Zanon: Novos ares combativos [Parte II]

0

O Cutralcazo em 1996, com sua combatividade e seus persistentes cortes de rodovia, conseguiu impactar em alguns setores da fábrica. Me lembro que fizems um fundo de greve para os companheiros de CutralCóde $70 (pesos argentinos NdT) que foi uma enorme conquista, porque ainda que o fundo de greve fosse ínfimo, os ceramistas nunca haviam juntado dinheiro para outros setores. Depois se sucederam as paralisações nacionais das centrais sindicais. O primeiro, em 8 de agosto e depois uma paralização de 36 horas em 26 e 27 de setembro no mesmo ano. Na fábrica essas paralisações eram parciais porque a burocracia se negava a garantir e deixava nas mãos da patronal para pressionar os trabalhadores, inclusive pagando táxis para que pudéssemos chegar ao trabalho. Isso era uma grande pressão para poder aderir, sobretudo, para quem estava contratado.

No âmbito nacional, começava a mudar a situação da classe operária. O ódio a burocracia se estendia e se fazia sentir em outras fábricas. O exemplo mais importante doi o de Cormec (FIAT) de Córdoba nos anos 1996-1997, aonde os operários conseguiram expulsar a burocracia da UOM e elegeram na assembleia uma nova comissão interna e um corpo de delegados. Tomaram a fabrica, fizeram piquetes e tiveram uma importante repercussão nacional. Uns meses depois, chegaram a formar um sindicato independente, o SITRAMF, que lamentavelmente teve uma existência efêmera porque permaneceu reduzido a uma só fábrica e a burocracia da UOM conseguiu isola-lo primeiro e derrota-lo depois. O processo que se iniciava em Zanon apontava o mesmo sentido, embora não tenhamos podido confluir em uma corrente comum porque se desenvolveu mais tarde, com outros ritmos.

Ante o desgaste do menemismo, o regime ia preparando uma substituição política. Com o respaldo da CTA e o “progressismo” liderado por Carlos “Chaco” Álvarez, foi se preparando uma nova armadilha: a Aliança, com a qual se tentava capitalizar o processo de lutas que havia se expressado nacionalmente nas paralizações nacionais contra o menemismo, para desvia-lo ao terreno eleitoral. Também começou a passagem das classe médias para a oposição, que teve sua expressão mais ativa no movimento estudantil universitário e secundarista por quase todo o país. Esse movimento primeiro enfrentou as leis de educação (1) e logo o corte presunçoso de Menem, com expressões altamente combativas, como o chamado “maio neuquino” de 98, com ocupação de escolas secundárias, técnico e superior, e duros enfrentamentos com a polícia.

Os trabalhadores desempregados seguiam em pé de luta: em 1997 fez importantes gestos em Neuquén, Salta e Jujuy; em abril se produziu o segundo Cutralcazo em Neuquén. O glorioso levante dos fogoneiros (2) de CutralCó, que se produziu em simultâneo com uma importante greve de professores (3), terminou com uma violenta repressão na qual Teresa Rodriguez, jovem empregada doméstica dessa localidade, caiu assassinada pela polícia. Isso desenvolveu mobilizações massivas de repúdio na província e em todo o país. Os levantamentos dos trabalhadores desempregados tinham apoio de todo o povo. Em CutralCó se enfrentaram valentemente contra a Gendermaria (Tropa de Choque), na qual se viveu como um triunfo. Nas ruas podia-se ler pinturas boleiras: “CutralCó 2 x 0 Gendarmeria”.

O processo de luta dos desempregados seguia se extendendo, um mês depois se levantaram em Tartagal (Salta) e em Jujuy. Os desempregados avançavam em sua luta, seu programa e sua organização e davam um grande exemplo a nós trabalhadores empregados. Esses primeiros movimentos de trabalhadores desempregados combativos surgiam das entranhas dos trabalhadores petroleiros que haviam sido despedidos com as privatizações, e lutavam por “trabalho para todos” para voltar a reinstalar-se nas empresas.

Na fábrica esses processos desenvolveram um sentimento contraditório. Alguns operários, mais avançados, sentiam simpatia pela combatividade dos desempregados, outro setor, mais atrasado, protestava contra os piquetes; entretanto, ia se generalizando a bronca contra a burocracia.

