Por que Toffoli, empresários e a Globo tanto temem a idéia de uma assembléia constituinte?

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Ilustração: Juan Chirioca

Por Fernanda Montagner

 

Muito provável que se perguntarmos aos leitores desse texto se o Brasil de 2018 segue o mesmo de 30 anos atrás, ele diga que não. E com razão, diante da decadência do regime de 1988. Então, por que haveria de ser normal seguirmos regidos pela mesma constituição de 88? Formadores de opinião, como o jornal O Globo, o Estado de São Paulo, além de figuras eminentes das instituições do regime, como o presidente do STF, Dias Toffoli, vem enfatizando argumentos contrários a uma nova constituinte.

É preciso dizer que aquilo que os unifica é o ódio aos poderes constituintes das massas contra os poderes já constituídos da burguesia.

A despeito disso, o debate de uma nova constituinte vem se impondo, pois estamos vivendo o fim da estabilidade do regime de 1988; contudo, ainda sem nascer uma nova estabilidade burguesa. Os dois principais candidatos dessas eleições pautaram o tema. A chapa de Jair Bolsonaro, com Hamilton Mourão, dizendo querer uma “constituinte de notáveis”, sem a participação de eleitos pelo povo, uma proposta digna dos herdeiros diretos da ditadura.

Já o petista Fernando Haddad colocou a velha proposta de uma “Constituinte Exclusiva”, com modificações cosméticas que não alterem a estrutura econômica dos capitalistas, e os grandes temas nacionais, como a questão da terra, a divida pública ou o direito ao aborto. Voltaremos a essa proposta do PT mais adiante.

Esse debate vem cada vez mais aparecendo nas páginas dos jornais. Ao mesmo tempo em que o Globo, e analistas da mesma imprensa, vociferam contra “exageros” da constituição de 88, que incluiu direitos como “direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a habitação, o transporte, o lazer, a segurança, a Previdência Social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados”, se negam veementemente a discutir uma nova constituinte.

Também o analista Helio Gurovitz, do Globo, critica como “a constituição garante muito mais direitos que deveres à população”. Mas então por que, junto à Dias Toffoli, Alexandre de Morais, Michel Temer, e outros, são tão contrários a qualquer possibilidade de uma nova constituinte?  A resposta é porque querem que o novo governo faça reformas reacionárias na constituinte de 88, tirando dela qualquer garantia social que foi obrigada a se manter devido aos processos de luta de classes que ocorreram nas décadas de 1970-80, mas de forma alguma permitir um novo processo constituinte onde a burguesia corra o risco de perder o controle.

Justamente porque em um país polarizado e politizado, um processo constituinte poderia dar força de decisão a população, que porventura “ousaria” desafiar os privilégios judiciários e parlamentares, o roubo da dívida pública, e os constantes cortes sociais e privatizações. E dessa forma fazer se chocar os interesses de classes opostos.

Encontramos então o verdadeiro medo da burguesia: que um novo processo constituinte, livre e soberano, pudesse conduzir a consciência das massas não apenas à reforma do que existe, mas ao questionamento a todo o poder burguês.

 

O fio da navalha: entre a crítica reacionária e a contenção supostamente democrática

Deveria ser natural que cada geração tivesse o poder constituinte de criar suas próprias leis adequadas às novas experiências históricas, ao desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural, como argumentavam os jacobinos franceses no século XVIII. O regime burguês impõe a idéia oposta. Como o golpista Dias Toffoli afirma, “Não vejo motivo para Constituinte ou Assembléia Constituinte. Isso é querer, a cada 20 anos, 30 anos, reformatar toda a jurisprudência já criada, toda leitura que já existe e querer começar a nação do zero”, disse.

Contudo essa defesa da constituição vai muito além de uma questão temporal, ela carrega o cinismo próprio de uma elite decadente que pensa as leis de acordo com seus interesses entreguistas e escravocratas. Toffoli mesmo acabou de negar que Lula fosse entrevistado, um direito democrático elementar. Revisou a jurisprudência, podemos dizer, segundo as vontades do golpe institucional. Mais ainda, o judiciário e o próprio Temer nada disseram sobre as declarações ameaçadoras do comandante do Exército Eduardo Villas Boas: caso se quisesse garantir a aplicação perfeita da constituição burguesa, Villas Boas deveria ter perdido o cargo e sido preso.

