Luta de classes e o golpe de 64

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Por Thiago Flamé

A marcha do autoritarismo mais tacanho segue firme seus passos a quatro meses da posse de Bolsonaro. Sua fisionomia desconjuntada, os erros primários de comunicação e articulação, as imbecilidades galopantes ditas e cometidas por ministros e altos funcionários, as disputas abertas no interior do governo, os escândalos de corrupção, as denúncias de envolvimento da família presidencial com as milícias, vice que não quer ser decorativo, tudo se articula no momento bizarro que estamos vivendo.

O que já era previsto não deixa de causar espanto. A 55 anos do golpe militar, Bolsonaro expediu comunicado orientando os quartéis a comemorarem a data. O mesmo Bolsonaro, que já disse que o problema do regime militar foi que “matou pouco”, ou que tem como herói o sinistro coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e assassino, agora reafirma cinicamente que não houve ditadura ou golpe militar no Brasil.

O discurso oficial da Nova República, originada de um pacto entre as elites que preservou os militares e deu origem a uma democracia tutelada, permaneceu sendo sempre aquele dos “dois demônios”, ou seja, de que o golpe foi fruto de uma radicalização de parte a parte, que os dois lados cometeram erros. A própria Comissão da Verdade abrigava juristas que queriam investigar “os dois lados”. É a justificativa moral de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” que inocentou os agentes de Estado e empresários que cometeram inúmeros crimes contra a humanidade. Nesse campo também Bolsonaro busca uma ruptura com as tradições da já envelhecida Nova República. Bolsonaro e seu governo povoado de generais querem legitimar uma visão ainda mais reacionária, a saber: de que o golpe teria sido necessário para salvar o Brasil da anarquia, do comunismo e da subversão. Uma legitimação do discurso da época que certamente não tem somente um aspecto histórico, mas prepara as condições para novos golpes no futuro.

A esquerda e os setores progressistas deveriam levantar todas as vozes para denunciar os crimes da ditadura contra a classe trabalhadora e o povo. No entanto, ao longo das últimas décadas, esse combate foi sendo postergado, talvez por dois motivos principais.  O primeiro e mais evidente, não querer enfrentar os militares para preservar a estabilidade deste regime democrático, tal como ele é. A ascensão de Bolsonaro é uma mostra de como essa forma de defender a democracia, mesmo a mais restrita como a brasileira, está fadada ao fracasso. O outro, menos visível, mas não menos importante, é a incapacidade para fazer um balanço das estratégias que estiveram em disputa no movimento operário e camponês, bem como das causas da derrota.  Nessas poucas linhas, vamos tentar desenvolver alguns elementos para desmascarar a visão que os golpistas têm da sua própria obra e expressar lições, mais atuais do que nunca, do que se pode tirar da derrota de 1964.

 

Um golpe promovido pelos EUA

Ainda que os militares encham a boca para falar da defesa do país, o complô civil-militar que levou ao golpe militar em 1964 já estava sendo estimulado e propagado anos antes, desde a embaixada norte-americana, pela CIA e pelo Departamento de Estado. Depois da revolução cubana de 1959, que encheu de esperança os povos da América Latina, se transformou na prioridade da política dos EUA impedir o surgimento de novas Cubas no hemisfério ocidental. A “Aliança para o Progresso” de John F. Kennedy, anunciada em 1961, prometia um plano de investimentos bilionários nos países da América Latina. Mas essa era apenas a face mais visível da política de contenção lançada pelos EUA sob o pretexto da defesa da democracia contra o perigo comunista. Ao mesmo tempo, atuavam para enquadrar todas as forças armadas na garantia da ordem nos seus próprios países. Entenda-se como “ordem”, governos que se disciplinem aos objetivos estratégicos dos EUA e não ofereçam empecilhos para a atuação das suas multinacionais.  

