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Zumbi dos Palmares, o marxismo e a tradição revolucionária

Iuri Tonelo

Zumbi dos Palmares, o marxismo e a tradição revolucionária

Iuri Tonelo

O dia 20 de novembro no Brasil é data nacional da consciência negra. A data foi instituída para coincidir com o dia atribuído a morte de Zumbi dos Palmares, aquele que entre as mais variadas tradições do pensamento e movimentos sociais no país é tido como a principal liderança negra da história. A questão que queremos colocar é sobre qual o significado de Zumbi à luz do marxismo e da tradição revolucionária no contexto de um país advindo de um golpe institucional e com um governo como o de Bolsonaro, em que nesse ano passamos pelo 20 de novembro com mais um assassinato de um homem negro por policiais e seguranças de um supermercado em Porto Alegre, fato sobre o qual o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, disse que não foi racismo, “porque não existe racismo no Brasil”, expressão literária de como o bolsonarismo tem um projeto de choque à direita nas relações raciais no Brasil. Tendo isso em vista, nos parece que há algo de muito simbólico na trajetória de Zumbi, que nos ensina como devemos enfrentar esse discurso.

Como sabemos, no final do século XVI surge na então capitania de Pernambuco (hoje Alagoas) o maior quilombo das Américas e que enfrentou mais bravamente à repressão escravocrata, o Quilombo dos Palmares. Resistiu por cerca de um século às investidas de Portugal e a elite dos engenhos e, nesse processo, tem um momento destacado nas décadas de 1660-70 quando a Coroa tenta um “acordo de paz” com o quilombo, em que o até então líder Ganga-Zumba se inclina a aceitar e daí emerge o nome de Zumbi, que junto a outros escravizados se rebela e não aceita qualquer acordo com a Coroa e a elite escravocrata, tornando-se depois da morte de Ganga-Zumba o grande líder do quilombo e herói da resistência, que dura décadas em uma série de investidas contra Palmares, só sendo derrotado em 1695, no 20 de novembro que marca a morte do líder negro.
O que marca o nome de Zumbi é que foi um combatente contra a elite escravocrata, a opressão portuguesa e pela liberdade dos escravizados no Brasil. Na atualidade, como toda liderança histórica, é referência para uma série de políticas, até mesmo as mais opostas a sua trajetória, incluindo as da passividade social, a reforma do sistema e a conciliação. Mas factualmente, é importante remarcar, a vida de Zumbi foi a de um líder de combate irreconciliável contra a escravidão e a Coroa imperial portuguesa.
Não é que a Coroa não houvesse tentado outros acordos para tentar conter Palmares, dada a força do Quilombo e a ameaça que significava para todo o sistema colonial e escravista, atingindo um de seus corações que era a produção açucareira de Pernambuco (o que teria potencial para desestabilizar o sistema). Conforme se descreve no livro no livro Questão negra, marxismo e classe operária no Brasil:

A Coroa sempre esteve atenta a Palmares. O rei D. Pedro II ainda não desistira de uma possibilidade de acordo de paz; sua intenção era buscar novamente um acordo. Souto Maior é nomeado governador de Pernambuco em 19 de fevereiro de 1695 com o objetivo expresso de obter a paz com os palmaristas. A proposta é recebida com desagravo pelos senhores de engenho, que entendiam que qualquer tentativa de paz havia fracassado em 1678.

Em seguida reproduzimos a carta expressa no livro, que é emblemática dessa situação e o significado mais profundo do combate de Zumbi:
O rei chegou a escrever uma carta a Zumbi, na busca por fazê-lo aceitar um acordo:

“Eu El-Rei faço saber a vós Capitão Zumbi dos Palmares que hei por bem perdoar-vos de todos os excessos que haveis praticado assim contra minha Real Fazenda como contra os povos de Pernambuco, e que assim o faço por entender que vossa rebeldia teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às minhas reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa mulher e filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção, do que fica ciente meu governador que vai agora para o governo dessa capitania.”

Nesse sentido, esse processo traça analogia com a grande liderança da revolução haitiana, Toussaint L’Ouverture, que um século depois receberia uma carta de Napoleão Bonaparte. Zumbi, nesse sentido foi uma expressão anterior da força da história universal sintetizada no gênio de Toussaint L’ouverture, que nos acontecimentos da Revolução Haitiana, por motivos similares - a ameaça ao domínio da Metrópole sobre a colônia - também recebeu a atenção pessoal do representante da Metrópole, ninguém menos do que Napoleão. E também usou a relação circunstancial com Napoleão para ganhar tempo e manobrar a seu favor, levando às últimas consequências a busca indeclinável de liberdade. Nesse sentido, torna-se uma conclusão profunda desses processos a ideia de que a Metrópole não tem nada a oferecer e é preciso irromper contra ela.