E a cara do cinismo se aflora quando, via constituição, buscam defender a democracia degradada da burguesia numa eleição que foi manipulada pelo judiciário, que surge fruto de um golpe institucional e na qual Lula – que venceria no primeiro turno, caso disputasse – foi vetado. Frente a isso, Toffoli disse nessa quarta-feira, que “Nós estamos vivendo o ápice da democracia. Este é o momento da soberania popular em que se deve respeitar a democracia, reconhecendo a vitória de quem vier a ser escolhido pela maioria. A Constituição demonstrou vigor imenso e tivemos o STF como seu guarda e o Poder Judiciário”. (Lembremos que este mesmo “guardião da constituição” burguesa disse em recente atividade da Faculdade de Direito da USP, que o golpe militar de 1964 foi um “movimento”, apenas).

Essa defesa da constituinte de 88, tutelada pelos militares e por políticos biônicos como José Sarney, em que os já escassos direitos sociais foram sendo diminuídos um a um, é feita em prol das contrarreformas que a tornaram ainda mais reacionária do que era em origem: as emendas realizadas a tornaram um instrumento mais e mais adequado ao ataque em regra aos trabalhadores pelo golpe institucional.

Sem mergulhar tanto nos elementos históricos, cumpre dizer que Lula e o PT foram um fator determinante para conter as lutas operárias contra o regime militar, e permitir que o processo constituinte desviasse e reorganizasse o regime de propriedade dos capitalistas. A constituinte de 88 não foi nem livre, nem soberana, ela foi tutelada de perto pelos militares, pelos latifundiários, representantes capitalistas, e pelo atual ‘centrão’ do período (PMDB, PFL, PTB e PDS).

 

Argumentos reacionários contra os poderes constituintes das massas

O certo é que o papel histórico da Constituinte de 1988 foi limitar ao mínimo a incidência da soberania popular sobre a democracia burguesa, que nascia de um pacto com os militares da ditadura, baseadas justamente em defender a legalidade da propriedade capitalista, servindo como garantidor do “poder constituído” contra qualquer tipo de “poder constituinte” do povo trabalhador.

Podemos ver na critica reacionária do editorial do O Globo esse descontentamento com o que ainda resta de social na constituição, além dos “exageros” citados acima, ele que critica “Uma visão retrógrada do capitalismo permeia o texto. Na Constituinte, contemporânea da Guerra Fria, a esquerda execrava o capital — parte dela continua sem aceitá-lo —, enquanto a direita perjurava sobre a infalibilidade do mercado. Por ironia da História, esse ideário bipolar desabou com o Muro de Berlim, em 1989, logo no primeiro aniversário da Constituição. A Carta, neste aspecto, nasceu velha”.

“Velha” com certeza a constituição já nasceu, porque ela foi fruto da contenção de um processo de luta de classes que poderia se desenvolver em chave revolucionária, expropriando a burguesia e organizando todos os recursos econômicos racionalmente a serviço de uma sociedade totalmente nova, permitindo de fato o desenvolvimento humano de forma ilimitada. Contudo esse ataque pueril do Globo, defendendo o liberalismo na época da falência do liberalismo, não só é velho, como reacionário.

A suposta “modernização” necessária à constituinte deveria se dar, segundo o jornal, “na contramão de delírios sobre a convocação ilegal de nova Constituinte”. Ou seja, impossibilitando qualquer tipo de decisão popular, justamente porque a “modernização” é na realidade garantir ataques, como a reforma da previdência, tratada como a principal alteração constitucional.

Afinal, os direitos sociais aparentemente atrapalham a modernização capitalista, “é preciso, ainda, enfrentar a questão do engessamento orçamentário, pelo qual mais de 90% dos recursos são carimbados, têm destino pré-definido — saúde e educação, por exemplo — ou são protegidos de qualquer corte. Há a impossibilidade legal de redução de aposentadorias e pensões, bem como dos salários do funcionalismo”.

