A Comuna de Paris: seu legado político 148 anos depois

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por Gonzalo Adrián Rojas

Depois da derrota da classe trabalhadora nas Revoluções de 1848-1850, vivenciamos um período de crise e reação que se expressa numa recomposição política burguesa particular com duas décadas de governo de Luís Bonaparte, o sobrinho do  Napoleão, que culminara na guerra franco-prussiana e na Comuna de Paris de 1871, onde os trabalhadores, pela primeira vez na história da humanidade, atingiram o poder político.

Será Karl Marx, na “Mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores” (a Primeira Internacional), publicada em geral sob o título A Guerra Civil na França, a realizar uma análise da experiência da Comuna de Paris, no marco da mencionada guerra franco-prussiana, e a primeira experiência de tomada do poder político pelo proletariado por setenta e um dias em Paris, França.

Essa análise inclui questões teóricas e conceituais relevantes em termos estratégicos, opondo formas políticas de Estado que remetem a regimes sociais diferentes, sendo o Império a forma mais prostituída do poder estatal burguês e a Comuna, o regime de poder operário, da mesma forma que um conjunto de medidas políticas tomadas pela Comuna, as quais poderíamos denominar democrático-radicais, transicionais, com vigência e atualidade até nossos dias.

A burguesia francesa se encontra diante de um paradoxo. Para ter alguma chance na guerra contra a Prússia, precisa armar o proletariado, mas armar o proletariado, se este triunfa, também é o triunfo da revolução. Em tal situação, a burguesia francesa decide capitular em 28 de janeiro de 1871, e esse é o início da guerra civil.

Paris estava ainda armada através da Guarda Civil, não era um exército profissional como os dos Estados capitalistas na atualidade e enquanto a burguesia tem por objetivo desarmar Paris, a Guarda Nacional decide se reorganizar e escolher por todos os seus efetivos um comitê central, com a exceção de uns poucos bonapartistas. Desta experiência pareceria que se toma nos partidos leninistas essa ideia de comitê central, no caso dos bolcheviques leninistas, trotskistas, com um funcionamento centralista democrático, a diferença dos partidos comunistas estalinizados com um funcionamento centralista burocrático. O fracasso da tentativa do governador de Paris, Vinoy, que é rejeitado pela Guarda nacional e o povo abre passo à revolução operária que se apodera de Paris em 18 de março de 1871.

O Comitê Central comete alguns de seus erros decisivos quando decide não marchar a Versailles de forma imediata, impedindo, quando ainda era possível, a reorganização das classes dominantes francesas.

Realizada esta breve contextualização, vamos enfocar em um dos aspectos da Comuna: a relação do Estado e o regime social e a atualidade de suas propostas políticas, para finalizar com um balanço político realizado já por Marx, Engels e Lênin.

Do ponto de vista da conceitualização de Estado em Marx, a Comuna é justamente a antítese do Império. O império nasce do golpe de Estado para depois se legitimar através do voto dos camponeses, o que Marx chamara de bonapartismo, na tentativa de buscar unir a todas as classes por meio da glória nacional. Uma única forma de governo possível quando a burguesia não conseguia governar e a classe operária ainda tampouco podia. Marx dá conta dessa nova forma estatal que a sociedade burguesa nascente vai começando a criar. O bonapartismo aparecer como por cima das classes, mas expressa os interesses gerais da burguesia. O Estado aparece como uma máquina de guerra do capital contra o trabalho.

A Comuna, pelo contrário, essa efígie de que fala Marx que tanto atormenta os burgueses, é um governo nacional e internacional que tem como objetivo a república social não só para acabar com a monarquia, senão com toda dominação de classe em outro regime social. A Comuna seria a forma positiva da República, um governo operário pela emancipação da classe trabalhadora.

