Van Heijennort, militante revolucionário da IV Internacional

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Ilustração: “Para além de toda lógica”, Amanda Kingsland (para Brandeis Magazine)

 

Entre os dias 28 e 29 de março de 1986, foi assassinado Jean Van Heijenoort, secretário de Trotsky, eminente intelectual e lutador pela construção da IV Internacional.

 

Van, o militante, o amigo o homem (1)

Por Pierre Broué*

 

Van morreu de três balas na cabeça, disparadas a queima roupa na noite de 28 para 29 de março de 1986. Ele que fora valioso colaborador de León Trotsky durante sete anos, de Prinkipo a Coyoacán, repousa daqui em adiante não muito longe do último, no cemitério francês da Cidade do México.

 

Nasceu como Jean Van Heijenoort em 23 de julho de 1912 em Creil (França, NdT), filho de um trabalhador holandês emigrado, operário nas usinas de Fichet. Tinha apenas dois anos quando seu pai morreu, na primeira semana da guerra, de uma úlcera no estômago cuja hemorragia não pôde ser interrompida por terem partido [ao front] todos os médicos. Sua mãe e sua avó se empregaram como criadas e ele se alojou com elas nas casas burguesas onde trabalhavam. Caracterizado desde cedo pelo vigor excepcional de suas aptidões intelectuais, conservou da guerra – incluindo os anos em que tinha apenas dois ou três anos de idade – recordações de uma extraordinária precisão.

 

Conheceu a pobreza, porém não a miséria, porque estas mulheres trabalhavam e viviam para ele e sua irmã, e não lhes faltou amor. Porém sofreu do ódio grosseiro, o racismo. Nunca esqueceu de quando foi espancado na escola, tratado como “alemão sujo”, a causa de seu sobrenome “estrangeiro” e seu físico – “pinta” de loiro com olhos azuis – e também porque Guilherme II, “o Kaiser”, como se dizia, havia se refugiado na Holanda em 1918. No entanto, a escola comunitária iria abrir-lhe as portas para o conhecimento. Tendo se destacado em primeiro lugar no concurso departamental de “bolsas de estudos” no final da escola primária, foi aceito na escola Clermont-d’Oise, onde completou brilhantemente seus estudos. Sendo muito jovem, soube fazer-se respeitar e retroceder os provocadores e perseguidores. Este excelente aluno era um menino que não se submetia. A política entrou muito cedo em sua vida porque ele assim ele quis. Odiava a guerra, lhe aborrecia os discursos nacionalistas e as pregações, amava a vida e aspirava por justiça e liberdade imediatas. Sua experiência de menino do Norte, crescido durante a guerra com os ruídos de fundo dos canhões em uma sociedade de classe orgulhosa de todos os estigmas da injustiça, lhe conduziu primeiro a um comunismo “utópico e rousseaniano” e, logo, a leitura de L’Humanité com o grupo de colegiais que havia reunido junto ao seu amigo Jean Beaussier.

 

Sua inteligência rapidamente fez dele um jovem comunista simpatizante das ideias de Trotski, de quem ele ainda não havia lido quase nada, mas cuja importância ele previa e ao qual, em todo caso, ele se recusou a condenar sem tê-lo lido.

 

Brilhante bacharel, ele obteve a bolsa que lhe permitiu entrar no ensino superior em matemática no liceu Saint-Louis em Paris no início de outubro de 1930. Poucas semanas depois, aconteceu o que tinha de acontecer: ele conheceu um grupo de jovens militantes da Oposição de Esquerda, liderado por YvanCraipeau. Eles tinham acabado de vaiar uma obra anticomunista no teatro Charles Dullin, ao qual impuseram um debate que acabou dando-lhes razão. A propósito, eles haviam conquistado Van. Era um militante magnifico. Sem deixar a matemática, completou seus estudos em russo e participou de todas as atividades do grupo pequeno e dinâmico grupo no qual ele acabara de ingressar. Portanto, era completamente natural que, no início de 1932, Raymond Molinier, em busca de um secretário guarda-costas de Trotsky, propusesse que Van partisse para Prinkipo. Van não hesitou nem por um segundo: nem lhe ocorreu duvidar. Partiu entusiasmado para colocar-se a serviço direto daquele que admirava, cujos escritos, publicados em diferentes línguas, agora ele conhecia; O companheiro de Lênin, chefe do exército vermelho, transformou-se no impulsionador da Oposição de Esquerda, o homem do destino da revolução mundial. Van embarcou no trem da história, cujas asas já cavalgavam…

 

Os sete anos passados ao lado de Trotsky foram relatados por Van, com a discrição que o caracterizou, em Com Trotsky, de Prinkipo a Coyoacán: testemunho de sete anos de exílio. O que podemos adicionar à sua própria história? Em primeiro lugar, a crise que o abalou logo após o rompimento da La Commune: como os jovens militantes de sua geração, Van fora atraído pela personalidade de Raymond Molinier, seu destemor, sua combatividade, sua atividade.