A Escola das Américas, instituição do Departamento de Estado dos EUA fundada em 1946 no Panamá, com o objetivo de formar oficiais das forças armadas dos países da América Latina, a partir de 1961 passou a ter como prioridade a contrainsurgência contra o perigo comunista. Muitos dos ditadores da região nas décadas de 60 e 70 do século passado passaram por essa escola sinistra. Dois institutos foram criados, com financiamento da CIA e apoio dos EUA, que se transformaram em promotores e articuladores do golpe, o IBAD e o IPES, nos quais se engajaram muitos empresários brasileiros. Umas das ações do IBAD, por exemplo, que levou a um grande escândalo em 1962, foi o financiamento de candidatos oposicionistas (mais tarde se comprovaria o envolvimento direto da CIA e da embaixada dos EUA nesse processo).

No momento decisivo, os EUA desencadearam a operação Brother Sam, uma frota naval equipada com navios de guerra, petroleiros e um porta-aviões para oferecer apoio militar ao golpe. Ao fim, não houve efetiva resistência e as forças americanas não intervieram, mas estavam a postos para fazê-lo, se necessário.

São alguns elementos para não esquecermos do básico: os militares e a burguesa brasileira conspiraram junto do governo dos EUA contra seu próprio povo. Para eles, nenhum interesse nacional está acima dos seus próprios interesses de classe, apesar de buscarem apresentar o contrário: seus próprios interesses como os de todo o povo.

 

A impotência do nacionalismo burguês de João Goulart

Analisando as condições específicas da dominação estatal da burguesia nos países atrasados na década de 1930, Trotski afirma que nestes “o capital estrangeiro cumpre um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isso cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre a relativamente débil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isso dá ao governo um caráter bonapartista sui generis. Se eleva, por assim dizer, por cima das classes. Na realidade pode governar ou bem se convertendo em instrumento do capital estrangeiro e submetendo o proletariado com as cadeias de uma ditadura policial, ou bem manobrando com o proletariado, chegando inclusive a lhe fazer concessões, ganhando deste modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relação aos capitalistas estrangeiros”.

Ao longo dos anos cinquenta, as mudanças na economia, a penetração mais acelerada dos capitais imperialistas e o crescimento das multinacionais, a rápida industrialização e a crescente urbanização vão modificando a estrutura de classes do país. Já durante o governo JK, esses setores alcançaram grande predominância e seus interesses entravam em crescente contradição com o arranjo populista varguista, cada vez mais impotente para conter o ascenso de massas, especialmente no campo. O setor agrário-exportador, cada vez mais deslocado pela industrialização e uma burguesia urbana com setores crescentemente associados às multinacionais vão partir, já no final dos anos de 1950, para uma disputa aberta pela hegemonia contra os demais setores da burguesia. A pressão crescente do ascenso das massas urbanas e rurais vai provocar diferentes respostas na classe dominante, ao passo em que suas diferenças internas vão se agravando, na medida em que a industrialização liderada pelo capital estrangeiro não resolve, ao contrário agrava, os problemas estruturais do país.

Entre as duas tendências apontadas por Trotski vão se perfilando os setores da burguesia brasileira nos anos convulsivos que antecederam o golpe. Com a UDN e seus setores militares, os setores mais pró-imperialistas pretendem avançar numa subordinação completa à política externa dos EUA e num projeto de contrarreformas a ser implementado à força contra o movimento de massas. A outra tendência, expressa nos líderes nacionalistas, Jango, Arraes e o mais radical deles, Brizola, não pretendiam nem romper com o imperialismo, nem com os latifundiários, muito menos com os próprios industriais. Não representavam o perigo de uma “ditadura comunista” como afirmou esses dias Pujol, o atual comandante do exército, fazendo eco de palavras que poderiam ter saído da boca de Lincoln Gordon, o embaixador dos EUA no Brasil e um dos articuladores do golpe. Buscavam uma relativa autonomia dos EUA e das potências imperialistas, apoiando-se, às vezes, inclusive no bloco da URSS, ou buscando uma posição intermediária como tentou Goulart durante a crise dos mísseis em Cuba, com o objetivo de, no plano interno, desenvolver uma agenda moderada de reformas que ampliasse o mercado interno e desse base para um processo de industrialização menos subordinado aos EUA.  

