Venezuela: a agonia da fábula chavista do “Socialismo do século XXI”

0

 

 

GONZALO ROJAS E ANDRÉ AUGUSTO

Número 2, agosto de 2017

 

O objetivo deste artigo é realizar uma análise crítica do “socialismo do século XXI” na Venezuela. Em um contexto de crise orgânica do capitalismo, a atual conjuntura do país se expressa numa luta central entre dois blocos políticos, o do chavismo decadente organizado no Estado com o presidente Maduro como principal referente político e o bloco da direita abertamente pró-imperialista encabeçado pela MUD (Mesa de Unidade Democrática). Destacamos a importância da independência política e estratégica dos trabalhadores diante dos dois blocos.

A crise de 2008 como ponto de inflexão para a Venezuela e a América Latina

 Desde o triunfo eleitoral de Hugo Chávez em 1999, se inicia uma nova situação política na América Latina que fez ascender um conjunto heterogêneo de governos muitas vezes denominados “pós­neoliberais”, em ausência de uma conceituação mais adequada e suficientemente abrangente, e que foi produto de diversos conflitos que o próprio modelo neoliberal gerou.

A crise capitalista mundial de 2008 e seus desdobramentos – uma crise de proporção histórica e não conjuntural, que se manifesta a ritmos diferentes no planeta – afetou com força a América Latina, acabando com o boom de crescimento que permitia manter, em geral, políticas macroeconômicas hegemonizadas pela fração do capital financeiro nacional e internacional, combinadas com políticas sociais de caráter compensatório, muitas vezes denominadas de caráter social-liberal. Isto significa que não estamos frente a uma crise cíclica “normal”, mas frente a uma “crise orgânica” do capitalismo mundial, emprestando os termos do marxista italiano Antonio Gramsci.

Ou seja, não estamos numa situação de “ciclos normais”. A crise iniciada em 2008, por começar nos Estados Unidos, principal potência imperialista mundial e não em um país periférico, é muito mais profunda e logo se expande para a Europa, norte da África e depois de alguns anos chega com força na América Latina em geral e na Venezuela em particular.

Isto num contexto em que se articula, de forma desigual e combinada, crise econômica e crise política em ritmos diferentes em cada país, segundo sua própria formação econômico-social.

“Socialismo do século XXI” ou nacionalismo burguês na semicolônia?

 

A Venezuela é um país com uma riqueza baseada nos recursos naturais, notadamente o petróleo. Com a ascensão de Hugo Chávez em 1999, o país assistiu a uma tentativa de formação de uma nova fração dominante no bloco do poder, a boliburguesia, uma “burguesia bolivariana” que emerge impulsionada por uma fração das Forças Armadas que tenta construir um movimento popular desde o Estado. Chávez revestiu seu ciclo de governo com uma retórica anti-imperialista, certas nacionalizações e um discurso de “apropriação” do Estado em nome de um suposto novo modelo produtivo, ao mesmo tempo em que promoveu a “cidadanização” das massas populares (ou seja, a diluição da classe trabalhadora como sujeito político).

Assim, em troca de concessões sociais aos setores mais empobrecidos das massas, através da enorme renda petrolífera, o poder econômico capitalista manteve o centro das suas posições com os setores estratégicos da economia, controlados em boa medida pelo Exército, que absorveu a parte de leão da renda oriunda da exportação do petróleo. A Venezuela não excedeu o seu personagem e aprofundou sua dependência das receitas do petróleo. As exportações do “ouro negro” se tornaram responsáveis por 96% do total das receitas geradas pelo país bolivariano.

Se antes de 2008 o governo venezuelano gozava dos altos preços das matérias-primas energéticas, o estouro da crise tem um profundo impacto nas condições de reprodução do “modelo chavista”. Isto gera uma maior dificuldade para seu triunfo eleitoral ou à necessidade de fazer pactos com setores da direita empresarial (que sempre se fizeram em detrimento dos trabalhadores), o que levou a uma tendência a maiores crises políticas. Independentemente da retórica bolivariana do “socialismo do século XXI”, o chavismo se constituiu como um nacionalismo burguês baseado nas Forças Armadas e na dependência de acordos de exportação do petróleo, favorecendo os setores rentistas da burguesia nacional, disciplinando militarmente a classe trabalhadora e contendo o movimento de massas nos limites aceitáveis por este modelo.

Com a crise econômica mundial e a morte de Chávez em 2013, passa-se a um turbulento período de “transição pós-chavista” com Nicolás Maduro, dando início ao que denominamos “fim de ciclo” dos governos pós-neoliberais na América Latina e um giro à direita na superestrutura política.

Simultaneamente, aparecem novos desafios para a esquerda anticapitalista e socialista em termos de estratégia. Entendemos que a teoria marxista pode contribuir a esta análise e destacamos a importância destas abordagens.

