Kautsky e os debates atuais na esquerda Estadunidense

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Por Nathaniel Flakin

 

Introdução

Na maior parte da Europa, seu bastião histórico, os partidos social-democratas estão falidos ou em uma profunda crise nos últimos anos, fruto de terem sido os principais aplicadores dos ajustes e ataques contra as condições de vida da classe trabalhadora, sua base social tradicional. Enquanto isso, nos Estados Unidos, devido ao seu atraso político histórico, a social-democracia está vivendo uma espécie de renascimento, capitalizando em cima do descontentamento e do giro à esquerda de grandes camadas da juventude. O Democratic Socialists of America (DSA), que segue essa tradição, passou rapidamente de 5 mil para 55 mil militantes, e continua crescendo. Nos últimos anos, apresentou seus candidatos pelo Partido Democrata, obtendo alguns deputados federais, e diversos parlamentares nos níveis estadual e municipal. Suas principais referências buscam canalizar a simpatia dos jovens por uma ideia genérica do socialismo, dando a isso o significado de “capitalismo humanizado”. Atualmente colocam seus esforços na campanha presidencial de Bernie Sanders para 2020.

 

Nas páginas da revista Jacobin, publicação teórico-política ligada ao DSA, já faz tempo que fazem o debate sobre como deve ser a esquerda dos EUA. Nesse sentido, se desenvolve uma espécie de “volta a Kautsky”, reivindicando sua figura e legado, assim como a ideia de se construir uma “social-democracia pré-1914”, a começar pelo diretor da Jacobin, Bhaskar Sunkara. Uma abordagem crítica dessas polêmicas poderá ser encontrada no livro Estratégia socialista e a arte militar, de Emilio Albamonte e Matías Maiello, publicado em breve.

 

A seguir reproduzimos um artigo de Nathaniel Flakin, membro da equipe editorial do Left Voice, que é parte da Rede Internacional de Diários (em 7 idiomas) da qual faz parte também o Esquerda Diário. O Left Voice recentemente publicou um novo número de sua revista impressa, onde são abordados criticamente os últimos capítulos do “debate Kautsky” que vem atravessando a esquerda norte-americana.

 

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O que os socialistas de hoje podem aprender com Karl Kautsky? Para responder a essa pergunta, devemos analisar como suas teorias se sustentaram diante da Revolução Alemã de 1918. Este é o texto de uma apresentação realizada durante a conferência Socialism in Our Time [Socialismo no nosso tempo], no dia 14 de abril, em Nova York. Foi parte de um debate realizado com Eric Blanc, Charlie Post, Maike Taber e outros socialistas.

 

Acabamos de celebrar o centenário da Revolução Alemã de 1918. Eu gostaria de mostrar a vocês a fotografia mais emblemática dessa revolução. Na imagem, nós vemos membros de um grupo paramilitar de direita, as Freikorps, apontando uma metralhadora para uma manifestação de trabalhadores. Atrás deles há um cartaz: “A socialização está aqui!” – o governo prometia a socialização das minas de carvão. Essa justaposição sintetiza a política do Partido Social-democrata Alemão (SPD, pela sigla original): massacrar os trabalhadores enquanto promete a eles  o socialismo. E quem era o chefe do “comitê de socialização” do governo, levando adiante essa farsa? Karl Kautsky.

 

A Revolução Alemã viu o velho SPD ser disputado entre três alas: a ala direita, de Friedrich Ebert representava o velho poder: os capitalistas, a burocracia, os aristocratas. A ala esquerda, de Rosa Luxemburgo – que depois veio a se tornar o Partido Comunista Alemão (KPD) – representava o novo poder: os conselhos de operários e soldados. O centro, de Karl Kautsky, tentava criar mediações entre os dois lados, propondo combinar o parlamento e os conselhos, mesmo nos momentos mais duros da guerra civil.

 

O único critério prático para analisar qualquer teoria revolucionária é uma revolução real. E, a partir da Revolução Alemã, podemos concluir que Kautsky acabou sendo um “idiota útil” para o governo contra revolucionário burguês, ajudando em sua farsa de “socialização”. Quais decisões estratégicas levaram Kautsky a essa posição?

 

I

 

Em 1910, um debate sobre estratégias dominou o SPD. Kautsky, baseado no teórico militar Hans Dellbrück, propôs a diferenciação entre a “estratégia de desgaste” (Ermattung) e a “estratégia de aniquilamento” (Niederwerfung).