No momento decisivo o golpe militar, contou com o apoio de praticamente a totalidade da burguesia, dos setores financeiros, industriais, comerciais e agrários; inclusive a maioria dos jornais, como o Estado de São Paulo, O Globo ou a Folha de S. Paulo, apoiou abertamente o golpe militar. Toda a classe dominante, mesmo aqueles setores que eram considerados pelo PCB e outras correntes de esquerda como progressistas ou aliados da classe trabalhadora e do campesinato na luta contra o atraso, os latifundiários e o capital imperialista, se alinharam com o golpe promovido pelos EUA. Jango se viu isolado nas classes dominantes e, contando com o apoio popular de mais de 70%[ii] segundo pesquisas da época, diante da possibilidade de se apoiar na mobilização operária, camponesa dos marinheiros e dos sargentos, optou por capitular sem luta, exilando-se no Uruguai e vindo a falecer na Argentina em 1976. Brizola, com algum apoio do III Exército, se propunha a resistir. No calor dos acontecimentos, planos foram traçados prevendo a possibilidade de uma marcha ao Rio de Janeiro para prender Carlos Lacerda e barrar o golpe. Mas nunca passaram de ideias, se é que foram cogitadas seriamente. Segundo os relatos, esperavam todos as ordens de João Goulart que nunca chegaram… O que nem Brizola jamais cogitou, por razões de classe profundas, foi se apoiar na resistência operária e popular para enfrentar o golpe de 64.

 

O ascenso de massas que foi derrotado pelo golpe

Quando Jânio Quadros renunciou em setembro de 1961, na tentativa de implementar um autogolpe – pressionado pela deterioração da situação econômica, pela perda de popularidade e o crescimento do movimento operário e camponês –, queria retornar aclamado pelo Congresso e pelos setores já com bastante força no Exército que não queriam a posse de Jango. Mas não encontrou nenhum apoio para sua aventura e se abriu um vazio de poder que durou duas semanas. Durante esses dias febris, nem a ofensiva golpista que pretendia impedir a posse de João Goulart conseguiu se instalar, nem os defensores de uma conciliação nacional que defendiam a posse de Jango com poderes restringidos conseguiu se assentar. O exército se dividiu e a situação se tornou imprevisível. Nessa situação convulsiva, a mobilização de massas que irrompeu foi o fator decisivo que pendeu a balança para a posse de Jango, com poderes restringidos dentro de um arremedo de parlamentarismo.

No Rio Grande do Sul, onde o governador Brizola se dispôs a enfrentar a tentativa de golpe, o movimento de massas responde o chamado massivamente, ameaçando superar o controle do próprio governador. Uma greve geral é convocada e multidões acompanham os acontecimentos reunidas nas ruas, com uma grande concentração na praça Matriz, em frente ao Palácio Piratini, sede do governo estadual. Brizola encabeça essa resistência, com disposição inclusive de resistir militarmente, mas buscando mantê-la sob controle estatal e sob a liderança do III Exército e da Polícia Militar. Com a sua campanha pela legalidade, Brizola se converte na referência nacional de resistência ao golpe. De forma espontânea, sem coordenação entre si, apoiando-se no chamado do PCB e do PTB para defender a posse de Jango, várias categorias de trabalhadores vão aderindo à greve geral política contra o golpe em todo o país.

Foi a ameaça de uma intervenção independente do movimento de massas que afastou do horizonte a possibilidade de um enfrentamento entre o III Exército do Sul do país, que apoiava a posse de Jango, contra o I e II Exércitos, que eram parte do golpe, e foi isso que forçou um pacto das elites para controlar o movimento de massas. Tanto Brizola, que defendia a imposição de uma assembleia constituinte e dizia que estava pronto a marchar com um exército sobre Brasília para impô-la, quanto o PCB ajudaram a canalizar toda a energia demonstrada nesse processo, que rumava a uma greve geral, no apoio ao governo de João Goulart.