E compreender e ressaltar esses aspectos do símbolo que Zumbi significa na herança nacional torna-se uma questão vital para o marxismo. Conforme a célebre expressão de Marx e Engels em 1846, a luta de emancipação dos trabalhadores é um “movimento real que anula e supera todas as coisas”, o que implica dizer que está ligada à formação da classe trabalhadora, sua história, suas lutas e seus objetivos emancipatórios, que estão embasados em uma visão científica de mundo, mas se expressam como movimento real, portanto embasados nas experiências internacionais dos trabalhadores, mas também na própria formação do proletariado enquanto classe num dado país.

Nesse sentido, Friedrich Engels dava uma pista importante quando escreveu uma obra dedicada às guerras camponesas na Alemanha, buscando compreender as tradições revolucionárias que permeavam a formação do proletariado naquele país. E assim fizeram os fundadores do marxismo investigando a história dos trabalhadores em muitos lugares do mundo, da China aos Estados Unidos, da Índia à Rússia, dos primeiros países onde começaram a pesquisa na Europa até o continente africano, onde Marx passou um dos últimos momentos da sua vida, diga-se de passagem.

E essa pista podemos trazer para a reflexão sobre o proletariado brasileiro e nossa trajetória de lutas, pensando a formação da um partido revolucionário no país: a necessária fusão entre a análise teórica com a batalha pela emergência do sujeito da transformação. No caso brasileiro essa cisão é evidente quando analisamos a tradição sociológica, uma vez que um conjunto de autores do pensamento social tiveram influência na análise da formação do capitalismo brasileiro da perspectiva do desenvolvimento desigual e combinado, que na academia tem entre seus principais representantes nomes como Florestan Fernandes, Chico de Oliveira, Roberto Schwarz – mas que, embora em distintos níveis tiveram alguma influência dessa tese, não desenvolveram a conclusão estratégica derivada dela, que é travar a batalha pela emergência do sujeito revolucionário capaz de irromper contra a dicotomia atraso e moderno e os pilares da estrutura dependente do capitalismo no país, ou seja, pensar a emergência da classe como sujeito político orientado para a revolução social, a constituição de partido revolucionário na atualidade. No interior dessa problemática da fusão, o devido lugar e a releitura das revoltas negras e indígenas é parte constitutiva, pois elas se enfrentavam já na formação do Brasil com as bases do que continua a ser dilemas fundamentais da atualidade: a superexploração do trabalho, a desigualdade e a miséria social e o racismo como chaga que se perpetua na sociedade, hoje manifestadas na necessária batalha para superar o capitalismo brasileiro.

Além disso, tornava-se uma questão igualmente vital o problema da reflexão internacional e as particularidades nacionais. Compreender e estar conectados com as experiências mais avançadas dos trabalhadores em nível internacional, mas sem perder de vista as particularidades nacionais, ou antes, enriquecendo o conjunto da nossa teoria e estratégia de emancipação social com a experiência histórica concreta de cada país. Todos os marxistas clássicos tiverem protagonismo nessa dupla dimensão, por um lado de fincar a bandeira de que “os proletários não tem pátria”, ideia que está no Manifesto Comunista, mas que permeia a tradição altamente internacionalista como Lenin, Trótski ou Rosa Luxemburgo. Não por acaso está última travou decisivas batalhas no interior da social-democracia alemã e da Segunda Internacional, Lenin foi responsável junto a Trótski pela fundação da Terceira Internacional e Trótski, já na batalha contra o stalinismo e o “socialismo num só país”, impulsionador da fundação da Quarta Internacional. Mas justamente essa perspectiva internacionalista não impediu que esses mesmos marxistas fossem profundos na análise das tradições nacionais, com Rosa Luxemburgo tendo feito importantes estudos sobre a Polônia desde os inícios de sua atividade militante, Lênin escrevendo seu célebre O desenvolvimento do capitalismo na Rússia na virada do século ou Trótski com sua teoria do desenvolvimento desigual e combinado e da revolução permanente, compreendendo como ninguém desde 1905 a estrutura da Rússia e a dinâmica da revolução no país.

A questão estratégica socialista e parte da batalha central nos países, portanto, é fundir a análise teórica com a política, o internacionalismo e as particularidades nacionais, a percepção do desenvolvimento desigual e combinado com a batalha pela emergência de um sujeito revolucionário (revolução permanente).