 

Naquela época, centenas de milhares de trabalhadores saíam às ruas contra as restrições ao direito de voto na Prússia. Rosa Luxemburgo insistia que o SPD deveria fazer agitação por uma Greve Geral para ligar essa luta com os conflitos econômicos que estavam se desenvolvendo. Kautsky se opunha a isso, e impediu que Rosa usasse as publicações do SPD para defender sua ideia. Kautsky achava que o importante era pensar nas eleições que aconteceriam dois anos depois.

 

É importante enfatizar que Rosa Luxemburgo não era contrária à participação nas eleições – seu primeiro trabalho político na Alemanha, inclusive, foi fazer campanha entre os trabalhadores poloneses da Silésia. Ela também não negava a possibilidade de ver a Greve Geral ser derrotada e por isso o SPD ser colocado na ilegalidade. Mas para ela, isso não era razão para frear a luta de classes. Ela acusou Kautsky de ter uma posição “parlamentarismo ou nada”

 

Kautsky, também é preciso dizer, não rejeitava por princípio a ideia de uma luta revolucionária pelo poder, mas argumentava que o partido estava em uma situação não-revolucionária. De acordo com ele, isso demandava uma “estratégia de desgaste”. Somente em uma situação revolucionária o partido deveria adotar a “estratégia de aniquilamento”. Kautsky acreditava que o SPD deveria primeiro obter a maioria no parlamento como um sinal de maturidade para a luta pelo poder. Existem aqueles que buscam marcar uma divisão entre o “bom Kautsky”, antes de 1910, e o “mau kautsky”, a partir de então. Mas. Como Lênin muitas vezes repetiu, mesmo no seu período mais revolucionário, Kautsky ainda mostrava uma “deferência supersticiosa” em relação ao Estado capitalista.

 

De certa forma, Kautsky se provou correto: nas eleições de 1912, o SPD obteve mais de 4 milhões de votos, se tornando o maior partido do parlamento com 110 deputados. Mas em um sentido mais importante, a estratégia de Kautsky teve resultados catastróficos. O enorme bastião no parlamento foi incapaz de fazer mais do que votar unanimemente a favor da guerra imperialista em 4 de agosto de 1914. Nesse ponto, a força do SPD como o único partido da classe trabalhadora, unindo revolucionários e reformistas, se tornou um obstáculo: a burocracia do partido foi capaz de silenciar qualquer oposição à guerra.

 

O que se pode dizer então das ideias de Kautsky a respeito do “desgaste” e do “aniquilamento”? Até o momento de sua morte no exílio, em 1938, Kautsky nunca achou que havia chegado a hora do “aniquilamento”: nem em 1933, quando a burguesia alemã deu carta branca para os nazistas aniquilarem o movimento de trabalhadores, nem mesmo durante a revolução de 1918, quando ele preferiu negociar com os capitalistas e seu Estado.

 

Uma outra pergunta que fazemos é: Estava o SPD preparado para o “aniquilamento”? O centro do partido, por exemplo, havia feito as preparações necessárias para um confronto com o Estado? Havia uma força material que se opunha a que o SPD fizesse qualquer tentativa de “aniquilamento”: a enorme burocracia dos sindicatos. Em 1906, o SPD fez um acordo de que não convocaria nenhuma greve geral sem o consentimento dos líderes sindicais. Assim, os burocratas tinham poder de veto sobre qualquer ação.

 

Existe ainda um problema mais profundo com a teoria de Kautsky: podem os marxistas diagnosticar se uma situação é ou não revolucionária da mesma maneira como os meteorologistas determinam se está ou não chovendo? Como Rosa Luxemburgo argumentou, o caráter de uma situação depende em grande medida de como se posiciona uma organização de massas da classe trabalhadora, como o SPD; se estão lutando por uma greve geral ou esperando as eleições. E como analisou Trotsky, as situações revolucionárias são baseadas em relações recíprocas entre fatores objetivos e subjetivos. Elas não caem simplesmente do céu. Por essa razão, o capitalismo está cheio de situações intermediárias.

II

 

O que significa hoje o debate de Kautsky? Por que, 80 anos depois, Kautsky resurge desde o esquecimento?