 

A sentença de Molinier por parte de Trotsky, seu chamado para expulsá-lo, lhes surpreenderam: A princípio os argumentos do Velho não os convenceram. No entanto, depois de muitas semanas de combate e debate, abandonou o grupo La Commune, cujo um dos pilares era sua companheira Gaby, e escreveu a Trotsky reconhecendo seu equivoco. Podemos acreditar: estava convencido. Ele havia gravado em seu coração a fórmula: “Faça o que deve, aconteça o que acontecer!”(2). Apesar disso, o desvincilhamento pessoal pesou muito, e me falou disso amplamente e com frequencia.

 

 

Abaixo, Van Heijenoort cm Trotsky em 1933

 

 

Van durante a Comissão de Dewey

 

Acompanhou Trotsky em sua viagem e nos primeiros dias de estadia na Noruega, em junho de 1935, de onde voltou para a França em agosto de 1936, quando aconteceram os processos de Moscou e as primeiras medidas repressivas do governo de Oslo. Nesta época, o L’Humanité tratava-o como um agente fascista, criminoso, assassino, em artigos ele era o alvo, junto de Erwin Wolf, porque eram os dois homens corajosos que tetaram romper o isolamento de Trotsky exigido por Moscou.

 

Ele havia me falado sobre as ameaças do órgão do PC francês contra Wolf – assassinado efetivamente na Espanha em 1937 – porém, somente quando remeti-me ao L’Humanité descobri que as ameaças eram também contra ele, e ele não havia me dito.

 

Durante o período da estadia de Trotsky na França, onde acompanhou grande parte de sua peregrinação entre Barbizon e Domère, principalmente em Lyon e Grenoble, foi também a conexão entre Paris e Domère e o tradutor cada vez mais solicitado: foi ele quem traduziu a série de artigos editados mais tarde com o título Aonde vai a França? Em 1936, também traduz a obra de León Sedov, O livro vermelho. Propulsor em 1935 do secretariado Internacional do Jovens, organizador em 1936 da greve na França mutualista, também era pai de “Jeannot”, nascido durante uma de suas estadias em Domène.

 

Desde sua chegada ao México em 1937, imergiu no trabalho de arquivos necessário para a defesa dos acusados nos processos de Moscou e para o funcionamento dos contra-inquéritos da comissão de Dewey. Alí, nos primeiros meses, ao lado de Jan Frankel, ele fez um trabalho titânico com os papéis de Trotsky, contribuindo tanto quanto pôde para preservar e classificar, pouco a pouco, desde os anos da Turquia, e os quais conhecia melhor do que ninguém. Era preciso encontrar rapidamente tal ou qual documento indispensável, analisá-lo, reproduzi-lo, inclusive traduzi-lo, comentá-lo e publicá-lo. A defesa de Trotsky diante da comissão de Dewey, em grande parte, se apoiou materialmente sobre seus guarda-costas. É nesta batalho sombria que ele ganha a estima de todos os intelectuais norte-americanos conquistados pela defesa de Trotsky.

 

Trotsky, Frida e atrás Van Heijenoort

 

Depois da partida de Frankel no verão de 1938, Van já não era o bonachão para todos os serviços, se não o homem de confiança, o único recurso, Van-o-conserta-tudo, cujo quem André Breton brindou com uma descrição tão justa como emotiva em seu discurso de 11 de novembro de 1938 (“Visita a Trotsky”, Cadernos León Trotsky no 12, dezembro de 1982). Ele, que em sua chegada não falava uma palavra de espanhol, conseguiu construir em alguns poucos meses uma sólida rede de relações – sem a qual nada é possível no México – com a imprensa e o aparato Estatal, o mundo político e o universo cardenista. Isso não o impediu de continuar militando como trotskista, escrevendo artigos teóricos – assinados como Jean Rebel – na revista Clave, a qual Trotsky inspirou sob a cobertura de seus amigos intelectuais mexicanos. Era ao mesmo tempo o amigo de Breton e o confidente de Frida Kahlo.

