Gramsci e o populismo: leituras e problemas

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por Juan Dal Maso

Gramsci e o populismo (Edizioni Unicopoli, Milano, 2019) é um livro coletivo editado sob os cuidados de Guido Liguori pela International Gramsci Society da Itália. Recolhe as exposições de um seminário realizado em Roma, dia 12 de outubro de 2018, com o mesmo título do livro. Corrigida pelos autores para a publicação, as distintas intervenções abordam a mesma questão sob diversas formas: desde análise fisiológica sobre o populismo e o “socialismo nacional” nos Cadernos do Cárcere, até debates sobre movimentos sociais e políticos atuais, como o Podemos e os “neoborbónicos de Nápoles”, passando pelo balanço dos “governos progressistas” latino-americanos e o feminismo dos 99 %.

Pela variedade de temas e posições, não realizaremos uma resenha de cada artigo, mas, sim, um panorama das questões principais em torno das quais podem se distinguir dois tipos de artigos: os que dão mais ênfase aos problemas teóricos e os que dedicam mais atenção aos debates e análises políticas.

Um objeto escorregadio

O termo populismo está passando por uma notável inflação – uso expansivo – na situação política internacional. Do lado do “populismo de direita”, temos fenômenos como Trump e Salvini que se apresentam como uma alternativa à crise do neoliberalismo, cujos mentores usam positivamente o termo “populismo”. A recente entrevista com Steve Bannon publicada pelo diário El País é uma boa síntese dessas expressões políticas, das quais Bannon pretende ser o organizador na Europa.

Do lado do “populismo de esquerda”, temos o Podemos (em franca crise política), a La France Insoumise, partido do Mélenchon (atuando com bastante desconcerto frente aos Coletes Amarelos), o feminismo dos 99%, entre outros. Os equivalentes latino-americanos desses movimentos estão em relativa crises ou adquirindo orientações notavelmente conservadoras, como o kirchnerismo na Argentina.  

Em linhas gerais, todas essas expressões estruturam sua retórica de um modo muito similar ao teorizado por Laclau: construção discursiva do povo a partir da distinção de um “eles” e um “nós”, que não se organiza a partir da divisão de classes, mas sim a partir de outros termos que constituem maiorias mais difusas: greves vs. casta, oligarquia vs. povo, ou 1% vs. 99%; discursos políticos que pretendem estar além da divisão esquerda/direita e líderes carismáticos que são os impulsores depositários desse discurso.   

Ainda que nas elaborações de Gramsci e na tradição marxista mais em geral há elementos para análise crítica de fenômenos desse tipo, veremos que o que era denominado como populismo é algo bastante diferente, enquanto que as temáticas de cesarismo e de bonapartismo se aproximam muito mais do que é hoje chamado de fenômenos populistas. Ambas questões são mais ou menos simples de reconstruir e discutir desde o ponto de vista filológico. As dificuldades surgem no momento de debater sobre a atualidade ou sobre a relação entre os modos de teorizar o denominado “momento populista” atual. Nesse sentido, em Gramsci e o populismo se sobrepõe as análises teóricas sobre as posições de Gramsci e suas diferenças com as teorias de Laclau e Mouffe, com a imagem de ao menos três populismos: os narodniki, os bonapartismos e cesarismos históricos, e os “populismos” atuais.   

Populismo, bonapartismo, cesarismo

Nos Cadernos do Cárcere, o termo “populismo” se utiliza para caracterizar as tendências intelectuais e dos estratos médios que se propunham “ir ao povo”, tendo como exemplo os narodniki russos. Gramsci também faz referencia ao populismo literário, ou seja, aos escritores que expressavam um movimento análogo no terreno da literatura. O tema esta ligado com a questão dos intelectuais, sua relação com o povo e por essa via com o problema da criação de uma “vontade coletiva nacional-popular” (que vamos nos referir mais adiante)

A voz “populismo” do Diccionario Gramsciano, escrita por Domenico Mezzina [1] realiza uma descrição exaustiva a respeito. Essa é a menção precisamente explícita ao “populismo” que Gramsci faz e é claramente crítica, sobre os jovens e intelectuais que querem ser chefes dos operários, contudo “voltam ao berço” nas grandes crises históricas. Ou seja, o “populismo” como uma “tendência pequeno-burguesa” que exalta a imagem do povo em razão de sua relação de exterioridade com ele, como se conhecia no marxismo russo e internacional nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século. XX.

As reflexões de Gramsci que podem ser utilizadas para compreender os movimentos de tipo nacionalista burguês com base de massas apoiado no Estado, como os conhecemos hoje, englobados sob o rótulo de “populismo”, são aquelas referidas aos bonapartismos e cesarismos, dos quais Gramsci tentava aproximar-se a partir da análise do que significavam em termos de relações de forças, crise dos partidos tradicionais, crise orgânica do capitalismo e crise de autoridade do Estado. Essas elaborações podem servir para orientar, por sua vez, a análise dos “populismos” atuais, com as devidas contextualizações históricas e políticas.

