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[DOSSIÊ] O FEMINISMO ANTIPUNITIVISTA | Violência patriarcal, vitimização e punitivismo: o debate que a denuncia de Thelma Fardin e Actrices Argentinas abriu

A denúncia de estupro de Thelma Fardín, atriz argentina, contra Juan Darthés, acompanhada pelas Atrizes Argentinas, segue tendo repercussões nas redes sociais e nos meios de comunicação no país. Um dos debates mais importantes que volta a estar no foco do movimento feminista é da efetividade ou não da política punitivista ou dos escrachos, frente à falta de justiça para as vítimas da violência patriarcal. O mesmo acontece em relação ao empoderamento das vítimas, sua revitimização por parte das instituições e dos meios de comunicação como também a imposição social de um papel de vítimas como o único possível para as mulheres, que oculta sua história e coletiva potência de luta e transformação.

Andrea D’Atri@andreadatri

terça-feira 18 de dezembro de 2018 | Edição do dia

tradução: Letícia Parks

A jornalista Mariana Carbajal voltou a entrevistar a antropóloga Rita Segato, que foi muito buscada, durante esses dias, para aportar com seu conhecimento sobre a violência misógina. Segato advertiu sobre o risco de “despolitização do que está acontecendo”, para instalar a denúncia como um espetáculo midiático. “Não quero apenas consolar uma vítima que chora. O ponto é como educamos a sociedade para entender o problema da violência sexual como um problema político e não moral”, disse em uma entrevista publicada na Página/12.

Sobre a vitimização, Rita Segato agrega que “O vitimismo não é uma boa política para as mulheres. O mais importante nessa notícia e o que a imprensa deveria destacar e repetir sem reservas e até com exagero é que quem resgata Thelma é um grupo de mulheres, suas pares, suas colegas, suas amigas, suas irmãs no processo político que estamos vivendo na Argentina e no continente: mulher salva mulher e mostra ao mundo o que deve mudar. Não é que há um príncipe valente. Há política, que é mais lindo, mais heroico e mais verdadeiro. (...) No entando, o que destacam e repetem é a cena sem limites da vítima descrevendo a agressão e exibindo sua dor ‘mariana’”. E adiciona: “Se compreende a emoção revivendo aquele momento e não deve estar ausente, mas a apresentação de uma sujeito acusadora apenas a partir de sua dor moral pelo que lhe ocorreu -que é o que a imprensa mostra – não deveria substituir nem desfazer ou antepor-se à cena de uma mulher que se tornou uma sujeita política e por isso denuncia”.

A partir de sua própria experiência pessoal, Thelma Fardín responde, em uma extensa entrevista publicada pelo diário Clarín: “Para mim já chega de falar, mas eu tenho essa sorte que é a de poder ser escutada. É difícil dizer a todas as mulheres que falem porque talvez muitas não possam ser ouvidas, e é nisso que temos que insistir, que nos escutem, em poder falar e ser escutada dessa maneira. Não sei porque aconteceu logo comigo. É interessante pensar porque tudo isso aconteceu”. Sua reflexão aponta ao que também denunciou o coletivo Atrizes Argentinas em sua conferencia de imprensa: a existência de vozes silenciadas pela desigualdade de poder, a precarização do trabalho que não lhes permite falar ou que seus relatos sejam críveis.

Para a antropóloga, há um fenômeno de politização feminina, que se observa nas ruas. “Não queremos apenas consolar um vitima que chora. O ponto é como educamos a sociedade para entender o problema da violência sexual como um problema politico e não moral. Como mostramos a ordem patriarcal, que é uma ordem politica escondida por detrás de uma moralidade”. Quando se refere à singularidade politica da ordem patriarcal, clarifica que a cena do gênero é uma cena de poder. E não há nenhum incomodo em questionar fortemente o desenvolvimento de correntes feministas radicais que vem no “escracho” a única perspectiva. “Cuidado com o que venho chamando de ‘feminismo do inimigo’, pois todas as políticas que se armam a partir da ideia de um inimigo caem irremediavelmente no autoritarismo e em formas de acionar fascistóides. O feminismo não pode e não deve construir nos homens inimigos ‘naturais’. O inimigo é a ordem patriarcal, que às vezes está encarnado em mulheres”.

Thelma expressa algo similar, que adverte a partir da experiência compartilhada com o coletivo Atrizes Argentinas: “Esse sistema que antes funcionava vai perdendo poder. Mas não sinto que esse poder tenha que mudar de mãos. O que quero é que construamos algo novo”. E é contundente: “Não acredito no escracho pelo escracho, cair nisso é muito perigoso, não acredito no poder da violência, mas sim no poder da palavra”.