Todos recordamos a experiência do partido de esquerda grego Syriza. Ganhou as eleições em janeiro de 2015 com uma plataforma contra a austeridade, mas meio ano depois ignorou o voto massivo do povo grego no plebiscito contra a Troika e a União Européia e começou a aplicar as medidas de austeridade mais brutais, como cortes salariais, desalojamentos e repressão. Muita gente – penso em particular a revista Jacobin – elegeu o Syriza nesse momento, e, entretanto, não vimos muitos balanços a respeito desde então. A maioria dos antigos partidários do Syriza atribuíram a traição a falta de coragem pessoal de Alexis Tsipras.

Creio que Pablo Iglesias, dirigente do partido de esquerda Podemos no Estado Espanhol, teve uma análises mais profunda. Em seu programa Fort Apache[1], defendendo a atuação de Tsipras, disse:


“Se nós governando vamos fazer uma coisa dura e de repente tem uma boa parte do exército, do aparato da polícia, todos os meios de comunicação e todos contra ti, absolutamente todos. E um sistema parlamentario, no qual como asegurar, tu, uma maioria absoluta, é muito difícil […] Para começar, havia que ter chegado em um acordo com o Partidos Socialista”   

 

Aqui, Iglesias está colocando as alternativas estratégicas reais: se um partido quer se opor a austeridade, tem que preparar-se – em um sentido político, organizativo, material, ideológico – para confrontar com todas as instituições da sociedade capitalista, se quiser evitar esse tipo de confronto, tem que buscar compromissos com os partidos da burguesia. Não há meio termo.

 

Podemos tem evitado até agora este tipo de decisões porque tem buscado estar no governo nacional. Também estão nos governos de Madri e Barcelona, onde têm sido responsáveis por aplicar a austeridade e fazer cumprir leis racistas. Ademais, como não tem intenção de enfrentar-se com “absolutamente todo”, não atuaria de forma diferente de Tsipras se alcança o poder, independente de se a valentia pessoal de Iglesias é maior que a de seu companheiro grego.


O que significa isso para os EUA? Nos últimos anos estamos vendo o crescimento explosivo do DSA, e a direção desde fala de uma estratégia “desde dentro e desde fora” do Partido Democrata, que talvez conduza a uma “ruptura suja”. Contudo, na prática vimos o DSA apoiar candidatos sobre os quais não tem controle. Não tem materializado nenhum trabalho político independente.  


Na prática, a direção do DSA tem a estratégia de apoiar setores da ala esquerda do Partido Democrata que chamam a si mesmos de socialistas, mas não querem dizer abertamente. O movimento socialista nos EUA tem se oposto insistentemente, durante 150 anos, a ambos partidos do capital. Hoje em dia seria difícil atrair a juventude que está se radicalizando dizendo “unamos todos os democratas!”. É melhor deixar passar uma perspectiva do tipo: “um dia, no futuro longínquo, quando chegar o momento adequado, romperemos com os democratas e teremos uma revolução”.

Mas, como mostra o legado de Kautsky, esse momento nunca chega. Ninguém desenvolveu um método para passar da “estratégia de desgaste” a “estratégia de aniquilamento”.


Pelo contrário, a ideia mesma de um “aniquilamento” revolucionário se converte em um mito semi-religioso que se invoca a cada domingo, depois de uma semana de pura práctica reformista. Como explicou Trotsky a respeito na Inglaterra [2]:

“As promessas heróicas de apresentar uma resistência fulminante no caso de os conservadores se “atrevam”, etc, etc. não vale um centavo. Não é possível adormecer as massas dia após dia com palavreados sobre uma transição pacífica e indolor ao socialismo e logo, ao primeiro ‘murro firme’ no rosto, convocar as massas a uma resposta armada. Esta é a maneira mais segura de ajudar a reação derrotar a classe trabalhadora. Para estar a altura de uma resposta revolucionária, as massas devem estar preparadas ideologicamente, organizativamente e materialmente para isso. Devem compreender a inevitabilidade de que a luta de classes se agudiza e se converta em uma guerra civil no momento dado. A educação política da classe trabalhadora e a seleção de seu pessoal dirigente devem ajudar nesta perspectiva. É preciso combater as ilusões e o compromisso dia após dia”.

