O golpe se reconcilia com seu filho indesejado?

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Ilustração: Juan Chirioca

 

Por Iuri Tonelo e Simone Ishibashi

 

“O dinheiro não tem amo” – essa foi a frase de Marx sobre a política da burguesia francesa de repressão contra os trabalhadores de 1849, na figura do general Cavaignac, e que nos faz pensar o Brasil em tempos de Jair Bolsonaro.

 

Naquele contexto, antes da ascensão pela via de um golpe de Estado de Luís Napoleão, o sobrinho, em 1852, Marx analisou os processos de luta de classe que se desenvolveram a partir da chamada Primavera dos Povos; ou seja, antes da figura propriamente bonapartista, que surge aparentemente “por cima das classes” em meio a uma enorme crise econômica e social, Marx abordou algumas outras personalidades reacionárias do cenário político francês e como atuaram no interior da República em crise. Entre elas, estava o general Louis-Eugène Cavaignac, o ministro da guerra do governo provisório francês que ganhou poderes ditatoriais na França de 1848-1949 para combater a luta dos trabalhadores em ascensão. Apesar do caráter repressivo e de Cavaignac estar bastante destacado nessa função reacionária, Marx esclarecia que:

 

Cavaignac […] não representava a ditadura da espada sobre a sociedade burguesa, mas a ditadura da burguesia por meio da espada. Então, no que diz respeito ao soldado, eles puderam aproveitar só mais o gendarme. Sob os severos traços da resignação antirrepublicana, Cavaignac ocultava a tênue subserviência às condições humilhantes do seu posto burguês. L’argent n’a pas de maître! O dinheiro não tem senhor! (Karl Marx, As lutas de classes na França, Boitempo Editorial, 2012, p. 56).

 

A contradição aparente é que Bolsonaro não parece ser exatamente como Cavaignac, pois não surge no cenário político para enfrentar um ascenso operário atual, não se impôs por meio de uma ditadura militar e não aparecia até agora como o filho legítimo do golpe institucional, ou seja, o candidato claro da burguesia. Daqui surge a questão: em tempos de manipulação golpista e desencanto da população com sistema de dominação política atual, Bolsonaro pode se consolidar como a peça adequada para o capital financeiro e os empresários, pode se tornar uma personalidade ajustada ao sistema, o candidato do golpe institucional?

 

O golpe e sua alquimia…

Não é possível entender o impeachment no país sem entender a dinâmica da economia internacional e os efeitos dela no Brasil. Até 2013, o PT tinha sido bem funcional aos planos econômicos do capital financeiro, com seu projeto de conciliação em meio a uma situação de boom das commodities e fluxos de capital para o Brasil. A virada econômica mundial, com a queda de Lehman Brothers em 2008, iniciou uma crise econômica nas potências, mas, só a partir de 2011-2012, começa a atingir os ditos “emergentes”, e particularmente vai golpear o Brasil em cheio após 2013. Junho simboliza o descontentamento de massas. Começado por uma demanda popular de transporte público, questiona também aquela forma de hegemonia no Brasil que não promoveu mudanças estruturais e começava a esgotar seu ciclo de conciliação com as elites num momento de virada da situação econômica.

 

A partir da politização que se gestou em 2013, com um ascenso de greves antiburocráticas em 2014, como a de garis no Rio de Janeiro, a de rodoviários em Porto Alegre, a do metrô em São Paulo, e a crise econômica batendo na porta do país, as classes dominantes começam também a se organizar para impor um novo projeto que extrapolasse os limites dos governos petistas e buscasse implementar um ajuste neoliberal ainda mais estrutural no país (mais que o dos governos FHC, aliás), incluindo uma resposta mais privatista ao sistema financeiro, às grandes estatais, às universidades e outros serviços, e de outro lado que imponha reformas draconianas como a trabalhista e previdenciária.

 

Dilma Rousseff tentou, em 2014, conciliar com esse novo quadro após sua vitória, colocando Joaquim Levy na Fazenda e aplicando os primeiros ajustes neoliberais mais pesados, com cortes em direitos fundamentais, como o seguro desemprego. Foi a senha para o golpe institucional, com a separação da massa trabalhadora do PT, o crescimento avassalador do antipetismo e o fortalecimento da extrema-direita. Como disse Vladimir Safatle num debate sobre o qual tratamos no último suplemento: “sempre é bom a gente perguntar, quando você tem uma extrema-direita em ascensão, onde a esquerda traiu?”.