 

 

A propósito dos silêncios de Van, eu gostaria de evocar uma anedota em relação ao texto de Breton que acabei de mencionar e a homenagem na qual o poeta presta a Van, “revolucionário da cabeça aos pés”, a quem ele chama de “o homem tal como eu o entendo, o amigo em toda a acepção da palavra”. Um dia, em julho de 1982, encontrei em Harvard uma cópia do protesto dirigido por Van a Breton em 6 de dezembro de 1938:

 

P.S. – Me escreveram de diferentes lugares sobre um discurso seu no qual falava de mim. Que aborrecimento.

 

Nesse protesto está evidenciado todo o Van. Completamente determinado a provocá-lo, copiei a sentença e levei-a para a casa que ocupávamos, quartos um em frente ao outro. Ele não retornou; preguei a cópia em sua porta e esperei trabalhando no meu quarto. Se reuniu comigo uma hora mais tarde, por sua vez nada disposto a sorrir, como eu esperava, mas real e profundamente desolado em descobrir a amplitude da minha estupidez: como podia eu não compreender quão imprudente Breton havia sido ao dizer que Van trabalhava ao menos 12 horas por dia, sem receber nenhum pagamento, apenas alojamento e comida, longe de Gaby e Jeanoot? Trotsky não pensaria que Van estava se queixando? Confesso ter assegurado a Van minha sincera compreensão e que, de fato, cometi um erro estúpido ao julgar cômica seu protesto ante Breton.

 

Rivera, Trotsky, Breton e Van

De fato, Trotsky se sentia culpado diante de jovens como Van ou Jan Frankel, que lhe consagraram anos de sua vida, não por causa dos estudos incompletos– embora isso fosse importante aos seus olhos – nem devido a (fazer de si mesmo) uma carreira, mas simplesmente porque a situação a seu lado, por mais enriquecedora que fosse em certos aspectos, os isolava da vida, do movimentos real das massas, e alimentava em seus pensamentos uma certa abstração, inevitável no contexto em que foram formados, porém lamentável. Por isso, apesar do desgosto da separação de pessoas insubstituíveis – Como Jan e Van – estava feliz em vê-los voar, finalmente, com suas próprias asas e fazer sua experiência política. A de Frankel parou com a cisão de 1940. A de Van durou mais tempo; também se realizou nas fileiras do SocialistWorkersParty (SWP) – ele foi Gerland na discussão de 1939, 1940 – porém em definitivo não foi mais positivo.

 

Creio que chegou o momento, para o historiador, de dizer serenamente, em uma revista cientifica e sem polêmica, o que Van não queria escrever, primeiro porque não podia fazê-lo sem paixão e, mais tarde, porque ao fazê-lo talvez não considerasse mais essencial. Ele me falou disso com frequencia e muitas vezes, de preferência em nossos passeios dominicais, mas também na vigília das belas e frescas noites da Califórnia. Secretário da Internacional, responsável pelo S.I. em Nova York a partir de 1940, Van estimava – e estimou até o fim – que não havia sido colocado alí em condições elementares de funcionamento de acordo com uma organização internacional, e que o S.I. foi deliberadamente sufocado e paralisado em sua ação, a qual ele julgava capital, devido a má vontade e a passividade da direção do SWP. Sua voz – algo raro – se manchava de indignação quando evocava “o controle burocrático” a qual pesava sobre o membro norte americano do S.I., Bert Cochran (E.R. Frank, ver Cadernos Leon Trotsky nº 20), as sessões nas quais este discutia sobre as vírgulas da correspondência, retardando-a sistematicamente, comprometendo-a às vezes com sua oposição sistemática a toda proposta e iniciativa. Van – que era entõ Daniel Logan, Marc Loris e Ann Vincent – teve choques ainda mais agudos. Se indagava francamente quando evocava as audiências que lhe outorgava James P. Cannon, o então dirigente do partido norteamericano, o SWP, sobre os problemas teóricos e práticos da IV Internacional, sobre a questão nacional na Europa, o problema das consignas democráticas, a necessidade de ajudar os militantes da Europa (que se encontravam) sob um regime de opressão. Consciente na enorme responsabilidade a seu cargo desde a morte de Trotsky, Van sonhava retornar clandestinamente à França.