Recuperação da Comissão Interna e primeiras assembleias

A burocracia, e seu secretário geral, Montes, ganharam o sindicato ceramista há 2 anos. Na fábrica não existia Comissão Interna, a empresa a proibiu. O sindicato precisava ter um controle maior sobre os trabalhadores e, por isso, combinou com a empresa ter uma Comissão Interna. Previamente, a patronal tinha demitido todos os trabalhadores que supostamente eram da oposição. Ai só restou a burocracia sozinha. Mas entre os companheiros que foram ativistas dentro da fábrica , em todos os setores –Fornos, linha da planta nova e da velha – começamos a discutir a possibilidade de apresentar uma chapa. O companheiro Mario Balcazza foi quem teve a iniciativa e eu fui o último a me incorporar, porque previamente não tinha um acordo profundo para isso. Eles falavam “somos opositores e depois a gente ve”. Eu coloquei que: “se entramos é para mudar tudo. Eu não vou colocar em risco meu trabalho por nada”. Em principio o acordo foi muito elementar e foi feito clandestinamente. A chapa estava integrada por Mario Balcazza, Miguel Ramirez, Fábio Néstor San Martín e eu. Assim foi se conformando nossa chapa, a Marrom, nome que tiramos das experiências classistas da década de 1970.

A burocracia montou sua chapa oficial, a Azul e Verde, e eles – a patronal e o sindicato – fizeram uma manobra apresentando uma terceira chapa, a vermelha, que tinha um integrante da velha diretiva e o resto era gente independente, gente boa inclusive. A Chapa Vermelha começou dizer: “Nem a burocracia nem tanta combatividade, temos que fazer algo no meio”.

Saimos para bater duro na burocracia e na outra chapa. Faziamos nossas apresentações no refeitório da fábrica. Falavam as outras chapas, e quando falávamos os da chapa Marrom com personalidade, eramos ouvidos com atenção. Frente a isso a patronal e a burocracia tentaram uma última manobra. Que foi a de deixar fora da chapa os que tínhamos sido contratados com contrato mensal. Isso provocou uma crise na Marrom, pois alguns companheiros estavam abertos a aceitar a manobra. Mas como resposta decidimos nos apoiar na base, lançando uma campanha de assinaturas. Saimos pegar as assinaturas e conseguimos duzentas de um total de trezentos sessenta operários. Era um sinal muito significativo da mudança nos ânimos dos companheiros. A patronal e a burocracia viram que tínhamos muito apoio na base.

No começo, saímos com um discurso claro atacando os problemas centrais do momento:  igual trabalho, igual salário, democracia operária; decisões em assembleia; revogabilidade dos mandatos; efetivação de todos os terceirizados; que os terceirizados tivessem seus próprios representantes; que fosse votado um delegado por setor para constituir um comité de delegados.

Na quinta-feira 29 de outubro de 1998, ganhamos a Interna. Nossa vitória foi esmagadora e foi muito comemorado pelos companheiros. Foi uma votação histórica, era a primeira vez que se votava de forma massiva na fábrica. O resultado foi: 47 votos para a burocracia da Azul e Verde de Montes – situação -, a chapa Vermelha tirou 83 votos e a Marrom 187.

No dia seguinte fomos trabalhar em nossos turnos com um sorriso na cara. Começou mudar a moral, mas a fábrica ainda continuava dividida e continuava também a perseguição patronal. Visitavamos alguns setores, como o de porcellanato, mas os companheiros tinham medo de falar conosco.

O primeiro que fizemos para unificar aos companheiros da fábrica foi um torneio de futebol, durante todo um ano. E a metodologia do torneio era de um time por setor e cada time tiha um representante, ou seja, um delegado. Assim conseguimos estabelecer relação com todos os setores da fábrica. Fazer uma assembleia era muito difícil porque era proibido pela empresa. As primeiras medidas de força que tomamos foram assembleias de meia hora no refeitório na hora do almoço.

Adotamos um mecanismo que era ir no refeitório falar com os companheiros durante o almoço, o que se transformou num método distintivo da Comissão Interna da fábrica, o que permitiu mantar informados os trabalhadores sobre as questões da fábrica e a situação política do país. A Comissão Interna de Zanon teve desde o começo, a iniciativa de levar permanentemente informação às bases e às famílias ds trabalhadores, não so verbalmente, mas com boletins e folhetos escritos. Essa atividade informativa para garantir o efetivo exercício da democracia operária, permitindo que os operários elegeram entre as distintas posições com fundamento, também contribuía e incentivava o desenvolvimento da politização dos trabalhadores, preparando o terreno para a maduração do ativismo sindical e político dentro da fábrica. Todo esse trabalho prévio favoreceu o posterior surgimento de uma militância operária.

