New Deal: a intervenção estatal foi capaz de recuperar os EUA da crise?

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imagem por Juan Chirioca

texto por Daphnae Helena

Estamos vivendo desde 2008 uma das crises mais profundas do capitalismo desde a Grande Depressão de 1929.  Até o momento, a saída encontrada pela burguesia -as emissões monetárias nos países imperialistas- freou a dinâmica catastrófica da crise atual, estendeu os seus efeitos no tempo, dando lugar ao que a uma Grande Recessão, mas foi incapaz de solucioná-la. Frente a este impasse econômico, voltam a tona as posições no debate econômico e político que advogam por medidas de cunho keynesiano, ou seja, uma forte intervenção estatal com aumento de gastos para gerar emprego e recuperar os estados da crise. Uma ação que vá além do receituário de corte de gastos e, também, além de medidas de protecionistas, como a implementação de tarifas protecionistas.

Estas idéias da intervenção estatal que não aja a favor dos bancos, mas sim a favor da maioria da população se cola com setores da própria esquerda, que reivindicam por uma espécie de novo New Deal na economia para criar emprego, diminuir as desigualdades e regular a anarquia capitalista. Por isso, vale a pena voltar ao  programa econômico levado a cabo por Roosevelt nos Estados Unidos dos anos 1930 que é reivindicado como um exemplo dessas medidas num ambiente de democracia burguesa. Esse programa foi capaz de recuperar os Estados Unidos da Grande Depressão?

Os antecedentes da crise de 1929

A profundidade da Grande Depressão nos Estados Unidos pode ser entendida levando-se em conta o boom econômico que a precedeu durante a década de 1920. Este período marcou um boom econômico no país caracterizado por um ambiente de crescimento vertiginoso no PIB, no consumo e nos investimentos (40,7%, 57,2% e 51,4%, respectivamente). A indústria de bens duráveis e não duráveis foi a que mais cresceu na época, com desenvolvimento de novas áreas como o setor automobilístico e toda a cadeia que esse segmento arrasta consigo, como construção de estradas, produção de gasolina, engenharia de tráfego. Além disso, também houve estímulo em outros setores como a indústria química e a construção civil – particularmente o habitacional. O sistema bancário, altamente pulverizado em cerca de 30.000 pequenos bancos comerciais em todo território, aumentou consideravelmente a oferta de crédito para capitalistas e, também, para consumidores. As políticas fiscal e monetária do Estado seguiam as premissas do laissez faire, do liberalismo econômico, de não interferência estatal na concorrência capitalista.

Ao mesmo tempo, esse foi o período da queda do desemprego (que caiu de 11,9% para 3,5% ao longo da década), do aumento do consumo e endividamento das famílias, que chegou a representar 40% do PNB (Produto Nacional Bruto) do país. Houve também aumento do salário real dos trabalhadores em cerca de 25%, contudo, se comparado com a elevação de produtividade observada na indústria, mesmo com o aumento real de salário, o período foi marcado pela redução dos custos de produção para os capitalistas e, consequentemente, o aumento da taxa de lucro. Foi também um período de diminuição das greves e da participação sindical dos trabalhadores, em razão desse crescimento econômico vertiginoso.

É necessário destacar que, se por um lado a diminuição da atividade sindical dos trabalhadores estava relacionada com os ganhos reais no poder de compra, como apontado acima; também é verdade que durante 1919 e 1920 ocorreu uma política estatal de repressão contra a “Ameaça Vermelha” que perseguiu e deportou militantes de esquerda dos Estados Unidos como resposta às mobilizações de trabalhadores com greves importantes e vitoriosas, no início da década, em setores como a indústria do aço. Além desse elemento, a década de 1920 também viu o ressurgimento da Ku Klux Klan e a aplicação de políticas racistas e anti-imigrantes.

Esse panorama nacional não pode ser entendido sem considerarmos o aumento do peso internacional dos Estados Unidos enquanto potência capitalista e sua localização na disputa entre potências que caracteriza a primeira metade do século XX. A década de 1920 marca um período em que os principais países capitalistas se voltavam para suas economias nacionais, recuperando-se dos impactos da Primeira Guerra Mundial. E, no caso dos Estados Unidos (que não participou diretamente da Guerra e ao mesmo tempo lucrou muito com ela), o aumento vertiginoso da produção do país levaria a necessidade da expansão das fronteiras econômicas em busca de mercado consumidor, e isto significaria o choque com o interesse de outras potências capitalistas e com a “partilha do mundo” do início do século XX.