Chavismo: bonapartismo “sui generis” e a boliburguesia no fim de ciclo

 

Esgota-se, como dissemos, o ciclo pós-neoliberal de governos latino-americanos chamados “populistas” ou “progressistas”, que governaram quase uma década e meia, dando lugar a um giro à direita na superestrutura na América Latina, largamente preparado por estes próprios governos (como o kirchnerismo na Argentina, ou o petismo no Brasil).

Estes governos, mesmo heterogêneos, expressaram uma mudança geral do pessoal político nos governos pela profunda crise que as políticas neoliberais dos anos 90 deixaram na região, como foi o caso do chavismo depois do Caracazo, que acabou com o sistema político nascido do “Pacto de Punto Fijo”, em que dois partidos se alternavam na administração política da Venezuela: o COPEI, uma democracia cristã “a la venezuelana” e Acción Democratica, uma espécie de socialdemocracia.

Eles se estabeleceram a partir de uma posição favorável em relação aos termos de troca para a região, invertendo a posição clássica desses termos para a periferia em relação às metrópoles imperialistas. Isso permitiu obter elevado saldo favorável da balança comercial, o que constituiria de forma simplificada a base material de seu apogeu e seu ocaso.

A Venezuela constituiu, neste contexto, a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) com um discurso e uma posição mais anti­imperialista, junto com a Bolívia e o Equador. Estes governos realizaram mudanças constitucionais e tiveram maiores atritos com o imperialismo, oposições internas fortes, que trataram inclusive de avançar em golpes de Estado como na Venezuela em 2002. Depois disso, na cidade de Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, Chávez fala, pela primeira ocasião, de “Socialismo do século XXI”, um conceito que nada tinha a ver com a abolição da propriedade privada burguesa e o avanço a um Estado operário de ruptura com o capitalismo.

De fato, ao calor das altas receitas com os preços elevados do petróleo e as concessões em setores sensíveis às massas, o chavismo aprofundou o viés primário-exportador da economia rentista (em 2015, a contribuição da indústria para o PIB venezuelano está abaixo de 14%), apostou na associação com as transnacionais, protegeu os bancos privados, as empresas e o latifúndio, sem tocar na propriedade privada dos meios de produção e pagando religiosamente a dívida externa ao imperialismo.

Por isso, a Venezuela apresentou traços do que Leon Trotsky chamou de “bonapartismos sui generis de esquerda“, conceito usado quando se referia a Lázaro Cárdenas em México.

No marco do boom das commodities e os altos saldos das balanças comerciais, o governo Chávez conseguiu incentivar o aumento do consumo das massas e realizou medidas de assistência social. Depois de uma crise muito aguda, setores da classe trabalhadora viram melhorar o seu nível de consumo, embora tenha sido muito menor a mudança no que diz respeito às condições de moradia, à precarização do trabalho com a militarização das fábricas, e infra­estrutura em geral.

As Forças Armadas se tornaram virtuais controladores da economia (alguns dados apontam que 40% da economia venezuelana estaria nas mãos de personagens do alto comando). Como parte da estratégia de remover o alto comando do Exército da influência da direita, em 2015, Maduro colocou os principais portos do país sob comando militar. Da mesma forma, em 2016, o governo Maduro deu origem à Compañía Anónima Militar de Industrias Mineras, Petrolíferas y de Gas (Camimpeg), uma empresa petrolífera de segurança, sob as ordens do Ministério da Defesa, encarregada da administração das operações de perfuração, importação, exportação e comercialização do petróleo. Um incremento enorme nos privilégios materiais dos militares.

Outra característica do “Socialismo do século XXI” foi a passivização política do movimento de massas, em especial o disciplinamento dos trabalhadores sob repressão militar. A herança deixada por Hugo Chávez, assumida plenamente por Nicolás Maduro, foi a concentração da indústria e do setor de energia nas mãos das Forças Armadas. O complemento político disso: a proibição de facto do direito à greve.

Emblemática demonstração dos conflitos dos trabalhadores com o governo chavista foi a poderosa greve da metalúrgica Sidor (à época com 13500 operários) em 2008, em que os trabalhadores, indignados com a repressão da Guarda Nacional sob mando de Chávez, gritavam “Onde está o socialismo do governo?”. Para proteger as multinacionais, como a Sidor, contra a organização dos trabalhadores, Chávez proibiu a eleição sindical (algo que perdura no estado de emergência de Maduro).

Com o fim do ciclo de aumento dos preços das matérias primas, esses governos chegam a um fim de ciclo e acabam abrindo o caminho para a direita da MUD.