 

Ele muitas vezes me assegurou que para todas essas questões urgentes não obteve mais respostas, depois de horas de argumentos apaixonados pela Internacional, além de uma série de grunidos inarticulados e a garantia do “veremos”. Neste período, Van trabalhava para viver e realmente fez tudo. Isso não impediu, disse-me ele, que Cannon o censurasse por “exigências de pequeno burguês” em relação aos horários de reunião com os membros permanentes do SWP, que não tinham as obrigações dos horários das quais ele que era escravo. Sempre escutei ele manifestar, a respeito desse período, sua amargura e, às vezes, certo rancor.

 

Sobre os últimos anos de sua atividade militante dentro da IV Internacional, foi, por outro lado, mais discreto, prometendo apenas que “um dia” ele me contaria sobre sua participação na tendência Goldman-Morrow, uma promessa a qual ele não pôde cumprir. A partir de 1943, de fato, ele agiu em conluio com Feliz Morrow e Albert Goldman e, juntos, se opuseram a Cannon, em particular sobre as questões europeias. Aos seus olhos, era absurdo imaginar em 1943 que a revolução socialista aconteceria sem uma transição e vencer no dia seguinte à queda do nazismo, acreditar que era tempo de guardar as consignas democráticas no momento em que o fascismo caiu na Itália; considerava um enorme erro, beirando a degeneração, ver no avanço do Exército Vermelho, em uma aplicação mecânica dos textos [de Trotsky] Em defesa do marxismo, um passo automático diante da revolução, um erro ainda mais grave do que simplesmente negar o papel contrarrevolucionário do Kremlin em escada global. Por essa razão, não é surpreendente somente uma vez ele ter acordo com Cannon, sobre a dissolução da S.I. de Nova York no final da guerra e a transferência de seus poderes ao organismo constituído durante a guerra por Michel Pablo, o secretário europeu. Com efeito, se tratava de assegurar a independência do organismo supremo da IV Internacional em relação ao SWP, objetivo, aos seus olhos, prioritário. Van, porém, não podia continuar trabalhando com o S.I.: beneficiário de uma suspensão temporária do serviço militar, mobilizado de fato a serviço de Trotsky e, depois, da Internacional, se encontrava em situação irregular com relação ao exército francês e o assunto, embora desprovido de gravidade, só poderia ser resolvido após vários anos.

 

 

Em 1948, depois da expulsão do SWP dos seus camaradas de tendência, Van rompeu com a IV Internacional e com o marxismo. Nunca quis me falar sobre esta ruptura e nunca me disse mais do que escreveu em suas memórias, na página 211; ou seja, muito menos do que havia escrito na PartisanReview de março de 1948, com o pseudônimo Jean Vannier, sobre o balanço do século transcorrido desde a escrita do Manifesto do Partido Comunista.

 

* * *

 

Van retornou à Europa apenas em 1957, por conta da da Universidade de Harvard, Em busca de documentos do arquivo de [Leon] Sedov, vendidos, porém não fornecidos por Trotsky a Harvard e que Natália havia se comprometido a recuperar. Eu a encontrei pela primeira vez no final dos anos 60 no Select Hotel, na Praça da Sorbonne, em uma sala onde não podíamos ficar sentados, que era sua parada durante suas breves estadias dessa época. Depois nos vimos muitas vezes em Cambridge (Massachusetts), onde me guiou, em primeiro lugar, pela “parte aberta”, porém, também em Domène, em Paris, em Follonica, no México e, finalmente, em Stanford, terminando em Genoble, 26 de fevereiro passado, para a defesa da tese de Olivia Gall, onde, apesar de sua extrema fadiga, conseguiu manter sob seu feitiço cem pessoas, jovens e velhas.

 

Às vezes, quando eu não o consultava como autor-testemunhonecessário, ele se lançava [a falar], evocando os terríveis anos trinta, o dever sagrado de escrever uma história dos bolcheviques leninistas russos, a tendência política mais lúcida e mais heroica da história, a necessidade de transmitir a compreensão para as jovens gerações dos pesadelos dos anos 1936-1940, dos combatentes encurralados entre os assassinatos de Stalin e os de Hitler, o desespero, o medo dos militantes perseguidos, os assassinatos que se sucediam e os assassinos à espera na sombra ante uma opinião [pública] indiferente. Bastava uma breve informação, com umelemento político inclusive pouco substantivo, para reativar em seu cérebro de múltiplas peças a máquina da política, e lhe escutar expressar uma paixão apenas escondida: Polônia foi uma dessas ocasiões, a partir da greve de Gdansk. Devorou, explicou, interrogou, esperou, acabando finalmente por perguntar-se em voz alta, contrariamente a tudo o que tristemente pensou desde os últimos anos, o movimento operário que ressuscitava na Polônia não era a andorinha anunciando a primavera, a morte do stalinismo por ação dos trabalhadores.