De novo, Trótski é bastante expressivo nesse intuito analisando a trajetória dos países, uma vez que, para ele, conectar a emergência da classe trabalhadora com os símbolos e referências revolucionárias em um dado país é uma questão vital. Seu Aonde vai a Inglaterra? talvez seja um dos textos em que o revolucionário russo é mais audacioso nesse processo, quando discutindo com a tradição trabalhista o significado da emergência de Lênin na luta contra a velha sociedade, ele diz que “pode-se dizer com alguma justiça que Lênin é o Cromwell proletário do século XX” [It can be with some justice said that Lenin is the proletarian twentieth-century Cromwell] [1]. A definição é forte: para Trótski, era fundamental confrontar a institucionalização do trabalhismo inglês com as origens do cartismo e até mesmo com Oliver Cromwell, líder do que é tida como uma das primeiras revoluções burguesas da história, do século XVII. Ou seja, Lênin tinha outro conteúdo, proletário, representava outra classe, mas para Trótski era fundamental ligar esse conteúdo como expressão de toda a tradição revolucionária do país. O mesmo faz Trótski discutindo a importância de Robespierre e dos jacobinos na França, inclusive utilizando esse aspecto da tradição no debate político com as tradições nacionais (no caso os atrasos dos socialistas franceses). Citamos a passagem de Um Programa de Ação para a França que é exemplar nesse sentido:

Enquanto a maioria da classe operária continuar apoiando as bases da democracia burguesa, estamos dispostos a defender este programa dos violentos ataques que vai sofrer por parte da burguesia bonapartista e fascista. Pedimos, no entanto, a nossos irmãos de classe que são afiliados do socialismo “democrático” que sejam fieis a suas ideias: que não se inspirem nas ideias e métodos da Terceira República, mas nos métodos da Convenção de 1793 [2] (grifo nosso)

No caso do México, que Trótski pôde conhecer de perto tendo residido no país no final da vida, debatendo o problema da terra, é ainda mais explicito em traçar essa conexão, quando contrapondo-se ao método de Stalin de coletivização forçada das terras, o revolucionário russo aponta que:

No México, imitar estes métodos significaria encaminhar ao desastre. É necessário completar a revolução democrática dando a terra, toda a terra, aos camponeses. Sobre a base desta conquista já estabelecida deve-se dar aos camponeses um período ilimitado para refletir, comparar, experimentar com distintos métodos agrícolas. Deve-se ajudá-los técnica e financeiramente, mas não obrigá-los. Em resumo, é necessário completar a obra de Emiliano Zapata e não a sobrepor com os métodos de Stálin [3] (grifos nossos).

Ou seja, analisando o caso brasileiro poderíamos colocar a mesma questão: os trabalhadores do partido revolucionário no Brasil se referenciam em qual história e trajetória de lutas? Se tomarmos que as três das principais questões democráticas estruturais do país são a reforma agrária (fruto da enorme concentração de terras ainda vigente da sua herança colonial), a independência do jugo imperialista-financeiro (a partir da dívida pública e tantos outros mecanismos) e o problema do racismo, não podemos deixar de apontar que Zumbi dos Palmares aparece como força simbólica vital e parte constitutiva da tradição revolucionária do país, pois em sua época foi parte da luta contra o racismo, contra a opressão imperial (de Portugal) e pela emancipação do trabalho, garantindo terras à população negra. Evidentemente não queremos criar com isso um anacronismo na relação com o marxismo, uma teoria do século XIX que os escravizados brasileiros não puderam conhecer, mas que não deixam de ser parte do movimento real que levou à determinada e particular formação do proletariado no país.

O entregador negro, operário do século XXI, em cima de uma bicicleta embaixo de chuva ou forte sol que busque irromper contra esse sistema miserável de exploração e racismo deve ter Zumbi dos Palmares como uma referência fundamental da luta irreconciliável pela nossa emancipação. É parte da tarefa dos marxistas conectar as lutas negras e indígenas no Brasil colonial, com as batalhas do século XIX e XX do proletariado nascente e a classe trabalhadora industrial, dos serviços, terceirizada e uberizada no século XXI, como parte de emergir uma corrente orientada para a revolução social e que seja autoconsciente da rica trajetória de lutas irreconciliáveis no nosso país desde a sua formação até a atualidade.

Nesse sábado, o pai de João Alberto Freitas, o homem negro que foi assassinado, disse estar de “alma lavada” com os protestos que tiveram no país contra essa vida perdida. Uma boa notícia em meio a essa tragédia, pois aponta o caminho de virar esse jogo de violência e opressão: pela via da luta de classes, uma luta que podemos aprender como distintos revolucionários da história mundial e que, no Brasil, nos deixou o legado de Zumbi dos Palmares.


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FOOTNOTES

[1Leon Trótski. Where is Britain going. CHAPTER V.Two Traditions:The Seventeenth-Century Revolution and Chartism. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/trotsky/britain/wibg/ch06.htm

[2Leon Trótski. Um Programa de Ação para a França. Brasília: Centelha Cultural, p. 273

[3Leon Trótski. Escritos LatinoAmericanos. Buenos Aires: Ceip Leon Trótski. P. 145

Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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