Segato, por sua vez, reitera enfaticamente a necessidade de respeitar o direito à defesa: “cuidado com os linchamentos, pois temos defendido por muito tempo o direito ao processo justo”. Também estabelece uma diferenciação entre o que denomina “linchamento” e os escrachos que emergiram na Argentina no final da ditadura genocida, como uma forma de ação política contra um Estado que não garantia a implementação da justiça contra os responsáveis pelo terrorismo de Estado. “O escracho, como o habilitamos na Argentina quando o Estado se tornou genocida, e na realidade poderíamos voltar a habilitar agora, porque constatamos, como no caso de Lucía Perez o no caso do júri com o Juez Rossi (que havia deixado livre, apesar de ter condenação por estupro, alguém que em seguida matou Micaela García), que a justiça nos trai, se elabora através de um ‘processo’, que é de justiça ainda que não de justiça estatal. Quando a justiça estatal falha, outras formas de justiça aparecem, mas não são espontâneas, pois há deliberação, consulta, escuta, e a consideração por parte do coletivo de que se pode estar cometendo um erro – isso é o contraditório, esse é o espaço para a possibilidade de contradição -. O linchamento é uma forma de execução sem nenhuma dessas garantias. É uma execução sumária, e extrajudicial no sentido de que não está submetida a nenhum tipo de deliberação, nem estatal nem da coletividade enquanto tal”.

Educar a sociedade ou transformá-la da raiz?

Rita Segato se anima com uma certa esperança em mudanças sociais que estamos vivendo como a emergência politica do movimento de mulheres: “Os relatos que estão aflorando e se fazendo públicos mostram claramente que estamos nos livrando de um certo mandato paterno, patriarcal, cruel, abusador, narcisista e castigador. E é pela desestabilização desse mandato que se muda o rumo, que se muda o mundo”.

É claro que a mudança social radical que poderia assentar as bases para a derrocada definitiva do patriarcado não pode se entender apenas como uma mudança cultural, progressiva, evolutiva, gerada por uma “educação com perspectiva de gênero” e novos valores nos que ocupam funções nas instituições do regime político que, por sua vez, são as que legitimam, reproduzem e justificam a violência e a desigualdade de gênero, como a Justiça, as forças repressivas do Estado, os partidos políticos que mantém essa ordem social, etc. Nesse sentido, as aspirações de Segato – que assessorou o governo mexicano no caso de feminicídios na Ciudad Juaréz, como também a polícia de El Salvador onde se contabilizavam altos índices de violência de gênero entre suas próprias fileiras, além da brutalidade repressiva da instituição-, resultam utópicas em função da estratégia reformadora e educativa que ela propõe, a partir de seu lugar de reconhecida expert acadêmica nesses temas.

As mulheres são vítimas dos mais sutis micromachismos naturalizados da vida cotidiana, das desigualdades mais triviais e mais brutais estabelecidades cultural, política e juridicamente em todos os âmbitos, como também de graus extremos de violência e feminicios. Não reconhecer esse fato inegável conduz a reforçar os preconceitos patriarcais e sexistas. Entretanto, os discursos pós-modernos que parecem exigir o “empoderamento” subjetivo e individual das vítimas contra o sistema, também são revitimizantes ao estabelecer quem são as “vitimas politicamente okay” e as que não o são.

Esse passo importantíssimo, de reconhecer que tenham sido vitimas da violência patriarcal, algo que milhares de mulheres estão fazendo – como se pode observar ao simplesmente ver o que está acontecendo nas redes sociais nesses dias -, que permite sair do isolamento e do silêncio, reconhecer a agressão e a denunciá-la, pode transcender a vitimização apenas quando as mulheres transformam essa dor e essa raiva pessoais em força necessária para lutar pela mudança social mais radical, algo que só é possível levar adiante em um projeto coletivo.

Do contrário, o “empoderamento” individual necessariamente acaba nos “linchamentos” virtuais que Segato deplora, próprios do que ela denomina um “feminismo do inimigo” que cai “no autoritarismo e em formas de acionar os fascistóides”.

Esse projeto coletivo, ao se propor a estratégia de abandonar o lugar da resistência ou as reformas permanentes que nunca acabam por concretizar essa mudança na raiz, deverá reunir não apenas as mulheres oprimidas pelo patriarcado, que constituem mais da metade da majoritária classe dos explorados. A classe trabalhadora que tem em suas mãos o poder de fazer saltar pelos ares as estruturas do sistema capitalista e, onde as mulheres são o setor mais explorado, será um aliado indispensável para as lutas contra o patriarcado como também para acabar com todas as opressões, divisões e desigualdades que o capitalismo reproduz e legitima para manter seu domínio, através da exploração das grandes maiorias.




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