 

No entanto, já não queria “falar de política”. Dizia que apenas por razões de simples moralidade aceitou dar seu testemunho durante o processo aberto em decorrência das odiosas calúnicas lançadas contra Joseph Hansen e contribuiu, assim, com a condenação dos caluniadores no tribunal de Los Angeles.

 

Da mesma maneira, nas décadas anteriores, interveio nos Estados Unidos após a prisão como agente do GPU dos irmãos Sobolevicius – Roman Weil e Adolf Sénine dentro do movimento – e de Mark Zborowski, o célebre “Etienne”, infiltrado para os serviços de Stalindestinados a Sedov, esforçando-se para interrogá-los sobre a preparação do assassinato de Trotsky e a execução de Reiss e Sedov. Seus esforços sobre esse ponto não foram coroados com êxito e ele lamentava. O mais importante de sua contribuição como não militante da história do movimento no qual havia contribuido para construir foi o enorme trabalho dedicado, durante anos, às dezenas de milhares de documentos desses “Trotsky Papers”, os arquivos de Trotsky depositados em Harvard, identificados um a um por ele, com o zelo atento que já se manifestava nos tempos quando, em Prinkipo e Coyoacán, assegurava sua conservação e sua datação. Sem ele, sem esse imenso trabalho, uma importante fração dos documentos hoje identificados, classificados, geralmente traduzidos, publicados, comentados, seria apenas uma massa de velhos papéis incompreensíveis. Sua tarefa neste plano foi felizmente mais fácil em Stanford, com os arquivos da Hoover e os papéis de Sedov.

 

 

Não esquecerei a emoção, a alegria que cantou a sua voz, quando me anunciou por telefone que, por fim, acabava de revisar as famosas cartas do Velho para Liova, com os longos manuscritos posteriores nos originais digitados, que pensava ele estavam perdidas para sempre e ressurgiram com os fundos de Nikolaievsky.

 

No princípio reservado – sempre prudente – Van me brindou, creio, com sua confiança, quando leu meu primeiro livro. Minha existência e minha capacidade de trabalho permitiriam a ele deixar um mochila que voltava a pesar. Ainda que sempre tenha rechaçado ser mencionado, foi, como disse jocosamente, “a iminência cinzenta” ou “a alma condenada” do Instituto Leon Trotsky, o inspirador exigente e ao mesmo tempo o conselheiro insubstituível das Obras e dos Cadernos Leon Trotsky. O trabalho do Instituto, minhas obras pessoais, lhe devem uma enormidade: infelizmente, ele não pôde nos impedir de dizê-lo. Mas gostaria de citar um fato curioso sobre isso. Anos mais tarde, percebi que ele não se lembrava mais de todos os episódios importantes que ele havia me contado. Rapidamente, apesar da minha surpresa inicial, me rendi à evidência e admiti que ele esqueceu exatamente o que havia me contado. Feita e verificação uma e outra vez, prudentemente disse a ele e ele me surpreendeu com sua sorridente autossatisfação: ele era, disse, muito próximo de uma máquina, já que ao envelhecer regulava deste modo o problema de sua sobrecarga, eliminando apenas aquilo que havia assegurado estaria preservado. O mais surpreendente é que estava certo. Van era uma das mais belas máquinas intelectuais me dada para conhecer de perto e admirar.

 

O Van que conheci não era mais aquele no qual os policiais de uma pequena cidade do Centro Oeste havia encarcerado por vários dias porque sua cabeça de estrangeiro não lhes caia bem. Ele já não era mais o homem que passou por mil e um empregos desde o ensino francês no Berlitz até a fabricação de estantes para organizar os livros dos camaradas e os reparos de encanamento. Já não era mais o homem que construiu sua barraca-residência secundária e conhecia cem maneiras de temperar um crustáceo conseguido sem pagar. Ele era pai de Laura, nascida de sua companheira norte americana Bunny, conhecidos em Coyoacán. Era professor universitário com uma sólida reputação. Na década de 1950, ele entrou no departamento de matemática da Columbia University em Nova York; depois, de 1965 a 1979, foi professor de filosofia e de história da lógica na BrandeisUniversity em Waltham, Massachusetts. Em 1967, ele publicou um trabalho de lógica matemática (From Frege toGodel. Um livro de referência em lógica matemática, sem tradução no Português) que lhe rendeu uma verdadeira notoriedade entre os especialistas.

