do fascismo clássico.

Isso não diminui a repulsa que nos gera, nem a necessidade de combatê-lo.

Daí o interesse de destacar, para além da misoginia e do racismo evidentes, algo no núcleo reacionário do pensamento; há algo de comum com as ideologias conservadoras que pavimentaram o caminho, do ponto de vista ideológico, à ascensão nazi na Alemanha. Uma distorção extrema da realidade, em compasso com a histeria anticomunista, que faz ver, sim, “comunismo”, em todo ponto onde se fixe o olhar: o “comunismo” da grande imprensa, o “comunismo”da Rede Globo, o “comunismo” de Michel Temer e de Brasília; para não falar, é óbvio, no “comunismo” dos sindicatos, do PT, das pastorais católicas e dos movimentos sociais mais ordeiros. 

Que “racionalidade”, ou melhor, que ordenamento irracional de ideias pode existir por trás de afirmações tão chocantes até para o senso comum?

É que, seguindo uma tradição de pensamento que bebe em elementos de Nietzsche e Heidegger, para citar só os mais influentes, existiria uma tendência “antinatural” na evolução ocidental, que dataria de cerca de dois milênios, e que inverteria a ordem natural da prevalência do mais forte. Para o pensamento reacionário, não somente no socialismo (seu inimigo mortal), mas inclusive no cristianismo e outras fontes, o mundo atual seria dominado por pensamentos igualitários, que nas mais diversas vertentes contrariariam a pura e simples “lei natural”: o império do mais forte e a imposição dos seus desejos, até o limite da sua superioridade de forças.

Claro que, em paralelo à influência desse pensamento reacionário, que raramente se expõe assim nu, existem as matrizes do pensamento liberal e ultraliberal. As afinidades eletivas entre os dois campos de pensamento seriam tema para outro artigo, mas vale a pena não aumentar demasiado a complexidade da questão: ela reflete em última instância a necessidade mais ou menos aberta, em cada momento histórico, da burguesia recorrer à pura violência de classe e a valores aristocráticos para manter sua posição dominante na sociedade.

A resultante é esse chamativo desprezo pela verdade, que se expressa numa ultradireita alimentada por fake news, que sabe disso e não se importa. Nesse ponto, sim, aparentada com o fenômeno estadunidense de Donald Trump.

A contracara é uma escalada sem limites no cinismo liberal burguês, nos “julgamentos” do STF, nas coberturas jornalísticas da Globo e da grande imprensa, etc.

Perspectivas de uma eventual eleição de Bolsonaro

As razões pelas quais Bolsonaro se tornou o preferido dos latifundiários e patrões, grandes e pequenos, já estão demasiado claras. Já para um setor precário da classe trabalhadora, atrasada e despolitizada, o apelo da demagogia de Bolsonaro é sem dúvida uma maneira distorcida de “combater”, não os privilégios da grande burguesia e dos estamentos superiores do Estado (juízes, etc) – seja porque estes parecem inatingíveis, seja por uma tradição de subserviência que os “naturaliza” completamente… “Combater” então, não a esses privilégios reais, mas sim os supostos “privilégios” do funcionalismo público médio, dos estudantes universitários da classe média, dos setores organizados da classe operária que possuem conquistas.

Se o fascismo é uma forma específica pela qual o grande capital, diante do perigo iminente da revolução, recorre à mobilização pequena burguesia assustada e desesperada, para tentar destruir as organizações da classe trabalhadora e o nível de correlação de forças entre as classes que elas expressam; o atual bolsonarismo responde a um processo de intensidade muito inferior: um caldo de cultura para criar uma correlação de forças favoráveis aos planos de ajuste e a uma maior entrega das riquezas nacionais.

Porém daí também decorre o potencial ponto fraco: ao contrário de Amoedo, cujo programa ultraliberal é claro, no caso de Bolsonaro apenas os meios burgueses e ou intelectualizados sabem do papel de Paulo Guedes. O voto no ex-capitão tresloucado não é um voto consciente nesse programa, e se isso pode ser “bom” do ponto de vista de ganhar a eleição, é preocupante no sentido da indignação pós-eleitoral que pode gerar…

Assim como quando analisamos a hipótese de que vença Haddad e sua tentativa de um novo pacto para recompor o regime em decomposição, também no caso de uma vitória de Bolsonaro náo há nada para se desesperar. 

É claro que a operação ideológica midiática segundo a qual, diante do provável segundo turno entre Bolsonaro e Haddad estaríamos diante de “dois radicalismos”(sic), reverbera para além da compreensão consciente de quem de cara percebe a falsidade da afirmação. É que, se num nível de massas, a mensagem é que “se os dois são ‘radicais’ mesmo, por que não dar uma chance a Bolsonaro que ao menos é ‘novo’?”; ao nível dos setores mais conscientes politicamente, o texto subliminar diz: “o radicalismo do lado de lá será mais forte do que o nosso, desistamos”.

Mas deixando de lado o alarmismo, compreensível apenas até certo ponto, um entendimento meditado e racional da situação mostra que o que nos falta não é tempo, é apenas coragem e decisão!

Se queremos derrotar o bolsonarismo, precisamos reverter as condições que o criaram, e para isso a tarefa de primeira ordem é recuperar as organizações de massas das mãos das direções traidoras e conciliadoras. Se estamos diante de um inimigo perigoso, precisamos nos fortalecer, e a história mostra que nossa força está em nossa capacidade de organização independente. 

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