Marx desenvolveu a teoria de que todo Estado é produto da divisão em classes da sociedade; se há classes, há Estado, uma forma de organização política. A partir da Comuna de Paris, identificará a ditadura do proletariado como a forma política da Comuna. Importante lição da Comuna apresentada por Marx é que não é possível simplesmente apossar-se do Estado burguês e colocá-lo para funcionar em benefício da classe trabalhadora. Marx defende a destruição do Estado burguês e sua substituição por uma nova forma de organização política, posto que depois de uma revolução não desaparecem automaticamente as classes.

Marx havia teorizado o conceito de ditadura do proletariado e encontra na Comuna de Paris seu exemplo histórico.

Para nós, é central diferenciar o aparelho de Estado de suas formas políticas. O aparelho de Estado depende do regime social; desse ponto de vista, todo Estado é uma ditadura de classe, porque a existência de Estado significa que existem as classes e que uma tem o domínio do aparelho do Estado para oprimir as outras.

A ditadura do proletariado é uma ditadura nesta perspectiva, mas dos mais sobre os menos pela primeira vez na história e pode ter uma variedade de formas políticas, não necessariamente a ditadura do proletariado como organização política dos trabalhadores no processo de transição deve ter a forma política de partido único em termos estalinistas.

Nesse sentido, a ditadura do proletariado como organização política dos trabalhadores no processo de transição é necessária mas concordamos com o sentido apresentado por  Vladímir Ilictch Lênin, no final do capítulo II do livro O Estado e a revolução escrito meses antes da revolução russa bolchevique de outubro de 1917:

A transição do capitalismo para o comunismo, está claro, não pode deixar de dar enorme profusão e variedade de formas políticas, mas sua essência será inevitavelmente uma só: a ditadura do proletariado.

 

Esse período de transição, que na Crítica ao Programa de Gotha, escrito entre abril e maio de 1875 e onde polemiza com as ideias de Ferdinand Lasalle, é denominado como primeira fase do comunismo ou socialismo. Essa nova forma de organização estatal – a “ditadura do proletariado”, que significa a máxima democracia para a imensa maioria da população – tem como objetivo ir definhando na medida em que desaparecerem as classes. Pela primeira vez na história da humanidade, a maioria tem domínio sobre a minoria.

O central é entender que a Comuna não pode ser uma forma de governo mais no marco do Estado capitalista senão uma possível forma de governo na transição do socialismo ao comunismo, uma sociedade sem classes e sem Estado.

Entre as propostas políticas da Comuna, encontramos as seguintes, as quais consideramos democrático-radicais e que têm atualidade.

Em primeiro lugar, o primeiro decreto da Comuna foi a dissolução do exército permanente, sua substituição pelo “povo em armas”, a construção de milícias operárias e populares. Se o exército é o braço armado do Estado burguês para repressão da burguesia contra os trabalhadores, se se pretende destruir o Estado burguês, é preciso acabar com sua força material, e sua dissolução é possível com essa substituição.

Em segundo lugar, o chamado a eleições de conselhos operários e populares por sufrágio universal, mas responsáveis ante seus eleitores e revogáveis, caso não cumpram suas tarefas em função do deliberado coletivamente.

Em terceiro lugar, diferencia-se Comuna de Parlamento, questionando a separação de poderes liberal e burguês. A Comuna simultaneamente é o órgão legislativo e executivo, um órgão de trabalho.

Em quarto lugar, a polícia também depende da Comuna, é um instrumento da comuna, por isso também são responsáveis frente a esta e revogáveis assim como o conjunto dos cargos administrativos.

Em quinto lugar, todos os salários devem ser os mesmos do o de um operário qualificado. Na atualidade, adaptamos essa reivindicação sob a fórmula que todo político ou todo juiz ganhe o mesmo que uma professora, como, por exemplo, realizam os parlamentários revolucionários da Argentina, mas tem sua origem na Comuna de Paris. Sobre Parlamentarismo Revolucionário na Argentina, recomendamos a leitura desta matéria que escrevemos com Shimenny Wanderley https://www.esquerdadiario.com.br/Crise-de-representacao-O-Parlamentarismo-Revolucionario-na-Argentina-como-tactica-superadora-do

Em sexto lugar, aparece a supressão dos gastos extraordinários como parte da luta por acabar com os privilégios da casta política.