 

No entanto, o plano orquestrado por monopólios imperialistas internacionais não buscava uma alternativa de golpe militar convencional: num país que vinha das jornadas de junho e de um maio operário em 2014, um golpe militar não deixava de ser uma alternativa arriscada para o capital financeiro – e que não se “justificava”, portanto –, ainda mais em meio à crise econômica. A jogada seria fortalecer uma ala dentro do regime político brasileiro: o judiciário; e, por meio dela, com a baioneta do exército dando suporte indireto, impor o impeachment de Dilma, aplicar as primeiras reformas com Michel Temer, retirar Lula do pleito eleitoral e, com a “legitimidade” de eleições manipuladas por jogadas institucionais, ter um candidato da direita capaz de aplicar o conjunto das medidas neoliberais planificadas.

 

… e seus efeitos inesperados

 

Acontece que o teatro da política nacional apresentou contradições para o plano: a crise da Nova República, da República de 1988, é de tal ordem que, mesmo o conjunto do capital financeiro e de empresários apoiando em sua maioria um candidato neoliberal que encaixasse em seus propósitos, como Geraldo Alckmin, não foi possível desfazer a imensa polarização que se constituiu no país e que foi alimentada pelo golpe institucional.

 

Os mecanismos de antes que, por exemplo, levaram Collor ao poder, como tempo de TV, debates eleitorais, denúncias e repercussões nos jornais de grande circulação, escândalos de corrupção, até mesmo a prisão de Lula, não conseguiram impor a hegemonia convencional da classe dominante. Assim, com um país com um regime político – Nova República – em crise, o segundo turno no país se anunciava entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, ou seja, a extrema-direita e o PT. 

 

O fato é que nenhuma das duas figuras representava o resultado esperado do golpe: uma por ser do PT, que foi alvo direto da campanha de corrupção no país, o que o debilita no sentido de ser um ator dos ajustes neoliberais em reconciliação com o empresariado; a outra por ser Jair Bolsonaro, uma personagem medíocre da política nacional, com um perfil claramente machista, racista, contra os LGBTs, flertando frequentemente com a ditadura e com o golpe militar, o que também dificulta a legitimidade “democrática” dos futuros ajustes. Qual a solução da classe dominante a esse impasse?

 

O processo de reconciliação

Jair Bolsonaro é decididamente o filho imprevisto da Lava Jato. A princípio, o capital financeiro se estranhou com esse rebento seu. Não lhe parecia ser uma alternativa desejável. Bolsonaro tem uma patente dificuldade de coordenar as mais simples ideias e sequer era bem quisto em meio ao alto comando militar, de onde provinha sua base mais concentrada, que o considerava como um mero fanfarrão. Entretanto, conforme se aprofundava a crise orgânica, com suas expressões agudas, tanto políticas quanto econômicas e sociais, e mais concretamente conforme avançava a proximidade das eleições, mais os donos do deus-dinheiro reviam suas desconfianças.

 

Vejamos esse movimento internacionalmente. O Financial Times e o The Economist foram os dois porta-vozes do capital financeiro imperialista. Ao lado do New York Times, defenderam que uma vitória de Bolsonaro seria um problema. O Financial Times chega a definir, corretamente, que o embate com o PT e sua base não se encerraria durante os 4 anos seguintes ao pleito de 2018, o que teria “péssimas consequências para o mercado”. O The Economist foi além e caracterizou Bolsonaro como uma ameaça não apenas ao Brasil, mas à América Latina. Lembrou como Paulo Guedes, um ultraliberal que ocuparia a cadeira de ministro da economia no governo reacionário de Bolsonaro, assemelha-se ao regime de Pinochet, pois, tal como o ditador chileno, seria aconselhado por um Chicago Boy, como debatemos aqui.

 

De outro lado, a agência Bloomberg, uma porta-voz aberta da ala dura neoliberal do mercado internacional, veio destacando que a subida de Bolsonaro nas pesquisas equivaleria à subida de ações brasileiras, além de declarações de apoio de vários CEOs dos monopólios imperialistas. Ao lado disso, ninguém menos que Trump emerge como um apoiador indiretamente declarado, ao queixar-se, no mesmo dia da assinatura do novo acordo do NAFTA, que o Brasil seria um país muito fechado aos Estados Unidos.

 

A repercussão disso se combinaria com uma nova movimentação no xadrez interno. Pouco depois das grandes manifestações contra Bolsonaro nas principais capitais do país, vem à tona uma sucessão de jogadas autoritárias e manipuladoras. A delação de Palocci de que Lula e Dilma sabiam do esquema de corrupção para financiamento de campanha simplesmente vaza à imprensa. Segue-se a isso um tweet da esposa de Sérgio Moro clamando pelo voto em Bolsonaro. E o ministro do STF, Fux, aprofunda a incursão contra Lula, proibindo-lhe de falar com a imprensa. Sem contar os principais jornais do país, como a Folha, o Estadão e o Globo (além da Rede Globo na TV) darem um giro decidido nesse final de primeiro turno para Bolsonaro.