Esse é o ambiente que gesta a Grande Depressão nos Estados Unidos, disputas com grandes potências e um aumento da produção em níveis que o mercado consumidor doméstico não mais conseguia suportar (mesmo com os mecanismos de crédito altamente desenvolvidos) combinado com especulações no mercado financeiro baseadas nas projeções otimistas de lucros que seriam obtidos futuramente. A crise, gestada nas contradições do boom da economia, atinge em cheio as expectativas otimistas dos capitalistas e impacta profundamente os trabalhadores.

A Grande Depressão significou um gigantesco baque para a economia americana. Nos dois primeiros anos foram mais de 9.000 bancos fechados, o produto nacional contraiu mais de 30%. A produção industrial diminuiu pela metade e os investimentos reduziram 90%. Os salários baixaram 56% e a paralisia industrial criou um exército de quinze milhões de trabalhadores desempregados. As mobilizações de desempregados em comitês e as greves por parte dos trabalhadores marcaram particularmente o ano de 1932, um ano antes da eleição de Roosevelt e do lançamento do New Deal.

Em meio a este cenário, assim como vemos na crise atual, a crença no capitalismo como sistema econômico capaz de garantir a prosperidade foi profundamente abalada. A título de ilustração, podemos citar o resultado obtido por uma pesquisa feita pela Câmara de Comércio dos Estados Unidos em 1932 em que 90% dos consultados declaravam estar a favor da planificação econômica (influenciados pelo crescimento industrial explosivo da União Soviética, mesmo com a deterioração das conquistas da revolução imposta pela burocratização stalinista).

Eleição do Roosevelt e o New Deal

A eleição de Roosevelt foi um momento de unidade entre os diversos setores da burguesia que o apoiaram em base à necessidade que se tinha de agir contra a crise e do Estado ajudar a indústria, a agricultura e, principalmente, os bancos que estavam quebrando. É nesse contexto que Roosevelt assume a presidência do país em 4 março de 1933, tendo sido eleito com 57% dos votos, com o discurso de mudança e de ação contra a crise. O New Deal deu um novo impulso para a política econômica com um novo papel do Estado em socorrer a economia da bancarrota dos grandes monopólios, tendo que lidar com uma situação também convulsiva do ponto de vista das mobilizações dos trabalhadores.

De inspiração keynesiana, a nova política econômica foi acompanhada de perto e com bastante entusiasmo pelo Lord John Maynard Keynes, que apesar de ser um representante da burguesia britânica, sabia que a recuperação dos Estados Unidos era fundamental para a sobrevivência do capitalismo e, justamente por isso, escreveu ao longo da vigência desta política econômica uma série de cartas endereçadas ao presidente dos Estados Unidos. Em Uma carta aberta ao Presidente Roosevelt, em 1933, Keynes escreve: “Você fez a si mesmo a esperança para aqueles em todos os países que procuram consertar os males da nossa condição por experiências razoáveis fundamentadas no âmbito do sistema social existente. Se você falhar, a mudança racional será gravemente prejudicada em todo o mundo, deixando ortodoxia e da revolução para lutar. Mas se você for bem sucedido, métodos novos e mais ousados serão tentados em todos os lugares, e poderemos datar o primeiro capítulo de uma nova era econômica de sua adesão ao gabinete”.

New Deal foi idealizado por diversos economistas nos 100 primeiros dias de governo de Roosevelt. Não havia nenhum viés teórico do ponto de vista econômico que unificava os chamados new dealers -os economistas que formularam o programa de governo. O objetivo era a necessidade política de ação para amenizar os efeitos de crise e tentar encontrar uma saída para o capitalismo que não levasse a sua destruição e que viesse acompanhada da manutenção da democracia burguesa, ainda mais frente a recente experiência da Revolução Russa em 1917. As primeiras palavras de Roosevelt foram “Esta nação precisa de ação, e ação agora”.

O programa conhecido como New Deal durou de 1933 até 1937. Neste período, o governo Roosevelt leva a cabo algumas medidas como reformas emergenciais no sistema bancário, e, principalmente, investimentos públicos administrados pela Civil Works Administration até 1934 e depois por meio do Federal Emergency Relief Act. As ações consistiam basicamente na construção de estradas, escolas e parques e no oferecimento de um programa de emprego temporário (de curto período) em atividades intensivas de trabalho, pelo qual se pagava um salário mínimo com o objetivo de aumentar o emprego.