Os artigos de Cingari, Mordenti, Frosini, Meta, Voza, Prospero e Anselmi recorrem estes e outros problemas e através deles se pode ver uma análise detalhada sobre as posições de Gramsci e elementos críticos para pensar as teorias de Laclau e Mouffe. Menos abordada aparece a questão do governo da Liga Cinco Estrelas, presente como referência do debate e mencionada em alguns artigos. A única análise detalhada de um movimento populista reacionário é realizada por Lea Durante sobre a apropriação bizarra de Gramsci colocada em prática pelos neoborbónicos.

Nacional-popular

A categoria de “vontade coletiva nacional popular” é uma das chaves através das quais distintas leituras levantaram o interesse em Gramsci, pelo marco político nacional, tanto como sua produtividade para analisar os nacionalismos burgueses apoiados na classe operária a partir de uma ótica não sectária, como propunha Pasado e Presente a respeito do peronismo na Argentina. Utilizando o termo “nacional-popular” para caracterizar esses movimentos, completa o círculo pelo qual Gramsci seria o teórico de um “socialismo nacional” que pretende desenvolver uma política hegemônica a partir de dentro dos movimentos “nacional-populares” históricos e recentes.

A categoria de vontade coletiva nacional popular é consubstancial com a de hegemonia, por vários motivos. Delimita o marco em que uma hegemonia se exercita em primeira instância: o nacional. Destaca a importância de desenvolver uma força social e política que sem abandonar a centralidade de uma classe fundamental (para Gramsci, a classe trabalhadora) logra articular os interesses e demandas de outros setores oprimidos ou subalternos e a partir dessa ótica resgata a noção de “povo” por meio de um ponto de vista marxista. Estabelece que os termos da relação entre a teoria marxista que se atribui aos intelectuais e o sentido comum que se atribui ao povo devem partir de considerar que entre eles há uma diferença de grau e não de qualidade e, nesse sentido, propõe um nexo estreito entre intelectuais e povo.

Esses elementos podem ser tomados tanto desde uma postura marxista centrada na luta de classes, como as leituras frente populistas que introduzem na temática do nacional-popular a estratégia de colaboração de classes antagônicas. Enquanto Gramsci pensava como uma classe deve “se nacionalizar” para dirigir outros grupos sociais e mediante sua hegemonia revolucionária criar um “novo cosmopolitismo”, muitos de seus leitores pensaram essa “nacionalização” em termos da reivindicação de uma “frente nacional” com a Democracia Cristã na Europa ou com a “burguesia nacional” na América Latina. Nessa ótica, situa-se o artigo de Martín Cortés, que continua sua tentativa de fazer mais gramscianos os recentes “governos progressistas” latino-americanos.   

A temática do nacional-popular é importante pelas razões já assinaladas, contudo, ela merece ser colocada em discussão a partir da realidade atual. A pluralidade da classe trabalhadora dos grandes centros urbanos do mundo – que é um produto das migrações internacionais – torna mais difícil pensar o “nacional-popular” com acento marcado no primeiro termo, como costuma ser pensado geralmente.

Se a classe trabalhadora constitui a maioria do povo e sua composição é muito mais heterogênea do ponto de vista da origem nacional, então o povo não pode homogeneizar-se em uma só identidade nacional. Nesse marco, o termo “nacional-popular” pareceria retomar o sentido que tinha nos primeiros anos da Rússia soviética [2]: unidade e identidade nacional, exercício da própria língua e articulação plurinacional com hegemonia da classe trabalhadora. Não se trataria, então, de abandonar a categoria de “vontade coletiva nacional-popular” para ler Gramsci, se não de fazer um exercício crítico com o modo habitual de utilizá-la, que está codificada sobre a base de uma suposta homogeneidade nacional que hoje não existe na maioria dos casos. Contudo, o “sentido original” do termo não seria somente “soviético”, senão, também é o que assinalava Gramsci para a Itália, questionando a criação da língua italiana “por decreto” a partir da elevação do toscano como língua nacional e destacando a importância de articular o sentimento nacional com a construção de um “novo cosmopolitismo” [3]   

Colocaremos essa questão do ponto de vista da realidade da classe trabalhadora hoje. Contudo, isso se reforça ainda mais se considerarmos o reverdecer dos movimentos por identidades nacionais não reconhecidas como tais, pelo Estado centralizado (como é o caso dos catalães, bascos, galegos e outros na Espanha). Na América Latina, a questão da plurinacionalidade abarca as migrações tanto como os povos originários, sendo um tema já instalado há alguns anos, que passa pelo nó estratégico de porquê a classe integra essa “vontade coletiva” e que posição se estabelece frente o Estado burguês, como suposto agente da emancipação ou como organização da classe dominante.  