 

Com isso, os atores fundamentais do golpe institucional – judiciário, grande mídia, exército –, uma ampla maioria do agronegócio e do setor empresarial e financeiro buscaram se reconciliar com seu filho indesejado, com aquele que conseguiu atrair mais o sentimento “antipetista” pelo qual a Lava Jato é uma das maiores responsáveis.

 

Um pé em cada canoa

 

Analistas dizem que the art of the deal (“a arte da negociação”) de Donald Trump seria a seguinte: ameaçar primeiro para que o adversário visualize a situação de caos (tendo em vista a aparência de “insano” e imprudente que Trump assume, que “pode fazer qualquer coisa”), e só a partir daí negociar. O capital financeiro norte-americano e setores do capital nacional parecem buscar utilizar as contradições inegáveis dessas eleições no mesmo sentido.

 

Se um candidato eleito com legitimidade pela ampla maioria da sociedade é um dado impossível para essas eleições, as classes dominantes parecem estar buscando o seguinte caminho: utilizar a polarização como forma de “grande ameaça”, para impor sua agenda econômica, as alianças políticas necessárias e seu plano de ajustes neoliberais.

 

Assim, contra a ameaça da “volta do PT”, Bolsonaro vai se tornando viável tendo como emblema Paulo Guedes como homem forte do capital financeiro em seu governo, a tal ponto de impor um programa abertamente neoliberal à moda Escola de Chicago, como dissemos – quase sem devaneios “nacionalistas”. De outro lado, com a “ameaça Bolsonaro”, Fernando Haddad, se alcança o segundo turno, estará na localização mais favorável para as investidas de conciliação tão típicas do PT: juntar-se a todos os setores da direita e mesmo um setor golpista, e todos os apoios burgueses que conseguirem, no “pacto republicano” (algo fáustico), para enfrentar Bolsonaro. Se o pacto vai se dar, ainda não podemos dizer…

 

Com um pé em cada canoa, a burguesia trabalha na república pós-golpe como uma observadora atenta de dois jogadores de xadrez, em que seu objetivo é que, seja quem for que ganhe, tem que ser com suas condições, com seu programa – nem que para isso seja necessário manipular a eleição com juízes, a grande mídia e, quem sabe, até com um pouco de fraude. É o jogo do “ganha-ganha” da República pós-golpe, forma ainda mais degenerada da República burguesa, o que não impede que setores centrais do capital financeiro e monopólios internacionais não devam tomar posição na disputa.

 

Isso também não significa que “os filhos rebeldes”, uma vez no governo, não possam voltar a ter aspectos de descontrole, seja o PT com o que adoram chamar de “populismo de esquerda”, seja Bolsonaro em sua sanha reacionária – é o preço que se paga por uma nova hegemonia num país polarizado. E é claro que a forma de governo não seria igual, tendo um candidato tão reacionário como Bolsonaro na disputa; o que estamos analisando aqui são as intenções do capital de instrumentalizar as características de cada candidato a seu favor.

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Marx, em seu prefácio ao 18 Brumário, ao analisar a ascensão de Luís Bonaparte, dizia que houve ali dois erros importantes: de Victor Hugo, que analisava essa ascensão como “um raio num céu sereno”, o que apareceria como um “ato de força do indivíduo”. Já Proudhon buscava uma análise histórica “objetiva”, mas terminava também por criar um ponto de encontro objetivo na história entre o bonaparte e o poder na sociedade francesa, o que também terminava por encher a figura individual de substância e necessidade. O próprio Marx pensava de outro modo: dizia, olhando para a luta de classes, que era possível sob esse ponto de vista entender “as circunstâncias e condições que possibilitaram um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói” (Karl Marx, O 18 do Brumário de Luís Bonaparte, Boitempo Editorial, 2011, p. 18). No caso do Brasil, os ajustes neoliberais do governo petista de Dilma em 2015 e a barreira que a burocracia sindical colocou para o desenvolvimento das greves gerais em 2017, sob o pano de fundo do pós-Junho, são essas condições.

 

O medíocre Bolsonaro se tornou, então, uma ameaça concreta. Mas não será no jogo do “ganha-ganha” da burguesia que daremos uma resposta real, adaptando nosso programa e concedendo todos os anseios do capital. Isso é criar condições para repetir a tragédia da conciliação de classes. Se o golpismo na superestrutura e nas classes dominantes parece estar se conciliando com seu filho indesejado Jair Bolsonaro, sintoma da enorme crise de hegemonia da burguesia, apelando para que a reação mantenha a dominação, a nossa resposta mais profunda só pode se dar construindo uma verdadeira força social dos trabalhadores a fim de adotar os métodos históricos da classe trabalhadora para enfrentar a extrema-direita: a luta de classes.

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