Além disso, o New Deal promoveu uma política econômica para a indústria, o National Recovery Industrial Act (NIRA). Esta foi uma política que teve diversas medidas de regulamentação do trabalho (dentre as principais podemos citar a extinção do trabalho infantil, a regulamentação de 40 horas semanais, a regulamentação especial para o trabalho feminino) e também concedeu na Seção 7(a) a liberdade dos trabalhadores se organizarem por indústria – anteriormente a organização sindical era feita por empresa, as company unions.

Essa política industrial determinou a formação da National Recovery Administration, uma agência do governo para auxiliar nos acordos de regulação de preços, produção, investimento, marketing e preços praticados. Esses acordos sob uma retórica “democrática” que buscavam a conciliação entre capital e trabalho eram estabelecidos em termos de “fair competition”, ou seja, eram desenhados por um comitê tripartite de empresários, trabalhadores e consumidores, mas que na prática significava a decisão dos primeiros sobre a economia.

A política levada a cabo por Roosevelt privilegiava fortemente setores do capital financeiro, como o grande capital na indústria e nos bancos, por meio da NRA (onde toda política para cada parte da indústria era ditada pelas grandes empresas, com maior peso econômico e melhor organizadas) e do Banking Act (que salvou apenas uma parte do setor bancário, favorecendo o movimento de concentração de capital nesse setor que era altamente pulverizado).

Num primeiro momento, não havia contraposição de outras frações burguesas em relação à adoção das medidas, porque existia o consenso de que alguma alternativa deveria ser apresentada. Entretanto, a partir de momento que houve uma certa recuperação da economia e nos negócios, combinado com os impactos contraditórios de algumas medidas adotadas como a NRA (que culminou na sua extinção), a unidade burguesa entre estes setores foi se desfazendo frente a questões mais “polêmicas” como, por exemplo, o imposto proposto por Roosevelt em 1935 para taxar o lucro das empresas. A coalizão que sustentava o governo se tornou mais fraca e os setores mais ortodoxos passaram a questionar com mais força as medidas de reforma e de gasto governamental apresentadas pela presidência.

New Deal e luta de classes

Se por um lado, houve o rompimento da unidade burguesia que caracterizava o início da implantação do New Deal, por outro o governo Roosevelt também teve que lidar, durante toda a década de 1930, com grandes mobilizações de trabalhadores, seja em comissões que organizavam os desempregados, seja dos trabalhadores empregados qualificados e não qualificados dos principais setores da indústria, como as automobilísticas e as metalúrgicas.

Já no ano anterior à eleição de Roosevelt havia um processo de aumento das mobilizações de trabalhadores e desempregados, que continuou ao longo de 1933, num discurso feito pelo rádio o Presidente dizia: “Os trabalhadores desse país possuem direitos legais que não podem ser retirados, e ninguém poderá cortá-los, mas, por outro lado, nenhuma agressão será necessária para alcançar estes direitos…”. As “agressões” eram referência às greves realizadas. Foram totalizadas 841 greves em todo país durante 1932 e esse número saltou para 1695 em 1933, sendo que o número de trabalhadores grevistas aumentou extraordinariamente em um ano, de 324 mil para 1,16 milhão. Estes processos foram a base para a concessão de direitos realizada pela NRA como a seção 7(a) que permite a organização por indústria, de forma independente do empregador.

A recuperação relativa da economia favoreceu esse processo, a possibilidade de sindicalização também ajudou na mobilização dos trabalhadores de conjunto -ainda que, se nos sindicatos por indústria esse número cresceu bastante, essa elevação também foi vista na organização por empresa, fato que sugere uma politização mais geral dos trabalhadores e não apenas em razão do direito a organização conquistado. A própria política de comitê tripartite da NRA trazia muitos questionamentos, porque os salários mínimos e as horas de trabalham eram determinados por setor da indústria, de forma arbitrária pelos empresários e com grandes desigualdades entre eles. O piso mínimo firmado pelas empresas (entre 8 e 15 dólares por semana para 40h de trabalho) era aquele praticado e significava muito pouco para os trabalhadores: “era o suficiente para não morrerem de fome, mas muito pouco para conseguirem viver”.

Além disso, havia um descontentamento, que vinha desde a década de 1920, dos trabalhadores com a adoção das linhas de produção, porque o ritmo da produção era determinado inteiramente pelo patrão, impedindo o descanso dos trabalhadores e muitas vezes com “guardas” no chão de fábrica como força repressiva. Estas mobilizações eram feitas, muitas delas, de forma independente dos sindicatos, com comissões organizadas nas fábricas, e nesse sentido levaram a um processo de questionamento da central sindical que organizava a maioria dos trabalhadores nos Estados Unidos, a AFL.