Descrevemos esses acontecimentos não porque queiramos fazer neste  reduzido espaço uma descrição detalhada dos acontecimentos que antecederam o golpe; mas para dar uma ideia da magnitude do movimento de massas que se levantava e que vai mostrar a sua força nos anos que se seguem. No campo, as Ligas Camponesas se espalharam por dezoito estados e organizavam centenas de milhares de camponeses, que inspirados pelo exemplo da revolução cubana se dispunham a lutar pela reforma agrária “na lei ou na marra”. O PCB buscava disputar com as Ligas a influência sobre o movimento camponês com uma política conciliadora (analisavam que existiriam setores progressistas entre os latifundiários) e com o apoio do governo criavam sindicatos rurais que também se multiplicavam. A agitação política crescia na base das forças armadas e em especial na marinha. Aí foi criada uma associação de marinheiros e fuzileiros navais, que o almirantado considerava ilegal, porque lhe disputava a autoridade sobre as tropas.  Nos centros urbanos, o movimento operário, ainda que bastante contido pela política do CGT, sob a liderança do PCB e do PTB, protagonizava um enorme ascenso grevístico.

Os líderes políticos que os militares acusavam na época – e ainda hoje – de quererem “instaurar o comunismo”, na verdade, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para impedir que as mobilizações de massas adquirissem uma dinâmica revolucionária consciente. Desse ponto de vista, o golpe não responde a uma ameaça direta e iminente à ordem burguesa, seu objetivo principal foi derrotar o movimento de massas antes que ele avançasse a um enfrentamento aberto contra a ordem burguesa.  

Entre a renúncia de Jânio Quadros em 1961 e o golpe militar em 1964, estiveram dadas as condições para derrotar a ofensiva golpista, mas, para tanto, teria sido necessário organizar de forma revolucionária o movimento de massas, não em apoio ao governo Jango, mas em defesa de suas reivindicações, com suas próprias organizações.

 

O golpe, ontem e hoje

Durante duas décadas, a burguesia governou “convertendo-se em instrumento do capital estrangeiro e submetendo o proletariado com as cadeias de uma ditadura policial”. Já derrotado o ascenso de massas que poderia ter se desenvolvido num sentido revolucionário, o governo prosseguiu na aplicação do seu programa, um brutal ajuste econômico contra os salários, a liquidação de qualquer resistência organizada e, em particular, das organizações operárias e camponesas, e a consolidação do seu domínio, colocando na ilegalidade não só os políticos do PTB e do PSD, mas inclusive apoiadores de primeira hora que depois passaram a opositores, como Carlos Lacerda. Já na etapa entre 64-68, o golpe foi especialmente sangrento no campo e, a partir do final de 1968, com o AI-5, prosseguiu com a liquidação de todas as organizações de esquerda ou que expressassem desacordo com a sua política.

O atual governo comemora o golpe em função dos seus objetivos reacionários: legitimar a possibilidade de golpes militares em defesa da “estabilidade” e chancelar a atual tutela militar, objetivos compartilhados com a maioria da cúpula das Forças Armadas, além de fortalecer a base mais bolsonarista e intervencionista no exército.

Nós também revisitamos o golpe, mas com objetivos opostos.

Não esquecer as brutalidades cometidas pela ditadura e pela classe burguesa no seu conjunto, seguir a luta por memória, verdade e justiça, e também tomar as lições estratégicas desse processo.

Salta aos olhos, com todas as diferenças de momento histórico, como a resposta de Jango às tentativas golpistas entre 1961 e 1964 se assemelha a como o PT tem respondido às ofensivas golpistas do judiciário apoiado pelas Forças Armadas. Não se trata no momento imediato da liquidação das organizações de massas com em 64, mas da aplicação de um ajuste brutal e de uma maior subordinação aos EUA. Desde o início da Lava Jato e da ofensiva golpista, a cada momento o PT fez de tudo para contentar a reação através de concessões sistemáticas, o que não fez senão fortalecê-la. A unidade da oposição no parlamento, a unidade que muitos querem construir de PSDB a PT, vai ser tão ineficiente para conter a escalada autoritária hoje, como foi a frente entre JK e Carlos Lacerda depois do golpe de 64.

O arco de alianças da frente que temos que construir são as organizações operárias e do movimento popular, as organizações de esquerda, confiando apenas na sua própria força e na sua própria organização. E batalhar para que não falte, nos combates decisivos que estão por vir, o que faltou em 1964, um partido revolucionário que levasse adiante essa política

 

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