Em sétimo lugar, a Comuna tinha como objetivo se apresentar como uma forma de governo nacional, mas também estadual mesmo que tenha ficado praticamente limitada a Paris.

Em oitavo lugar, a separação efetiva da Igreja e do Estado, no entendimento de que, uma vez destruída a força material do Estado, o exército, era preciso destruir a força espiritual deste e expropriar a Igreja como instituição proprietária, sem indenização.

No nono lugar, a institucionalização do ensino aberto e gratuito sem intromissão da Igreja nem do Estado, mas se acaba com a educação familiar, como era até então. Depois da derrota da Comuna de Paris, aparece a educação pública.

Em décimo lugar, todos os juízes e funcionários judiciais são responsáveis e revogáveis da mesma forma que recebem o mesmo salário que um operário qualificado.

Com a Comuna, pretendia-se acabar com os privilégios reduzindo a jornada de trabalho e defendendo a autogestão operária nas fábricas, entre outras medidas também.

Toda nova forma política cria certa confusão, mas, mesmo assim, a Comuna resultou ser um governo da classe operária em benefício da classe operária, fruto da luta de classes da classe produtora contra a classe apropriadora que expressou a emancipação econômica dos trabalhadores e a dominação política destes, mostrando que sua dominação política é incompatível com sua escravidão social.

A burguesia tenta desde sua fugida, no dia 18 de março, recuperar Paris desde Versailles e reorganiza seu exército com prisioneiros de guerra liberados por Bismark e com apoio deste.

Depois de oito dias de combates, temos um saldo de trinta mil parisienses mortos, quarenta e cinco mil detidos, vários assassinados posteriormente e uns cem mil deportados.

Na Comuna, a maioria era blanquista em referência ao revolucionário francês Auguste Blanqui e a minoria era da Associação Internacional dos Trabalhadores, sendo no interior deste os anarquistas, maioria sobre os partidários da Marx. Nesse momento, marxistas e anarquistas ainda faziam parte da Primeira Internacional juntos.

Para Engels, a maioria dos erros políticos foram responsabilidade dos blanquistas e dos erros econômicos dos anarquistas e paradoxalmente realizando o contrário ao proposto pelas suas próprias doutrinas.

Blanqui defendia uma férrea centralização política, em que um pequeno grupo de conspiradores poderia realizar uma revolução em nome da classe operária, mas, na prática, mesmo defendendo a centralização, o governo ficou limitado a Paris, não existiu uma centralização política da França. Pelo contrário, os anarquistas, proudhoniamos, em relação a Pierre-Joseph Proudhon, em termos econômicos, proporiam federalizar a atividade econômica, mas também no lugar de federalizar focaram em Paris.

A conclusão de Engels é que justamente a Comuna mostrou que é impossível ocupar a máquina do Estado burguês e colocar a serviço da classe trabalhadora, assim como faria Lênin mais tarde, tira como conclusão que é necessária a construção do partido político revolucionário.

A necessidade da luta teórica e política pela independência da classe trabalhadora, dos patrões, dos governos e do Estado, organizando-se em partido revolucionário para sua intervenção na luta de classes, na perspectiva da luta pelo poder político do Estado para destruir o Estado burguês, instaurar uma ditadura do proletariado como fase de transição necessária à sociedade sem classes, nem Estado, além de um conjunto de medidas democrático-radicais, transicionais, nos deixa como legado a Comuna de Paris.

Depois de décadas de usurpação stalinista do conceito, é preciso, hoje, 148 anos depois da Comuna de Paris, recuperar suas lições a partir de uma visão ofensiva do marxismo, resgatando o comunismo como projeto político revolucionário.

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