Durante o ano de 1934, esse processo de acirramento dos conflitos entre capital e trabalho apenas se aprofundou, houveram três greves na primeira metade do ano, consideradas marcantes: a dos trabalhadores da Electric Auto-Lite Company de Toledo, a dos caminhoneiros de Minneapolis, a dos estivadores de San Francisco. As mobilizações anteriores a essas feitas eram processos em que os trabalhadores não conseguiam suas reivindicações, pelo fato dos empregadores e do Estado se utilizarem de diversos mecanismos judiciais, repressivos, ameaça de demissão, etc. que faziam os grevistas desistirem, mas nessas três mobilizações, os trabalhadores conseguiram suas reivindicações, inaugurando um novo ciclo de greves no país que deu origem a outra central sindical, que não a AFL, a CIO (Congress of Industrial Organizations) fundada por milhões de trabalhadores dos Estados Unidos.

Dentre os elementos que estas greves apresentaram de distinto das outras, está nos métodos dos trabalhadores, que desafiaram as decisões da justiça, as ameaças de demissão dos empregadores, realizaram piquetes em frente às fábricas e, principalmente, se organizaram com demais setores da sociedade, o que lhes conferiu uma força muito maior. Na greve de Toledo, por exemplo, os trabalhadores realizaram piquetes e manifestações conjuntamente com a organização de desempregados, na greve de San Francisco a cidade inteira parou por meio de uma greve-geral em apoio à mobilização, na dos caminhoneiros de Minneapolis também diversos setores da sociedade apoiaram a greve.

Este profundo processo de reorganização da classe trabalhadora estadunidense durante os anos 30, que deu origem a uma nova central sindical, teve de se enfrentar como uma violenta repressão policial. Enquanto Roosevelt se apoiava num discurso de conciliação dos patrões e trabalhadores, de suposta democracia e ia ao rádio dizer que os trabalhadores possuíam direitos que não poderiam ser retirados, a mobilização dos trabalhadores por melhores condições de trabalho era vista como uma agressão. Nas três mobilizações que estamos citando como principais, que envolveram as suas cidades e foram relativamente longas, os trabalhadores viveram um cenário de guerra civil. Mas mesmo antes delas os números da repressão chamam atenção: foram 13 mortes, 200 feridos e centenas de presos somente no segundo semestre de 1933.

New Deal recuperou a economia?

New Deal de Roosevelt que vigorou dentre os anos 1933 e 1937 foi absolutamente incapaz de tirar os Estados Unidos dos efeitos da grande depressão. Apesar da taxa de desemprego ter diminuído de 25% em 1933 para 12% em 1937, em 1938 a taxa de desemprego voltou a subir para 20%. Os gastos públicos que eram de US$ 4,6 bilhões em 1933 atingiram o seu máximo de US$ 8,8 bilhões em 1937, ou seja, chegou a quase dobrar ao longo do período e ainda assim não foram capazes de retirar a economia da crise. Ao final de 1939, passados dez anos do estouro da bolsa, o produto interno bruto dos Estados Unidos apenas chegava ao nível anterior a 1929. Somente a preparação para a Segunda Guerra Mundial, e os US$ 35 bilhões de gastos públicos, foram capazes de reverter esse quadro.

O plano econômico de Roosevelt é tomado como uma experiência histórica exitosa de intervenção estatal capaz de mitigar os efeitos da crise econômica e recuperar a economia dos Estados Unidos nos marcos da democracia burguesa, ou como coloca Keynes nos marcos da “mudança racional”, gerando emprego. Do ponto de vista dos trabalhadores, apesar da retórica de Roosevelt de nenhuma retirada aos direitos trabalhistas, do ponto de vista das mobilizações dos trabalhadores o governo também significou uma enorme repressão. Do ponto de vista da burguesia, a intervenção estatal foi incapaz de resolver as contradições da crise, ou seja, de recuperar as taxas de lucro e permitir um novo ciclo de acumulação do capital. ONew Deal cumpriu um papel importante para um setor da burguesia, pelas reformas que promoveu na indústria e no sistema financeiro, permitindo a concentração ainda maior do capital em poucos monopólios. Ou seja, a crise de 1929, ao contrário das anteriores e apesar de todos os esforços de intervenção estatal levado a cabo pelo New Deal, não encontrou saída fácil e o seu combate “pacífico” nos marcos do capitalismo foi absolutamente incapaz de recuperar a economia, inócuo para evitar que momentos de crises, guerras e revoluções estivessem novamente colocados.

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