Lenin e Luxemburgo compartilhava de um conceito estratégico fundamental? A necessidade de um partido revolucionário que impulsione a luta de classes, unindo os elementos mais conscientes dos trabalhadores para dar direção as massas. A inovação fundamental de Lenin foi reconhecer quais eram as forças materiais que necessitavam. A tendencia reformista se baseva nas burocracias massivas dos sindicatos e dos partidos operários. A tendência revolucionária requeria sua própria base material: frações revolucionárias nas organizações de massas.  

III


Gostaria de finalizar mencionando algumas contribuições recentes ao debate sobre Kautsky. Eric Blanc tem defendido que “só uma pequena minoria de trabalhadores apoiou alguma vez, inclusive nominalmente, a ideia de uma insurreições”. Isto é patentemente falso, e estou seguro de que Eric não precisa que o lembre dos inumeráveis exemplos no sentido oposto durante os últimos 150 anos. Somente mencionarei um: em Berlin, nas últimas eleições durante o período de Weimar, o Partido Comunista obteve 38% dos votos.

 

Blanc argumenta ainda, que os conselhos operários e outros organismos de tipo soviético nunca apareceram nos países capitalista que tem um regime parlamentar. Uma vez mais, é evidente que isso não é exato. Tomemos os cordões industriais no Chile no começo da década de 1970, que poderia ter construído uma alternativa ao governo de Allende que estava levando a classe operária a uma sangrenta derrota. Em cada luta vemos formas embrionárias de auto-organização. Vejamos o surgimento dos coletes amarelos na França: um regime parlamentar impede realmente que se desenvolvam, em perspectiva, instâncias de auto-organização?

 

Blanc faz referencia a revolução finlandesa de 1917-18. Um partido liderado pelos kautskistas, a social democracia local, de fato conquistou uma maioria absoluta no parlamento e logo tomou o poder político. Espero traduzir ao inglês um folheto sobre a Finlândia que escrevi em alemão [4]. Em resumo: se, o partido social democrata ganhou a maioria porque a burguesias finlandesa não estava acostumada a governar. Seria ingênuo assumir que uma burguesia moderna permitisse aos socialistas ganhar o poder democraticamente. Os kautskistas finlandeses não podiam compreender porque os capitalistas se negavam a aceitar os resultados das eleições e sabotavam o governo social democrata, que não tinha intenção de abolir o capitalismo.

 

Somente quando a burguesia finlandesa começou uma guerra civil com os kaustskistas, ele se viram “obrigados” a tomar o poder. Como havia passado décadas preparando-se para uma transição pacífica e parlamentar ao socialismo, seu exército de poder revolucionário foi desastroso. Como estavam convencidos de que o objetivo da luta devia ser algum tipo de compromisso entre classes não podiam levar adiante uma guerra contra a burguesia. Não podiam lutar para vender o capitalismo, se a teoria que os guiava dizia que a Finlândia devia ser capitalista, ainda que sob um governo social democrata.


Para terminar, também quero defender um pouco Kautsky. Ele estava a favor de um movimento operário independente que lutava por uma maioria no parlamento. Os neo-kautskistaas nos EUA, sem exceção, estão apoiando os candidatos do partido democrata do capital. Este é um dos partidos do imperialismo norte americano, e recentemente na crise venezuelana, vimos inclusive como a chama esquerda “socialista” do Partido Democrata tem apoiado a ofensiva imperialista. Isto é mais atrasado que Kautsky e que 150 anos, quando os trabalhadores ainda se organizavam junto com a ala liberal da burguesia.  

 

Um historiador alemão descobriu a política de Kautsky como “atentismo”[5]. Se trata de um termo francês para denominar um conceito que é contrário de “ativismo”, uma política de espera paciente Kautsky o confirmou em 1909 [6]:


“A social democracia é um partido revolucionário; não é um partido que faz revoluções. Sabemos que nosso objetivo pode ser alcançado somente mediante uma revolução. Contudo sabemos também que não está em nossas mãos fazer esta revolução, assim como não está nas mãos de nossos adversários impedi-la. Por isso, não nos passa sequer pela mente querer provocar ou prepara uma revolução”.

O legado de Kautsky nos ensina que um partido operário não pode instigar uma revolução, mas claramente necessita preparar-se para ela.


Muitos creem que é impossível construir um partido socialista independente de todas as alas da burguesia. Contudo a Frente de Esquerda na Argentina mostra que uma formação socialista revolucionária pode chegar a milhões de trabalhadores.

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