Marketing eleitoral o estratégia marxista

Retomando o que dizíamos a princípio, a diferença entre o enfoque de Gramsci e de Laclau se torna evidente quando comparamos uma comunicação política organizada através de parâmetros “populistas” e uma estratégia marxista, para a qual a comunicação política é um elemento fundamental, subordinado, contudo, a uma visão mais ampla, já que requer a mobilização de forças sociais, políticas e militares. Um exemplo do primeiro é o artigo do Francesco Campolongo, que analisa o momento de maior crescimento do Podemos, a partir da teoria de Laclau, mas não toma em conta a crise em que atravessa já faz um tempo essa parte da formação e tampouco contém uma análise crítica das limitações do “populismo” para intervir frente ao cenário aberto com a repressão ao movimento independentista catalão, ou seja, quando os conflitos tomam um caráter mais agudo. Em outro sentido se orienta o trabalho de Eleonora Forenza, debatendo sobre o feminismo dos 99%. Forenza discute com a posição de Nancy Fraser sobre o “populismo de esquerda” como estratégia “transicional” de construção de um feminismo dos 99 %. Vejamos a posição de Fraser:

“[…] para mim, o populismo não é a última palavra, não é um ideal a se chegar, senão, uma fase política transicional, quase como aquilo que os trotskistas chamavam de ‘programa de transição’. O que eu quero em última instância é a emergência de um socialismo democrático. Dito isso, a linguagem que surgiu com o movimento Occupy, e que agora tento adaptar ao feminismo, é o dos 99% versus o 1%. Isso é claramente uma retórica populista, é uma linguagem distinta do que usamos quando falamos de capitalismo global, de classe trabalhadora, ainda  que esses termos sejam possivelmente mais certeiros na hora de descrever como funciona nossa sociedade. Creio que há uma possibilidade de ganhar e convencer mais gente agora usando uma retórica populista, mas, claro, tem que ser um populismo de esquerda”.

Partindo de coincidir com a crítica que faz Fraser ao “progressismo neoliberal” e ao “populismo reacionário”, Forenza questiona se é possível usar o “populismo” como uma espécie de fase de transição até um movimento anticapitalista. Coloca a necessidade de desenvolver a partir do movimento feminista uma prática que dê conta das dimensões de gênero, raça e classe, desenvolvendo a “autoconsciência” de seus protagonistas e aborde o problema da hegemonia em termos materiais de ativação dos subalternos, no lugar de uma dicotomização discursiva em que se tem um papel passivo. Assinalamos que o conceito usado por Forenza de “revolução molecular” pareceria sugerir uma mudança mediante evolução gradual, ainda que não termina de ser categórica nesse sentido.

Algumas conclusões

Gramsci e o populismo colocada com claridade as diferenças entre o marco teórico de Laclau (pós-estruturalista) e o de Gramsci (marxista) para pensar a política. São teorias com grandes diferenças em seus alcances explicativos.

Se queremos debater sobre como o Podemos estruturou um discurso e uma campanha política para chegar a 20% dos votos já há vários anos, a teoria da articulação discursiva laclausiana pode funcionar instrumentalmente, contudo, por exemplo, para entender processos como o ascenso de Trump ou o atual governo italiano, o qual vai além da retórica de campanha e implica na discussão da crise da EU, a crise do regime político na Itália, a continuidade da autodissolução do “togliattismo”, as relações de forças entre as classes, entre outros problemas, Marx, Gramsci ou Trótski nos proverão de melhores ferramentas.

Esta afirmação não pretende ser uma constatação dogmática da superioridade do marxismo sobre as teorias de Laclau e Mouffe, que, em todo caso, mereceria uma discussão mais detalhada, mas, sim, destacar sobretudo o distinto alcance que cada posição pretende designar ao político.

No caso do “populismo” laclausiano, a generalização teórica de algumas características da retórica de certos fenômenos estabelece os limites dentro dos quais tem que se operar a política, sempre no interior de um imaginário que pretende ampliar os alcances da democracia burguesa sem romper com o capitalismo. Desde aí que sua análise da “prática articulatória” a partir da qual se constitui o campo político “populista” não leva em conta problemas-chave para a leitura marxista, como as relações de força ou a estratégia, que não desconhecem a importância do discurso político, contudo, situam-no em relação a forças mais amplas e joga um papel central na luta de classes.

[1] Liguori Guido e Voza Pasquale (orgs.) Dicionário Gramsciano, São Paulo, Boitempo, 2017,pp. 635/637.


[2] Schirru, Giancarlo, “Nazionalpopolare” en Pensare la politica. Scritti per Giuseppe Vacca a cura di Francesco Giasi, Roberto Gualtieri e Silvio Pons, Roma, Carocci editore, 2009, pp. 239–253. Disponible en www.academia.edu.


[3] Me permito remeter ao epílogo de Hegemonía y lucha de clases, Bs. As., Ed. IPS, 2018, onde se aborda esta problemática.

*Tradução de Fernanda Montagner, a partir do original constante em: https://www.izquierdadiario.es/Gramsci-y-el-populismo-lecturas-y-problemas.

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