Durante os dois anos que estivemos como delegados dificultaram enormemente nossa vida na fábrica. Por nossa parte desenvolvemos, como já disse, uma verdadeira “escola de guerra”, aprendendo de cada pequena batalha.

Enquanto isso, no país…

No cenário político nacional o novo governo se preparava para desviar o descontentamento popular. La Alianza (4) se apresentava como oposição ao neoliberalismo representado por Menem, mas, em seu breve mandato, demonstrou que não era mais do que continuidade, mostrando mais uma vez o fracasso da “teoria” do “mal menor”. Pouco depois da sua vitória, La Alianza foi entrando em crise com sua base social. De laRúa acreditou que podia preservar sua força inicial mesmo tendo implementado medidas impopulares como o “impuestazo” às classes médias, a reforma laboral, a diminuição salarial dos servidores públicos e aposentados. Como resposta teve 3 greves gerais no ano 2000 que foi enfraquecendo suas forças e fortalecendo o movimento operário. E, pior ainda, ao forçar a votação da reforma trabalhista no Senado através de propinas provocou a renúncia do vice-presidente Carlos “Chacho” Álvarez  e o aumento da deslegitimação do regime político. A ampla base social de classe média, estudantes e servidores do estado na qual se apoiava o governo começou sua passagem à oposição.

Nesse contexto de decadência nacional, de um dinâmico cenário político e de um governo que ia se tornando cada dia mais impopular, vai se desenvolver uma importante fase do processo dos operários de Zanon, até a ocupação da fábrica em outubro de 2001.

Paralelamente, em 1999 em Neuquén, Jorge Sobisch assumia o segundo mandato e imediatamente lançou a campanha de “aliança estratégica” com a Repsol (5), a serviço de garantir altos lucros às multinacionais. Esse “regime petroleiro”, ao mesmo tempo, deixava fora não só milhares de desempregados mas também a importante faixa das classes médias e dos servidores do estado que se mantiveram como oposição social ao governo. Isso foi ao mesmo tempo uma base de apoio para os operários ceramistas que fomos nos constituindo num ator importante no enfrentamento ao governo da província. Como veremos depois, esses setores foram fundamentais para a manutenção da fábrica ocupada sob gestão operária.

Neuquén é uma província petroleira rica, mas com um alto índice de pobreza, com divisões e fragmentações. Essa fragmentação expressava-se também no terreno sindical: enquanto a direção do sindicato petroleiro apoiava explicitamente ao governo e dava estabilidade ao regime, a CTA e ATEN (docentes) localizava-se como uma oposição políticae social ao MPN, enquanto a oposição política burguesa não era –nem é hoje- uma ameaça eleitoral nem política para o partido provincial.

[no próximo número do suplemento Ideias de Esquerda “Zanon: A greve dos 9 dias [Parte II]”

(1) “as leis de educação a Lei nº 24.195, aprovada em 1993, no Governo Menem, que se caracterizou pela manutenção da linha descentralizadora na oferta dos serviços educacionais, ainda que reservando algum papel de relevância para o governo central, no que diz respeito à avaliação e ao financiamento”. (NDT) Marcelo, Castro, 2007.

(2)Os piqueteiros de CutralCó autodenominaram-se‘fogoneros’ para se diferenciar do setor de piqueteiros que terminou negociando depois do primeiro Cutralcazo com o MPN (Movimento Popular Neuquino), partido que governava a província de Neuquén.

(3)Não vou me referir, porque não é o tema desse livro, ao balanço daquela grande greve docente, da qual fomos muito críticos desde o PTS naquele momento, justamente pela política corporativista conduzida pela ATEN ao invés de aprofundar a unidade que vinha se dando na prática com os desempregados.

(4) – Coalição eleitoral integrada pela UCR (A União Cívica Radical partido político argentino) e a FREPASO (Frente País Solidário) integrado pela Frente Grande, o Partido Socialista Popular, o Partido Socialista Democrático e o Partido Democrata Cristão.

(5) Com esse acordo, Sobisch, no ano 2000, ampliou para a petroleira espanhola a concessão do campo gasífero mais importante da Argentina: Loma de la Lata. Essa concessão acabava e 2017, mas dezessete anos antes do vencimento a ampliou até o ano 2027, com isenção do pago de impostos pelo aumento da concessão – um valor superior aos US$100 milhões.

About author

No comments