O pano de fundo da atual disputa é a gravíssima crise geral – econômica, social e política – em que resultou o projeto chavista de “desenvolvimento nacional” e o discutido “socialismo com empresários” sobre a base do capitalismo dependente, enquanto a renda petrolífera despencou. A velha luta entre as camarilhas chavistas “boliburguesas” e a burguesia tradicional pelo controle desta renda petrolífera, agora menor, se intensifica em torno do problema do poder político, já que o seu controle e sua distribuição dependem do Estado.

O grande confronto entre a MUD (que organizou locautes patronais reacionários junto às câmaras empresariais venezuelanas) e o governo Maduro (que instalou uma Constituinte fraudulenta para incrementar o autoritarismo do Estado) se estende sem resolver o “empate catastrófico” na relação de forças, enquanto se agravam as penúrias dos trabalhadores e do povo, os mais golpeados pela brutal crise econômica.

Neste quadro de putrefação das condições objetivas, sem irrupção da classe trabalhadora e das massas, a crise se alarga e prepara o terreno para uma saída reacionária.

Socialismo científico e socialismo século XXI

Em relação à ideia de “Socialismo do século XXI, podemos dizer concretamente que limitou-se a um discurso de conciliação entre empresários nacionais e trabalhadores – sempre em função de proteger a propriedade privada – sem nenhuma relação com o socialismo científico, o marxismo.

Desde o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels de 1848, o comunismo se define pela abolição total da propriedade privada burguesa, não pela combinação de relações de produção numa determinada formação econômico social. “Socialismo” no discurso e capitalismo de fato: a isso se reduziu a retórica chavista, agora em crise. No caso da Venezuela, nada mudou quanto ao modo de produção capitalista: mudaram os agentes que se apropriam da renda petroleira, neste caso, o Estado, que continua sendo de classe burguesa no capitalismo,  uma boliburguesia, a burguesia bolivariana. Existiram mudanças na correlação de forças entre as frações de classes dentro do bloco, com maior peso dos militares no poder com hegemonia do setor rentista petroleiro. O resultado foi pavimentar o caminho para o fortalecimento da direita golpista.

A segunda questão tem relação com o Estado e os sujeitos políticos da mudança social. As ideias de Marx, Engels, Lenin e Trotsky não tem nada a ver com uma possível mudança gradual do caráter de classe do estado desde dentro do próprio Estado. A possibilidade de socialismo, entendida como uma fase de transição ao comunismo, exige a destruição do Estado burguês depois da tomada do poder político pelos trabalhadores e seus aliados; e não uma mudança de cima para baixo impulsionada desde o próprio Estado, onde o principal sujeito político são as Forças Armadas, reprimindo e desorganizando a classe trabalhadora.

A Revolução Russa de 1917, dirigida pelo Partido Bolchevique, em cuja cabeça se encontravam Lênin e Trotsky, mostrou que a estratégia insurrecional para a destruição do Estado burguês e sua substituição por um Estado operário, baseado nos organismos de auto-organização das massas, se dá ao redor de uma estratégia hegemônica da classe trabalhadora sobre as massas oprimidas da cidade e do campo. Se existe um “Socialismo do século XXI” que mereça este nome, é justamente esta estratégia que vive seu centenário este ano.

    Neste sentido a Venezuela nos mostra que não há atalhos na luta de classes, tornou-se novamente claro que não pode haver mudanças progressistas para as massas sem a sua mobilização e organização independente, ainda mais se pensamos nas possibilidades de “socialismo”.

    A ausência de independência política da classe trabalhadora venezuelana é a debilidade mais importante do ciclo histórico do chavismo no poder. A energia e disposição de luta dos trabalhadores e dos setores populares foi enquadrada pelo chavismo e, diante de sua queda, é a direita que a capitaliza como opção visível de alternância política.

    Não há dúvida que a direita pró-imperialista organizada na MUD não tem nada a oferecer a não ser golpes autoritários, estendendo o tapete à intervenção do governo Trump e de setores descontentes das Forças Armadas na Venezuela. Para enfrentá-la, entretanto, os trabalhadores venezuelanos não podem apoiar-se no bonapartismo chavista, que se move crescentemente à direita. O fortalecimento do autoritarismo repressivo de Maduro golpeia com muito mais veemência a classe trabalhadora e suas organizações em sua disputa com a direita, para ver quem pode representar melhor o regime capitalista no contexto da crise.

A trágica experiência do chavismo exige que se extraiam todas as lições estratégicas e, especialmente, a necessidade de que a classe trabalhadora apareça como sujeito político próprio, independente do chavismo organizado no PSUV e da direita opositora. Esta é a única maneira de bloquear uma saída reacionária preparada na disputa entre os dois bandos autoritários da burguesia. É também a única possibilidade de que surja um programa anticapitalista, anti­imperialista e socialista na Venezuela.

 

About author

No comments