Vendo o projeto defendido por esses setores do regime, não é preciso dizer muito para entender o porquê dizem tão veementemente que uma nova constituinte não é necessária. Afinal de contas, esse projeto é totalmente impopular e jamais passaria.

 

Uma nova farsa para que tudo permaneça igual: a “Constituinte Exclusiva” do PT

Claramente não é objetivo do PT qualquer tipo de Constituinte Livre e Soberana, como delineamos acima: o PT tem em sua gênese a defesa irrestrita da institucionalidade burguesa e da propriedade privada dos capitalistas. Não arriscaria estas posições num processo que estimularia a luta de classes dos trabalhadores que o lulismo buscou neutralizar durante 13 anos de governo.

A “Constituinte Exclusiva” proposta por Haddad é meramente cosmética: uma reedição da proposta de Dilma Rousseff em 2013 em meio às Jornadas de Junho para tentar acabar com o levante de massas. Trata-se de modificar alguns dispositivos políticos, sem nada alterar na estrutura capitalista da economia, da terra e da propriedade como um todo. Essa proposta nega, logo de início, a participação das massas trabalhadoras num processo constituinte.

Nesse quesito, coincide por outro ângulo com os temores da burguesia, que o PT defendeu no processo de 1986-88, e que agora segue defendendo. Todo o essencial da dominação burguesa permaneceria de pé: o pagamento da ilegal dívida pública, a divisão entre os poderes que preserva os privilégios reais de políticos e juízes, a não revogabilidade dos mandatos, a grande propriedade fundiária, a ausência do direito elementar ao aborto, entre outras coisas.

Um dos objetivos principais de uma Assembléia Constituinte Livre e Soberana é auxiliar a organização do choque entre os interesses de classe antagônicos, opondo os interesses dos trabalhadores e da população aos interesses da burguesia. Para levar adiante estes objetivos, será necessário confrontar a política do PT, cuja proposta de “Constituinte Exclusiva” amedronta só aos setores privilegiados do regime, mais por seu escravismo do que pelos “perigos” que derivam da tímida proposta. Como a proposta de extrema direita e com cunho ditatorial, de Mourão.

 

Porque defender uma constituinte livre e soberana como um plano de emergência para responder a crise?

A tradição revolucionária defende a Assembléia Constituinte Livre e Soberana, na medida em que grande parte da população e da classe trabalhadora ainda tem esperança no modelo de democracia representativa cidadã, para fazer chocar os interesses da burguesia com os interesses sociais e dos trabalhadores. Nesse sentido, chegar à conclusão da necessidade de um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo.

Uma constituinte livre de qualquer ingerência das instituições do Estado, imposta pela força da mobilização, das lutas populares e dos trabalhadores, que imponha um plano radical: como o não pagamento da dívida pública; pela reestatização sob gestão dos trabalhadores e controle popular de todas grandes empresas estratégicas como a Petrobras, a Eletrobras, os serviços de água e transporte, que passem a ter licitações públicas transparentes e controladas pela população; pela anulação de todas as leis reacionárias votadas pelos governos anteriores e a aprovação do aborto legal, seguro e gratuito; pela eleição por voto direto de todos os juízes e políticos, que passem a ganhar como uma professora e sejam revogáveis se traírem o mandato popular. Que todos os casos de corrupção sejam julgados por júri popular, assim como a abolição do Senado e a unificação em Câmara Única do Legislativo e do Executivo.

Para impor esse plano se fará necessário romper a resistência capitalista, que tem da força estatal como recurso repressivo. Nesse processo se fará mais claro as mentiras democráticas ditas hoje pelo judiciário, políticos e empresários. Será uma experiência que permitirá avançar na compreensão da necessidade de lutar por um governo dos trabalhadores que rompa com o capitalismo, exproprie a burguesia e socialize os meios de produção sob controle democrático dos próprios trabalhadores, que é a perspectiva estratégica pela qual nós socialistas revolucionários lutamos.

 

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