 

 

Ademais, outros falavam – e talvez algum dia poderíamos reunir as homenagens em um testemunho comum em honra da inteligência em todas as suas formas – de quem foi Van o matemático e, acima de tudo, Van o lógico.

 

Foi um dos especialistas que realizou a publicação póstuma dos trabalhos do grande lógico Godel e, no ano passado, ingressou na equipe CNRS retomando seu projeto de publicação abrangente das obras do matemático francês Herbrand, morto acidentalmente muito jovem. Não creio que exista um congresso mundial de qualquer especialidade científica no qual Van não estivesse á vontade em seu lugar.

 

Desconhecido do grande público, inclusive no México, onde viveu por anos e onde a imprensa falou da morte de um “rico (!) homem de negócios de origem holandesa”, Van foi apreciado em todas as partes do mundo por uma série de pessoas competentes e amigos de confiança. Não existe cidade importante, nem continente, onde não tivesse um lugar de parada ou um convite.

 

Me aconteceu de provocar Van porque transportava de um continente a outro enormes e pesadas malas. Porém, não sabíamos que esse homem, que ia assim de um de seus filhos para outro, de uma de seus escritórios a outro, levava em seus braços metade dos seus bens. Durante os anos que rondaram seus 70 anos, morou em duas habitações estudantis em Cambridge, depois de Menlo Park, com uma pequena mesa, duas cadeiras, um despertador, um rádio, o computador – última paixão – que ele mesmo havia montado, sua máquina convertida em “impressora” e sua agenda – umGotha da inteligência – com o arquivador“especial”.

 

Seu luxo – e ele não estava orgulhoso disso – era possuir dois escritórios em duas universidades diferentes, um em Pusey, Harvard, e o outro no departamento de matemática de Stanford, com algumas dezenas de livros, pastas, suas correspondências, uma cama para a cesta. Este homem tinha toda sua fortuna em sua cabeça e em suas mãos, com a qual, por outro lado, ele fazia exatamente o que queria: este sábio foi o artesão e o artista da especialidade de sua escolha.

 

Me perdoe o leitor por ter tratado apenas indiretamente sobre “o amigo”: como seria possível fazer de outro modo, quando escrevo estas linhas alguns dias após ficar sabendo dessa perda irreparável e quando se trata de Van? O “sorriso bonito e claro” de que Andre Breton falou em 1938 se apagou para sempre. Apenas alguns anos subsistirão, em todo caso, na memória daqueles que o amaram. Van gostava de dizer, entre as centenas de milhões que somos, as diferenças individuais são apenas nuances infinitesimais. Sem dúvida, ele tinha razão. No entanto, temos que nos render à evidência: ele é insubstituível.

 

Em nome da equipe do Instituto Leon Trotsky, da qual sou o porta-voz aqui, em nome de todos aqueles que não conheço porém que, estou seguro, me dão o poder de fazê-lo, saúdo você, meu amigo Van, e te agradeço por quem você foi e pelo que continuará a ser para nós, quando a dor intolerável se atenuar: como Breton supôs, você foste o homem que de tantos outros nos consolou.

 

Notas:

  1. Declaração de Pierre Broué na noite de recordação em homenagem a Jean Van Heijenoort, realizada no Instituto Henri Poincaré de Paris em 14 de Maio de 1968. Cadernos Leon Trotsky no 26, junho de 1968. Publicado em Com Trotsky. De Prinkipi a Coyoacán. Edições IPS-CEIP.*Broué, Pierre (1926-2005): militante e historiador das lutas da classe trabalhadora e do movimento trotskista. Militantes desde os 14 anos, integrantes durante a Segunda Guerra Mundial da célula clandestina do PC, logo será expulso por ser “trotskista”. Em 1944 se liga ao trotskismo, e desde então, até sua ruptura em 1980, será militante do PCI. Em 1978, fundou o Instituto Leon Trotsky em paris. Dois anos depois, Broué participou da seção “fechada” dos arquivos da Houghton Library da Universidade de Harvard (Estados Unidos) logo após sua abertura. O material que estava lá permitiu-lhe ampliar os muitos conhecidos Escritos de Leon Trotsky e publicar as obras em 27 volumes. Ele também publicou os cadernos Leon Trotsky com cerca de 80 volumes, reunindo artigos de líderes da IV Internacional de diferentes épocas e investigadores do movimento trotskista de todo o mundo. Da sua própria produção podem ser destacados A Revolução e a Guerra da Espanha (escrito com Emile Témine), História do Partido Bolchevique, História da Internacional Comunista. 1919-1943, Os Processos de Moscou, A Revolução Alemã 1917-1923, O assassinato de Trotsky, Rakovsky ou a revolução em todos os países e Trotsky, uma biografia do revolucionário russo.

 

  1. Frase atribuída a Tolstoi [N. de T.].

 

  1. Veja sobre isso El caso Leon trotsky (https://edicionesips.com.ar/producto/el-caso-leon-trotsky/ ). Informe de lasaudiencias sobre los cargos hechos em sucontraenlosProcesos de Moscú, BS. As., CEIP “León Trotsky”, 2010.

 

 

Sobre o assassinato:

 

“Nenhum de seus quatro casamentos durou, mas todo os seus filhos o amavam. Em 1986, ligaram para Stanford, dizendo que sua quarta ex-mulher estava perdendo a cabeça. Ele viajou para a Cidade do México, se instalou em sua casa, sereno. Quando se jogou para dormir no sofá da sala, ela disparou três balas na cabeça dele e depois se suicidou com um tiro na boca” (Juan Forn, Página 12, 12/12/2014)

 

Livros e escritos

 

[imagem]

 

[Com Trotsky. De Prinkipo a Coyoacán->https://edicionesips.com.ar/producto/con-trotsky-de-prinkipo-a-coyoacan-4/] (edições IPS)

 

“Vivi com Leon Trotsky, salvo algumas interrupções, de outubro de 1932 a novembro de 1939. Era membro de sua organização política e me converti em seu secretário, tradutor e guarda-costas. O pequeno livro que apresento não é a história política desses anos. Tampouco é um retrato de corpo inteiro do homem. São recordações, minhas recordações. Tento recriar a atmosfera na qual Trotski vivia e trabalhava durante aqueles anos no exílio […] minha história, muitas vezes, será composta de detalhes, já que eu sou o único que os conhece e não quero que desapareçam comigo”.

 

Assim começam as memórias de um jovem de 20 anos, Jean Van Heijenoort, lançados em meio aos tumultos da luta política do trotskismo contra o stalinismo. Todo o caminho do exílio de Trotsky, país após país, é amplamente considerado na reconstrução de Van Heijenoort, fornecendo valiosa informação de quem fora testemunha – e colaborador – das atividades de Trotsky e das relações e encontros ue manteve com o revolucionário russo com importantes figuras: os escritore Georges Simenon e André Malraux, por exemplo; Andre Breton e o pintor muralista Diego Rivera – com quem escreveu o conhecido manifesto por uma arte revolucionária independente -, ClementOrozco, Waldo Frank, Pierre Naville, John Dewey, Simone Weil, André Gide e Frida Kahlo.

 

O presente volume se completa com uma apresentação da escritora Tununa Mercado, escrito especialmente para esta edição, e uma emocionante homenagem do historiador Pierre Broué (1926-2005) destinada a Van Heijenoort , no mesmo ano de sua morte, em 1986 na França.

 

[“A álgebra da revolução”->https://www.marxists.org/espanol/heijenoort/1940/febrero/algebra.pdf] (1940)

 

[Lev Dvidovich->http://www.laizquierdadiario.com/Lev-Davidovich-100493] (publicado em 1941)

 

Imagem

 

[Perspectivas para Europa->http://laizquierdadiario.com/Perspectivas-para-Europa] (1941)

 

[África do Norte: uma lição de democracia->http://laizquierdadiario.com/Africa-del-Norte-Una-leccion-de-democracia] (1942)

 

[Problema da revolução italiana->https://www.marxists.org/espanol/heijenoort/1944/julio/09.pdf] (1944)

 

[A situação europeia e nossas tarefas->https://www.marxists.org/espanol/heijenoort/1944/octubre/01.pdf] (1944)

 

 

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