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Ursula Huws: “Tenho a sensação de que essa nova classe operária está começando a se mover”

Ursula Huws: “Tenho a sensação de que essa nova classe operária está começando a se mover”

Reproduzimos abaixo entrevista concedida por Ursula Huws ao Ideias de Esquerda em 2017. Ursula Huws é professora de estudos internacionais do trabalho da Universidade Metropolitana de Londres e autora de The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World (Nova York/Londres, Monthly Review/The Merlin, 2003), entre outros livros. Publica regularmente em revistas como Socialist Register, Z Magazine e New Statesman. Entrevista realizada por Iuri Tonelo e André Augusto, do comitê editorial da revista Ideias de Esquerda, 07 de julho de 2017.

Tradução e transcrição, realizadas por André Augusto.

Podemos falar do surgimento de um novo proletariado ligado aos setores de tecnologia? O que você chama de “cyberproletariado”?

Estávamos num contexto no qual havia muita discussão – estamos falando de um período de 20 anos atrás – durante os anos 90, quando surgia um discurso muito forte sobre “trabalhadores do conhecimento”, o “cognitariat”. A ideia de que os novos trabalhos estavam baseados no conhecimento e que os trabalhadores deveriam ser criativos e autônomos. Tudo acompanhado com a noção de que não havia mais necessidade das tradicionais regulações trabalhistas, porque na esfera do “pequeno trabalho” todos seriam parte deste setor de trabalhadores autônomos do conhecimento.

O que eu tentei expressar naquele contexto então, era que, de fato, muitos tipos de trabalho que envolvem o processamento de informação – que podia ser transmitida eletronicamente -, trabalho sobre processamento de dados que podia estar apoiado em tecnologia digital, todos estes serviços eram altamente repetitivos, geravam rotina, eram taylorizados, exibiam muitas características da alienação tradicional própria dos trabalhos manuais. Então, eu cunhei esta palavra (“cyberproletariado”) simplesmente para chamar atenção sobre esta natureza padronizada, reificada, “proletarizada” de vários dos novos serviços vinculados ao processamento da informação. Mas ao dizer isso, eu não quero me referir a toda a classe trabalhadora. Porque claramente existem vários outros trabalhadores vinculados ao trabalho manual, ao trabalho físico, nos ramos da logística, da construção civil, da fabricação industrial, da mineração, da agricultura, etc.

Qual a importância dos trabalhadores do setor dos serviços hoje, nos países centrais e na periferia do capitalismo?

Acho que é muito importante não enxergar o setor de serviços como algo separado do restante da economia. A maioria dos serviços está intimamente ligada a muitas atividades industriais. Existem fortes indústrias de serviços vinculadas à entrega dos bens diretamente ao público; claro que também há outros serviços como o de cabeleireiro ou de limpeza, serviços públicos como o ensino ou o setor educativo em geral. Entretanto, grande parte da expansão na indústria dos serviços ocorreu em atividades relacionadas à produção e circulação de mercadorias.

Essas atividades podem ser vistas como expressão do trabalho tradicional dentro da esfera da produção e circulação. Na medida em que a automação é introduzida, as cadeias de valor se tornam mais complexas, gera-se a necessidade de novas tarefas para administrar-las, na indústria e na administração da comunicação com os consumidores. Daí surgem setores de trabalhadores como o de atendimento ao consumidor, os responsáveis pelo preenchimento de dados e formulários, trabalhadores da logística, trabalhadores cuja rotina é desenvolver softwares e designs gráficos providenciando websites e conteúdo para a grande mídia, etc. Mas este não é um setor autônomo da economia. Está intimamente ligado com a produção e administração de mercadorias e às cadeias de valor responsáveis pela produção dessas mercadorias.

Se quisermos utilizar uma maior abstração, este setor também está ligado à “realização do valor”. Porque uma das características do capital globalizado é uma brecha crescente entre a criação de valor e a realização do valor. O valor criado contém o valor gerado por trabalhadores da mineração, trabalhadores que fazem o transporte das mercadorias até as docas onde estão os navios e galpões, trabalhadores que empacotam os produtos nos grandes armazéns, trabalhadores que entregam este produto ao consumidor, todos estes trabalhadores agregam valor ao produto, mas este valor não é realizado até que esta mercadoria seja vendida.

Esta brecha entre a criação de valor e a realização do valor explica a enorme pressão posta sobre os trabalhadores nas cadeias de valor, para que acelerem a produção, para que trabalhem cada vez mais rápido, para ter certeza de que as mercadorias serão vendidas e entregues a tempo. Por que se há uma falha, se o produto se torna obsoleto, se há um atraso, se o produto retorna ao armazém, então o valor não é realizado. Isso explica para mim, a enorme pressão exercida sobre os trabalhadores responsáveis pela produção física e circulação dos bens, mas também sobre os trabalhadores envolvidos nas tarefas de comunicação e informação. Essa pressão existe nos call-centers, onde os trabalhadores precisam mediar os pedidos dos consumidores e os produtos, ou mesmo os trabalhadores responsáveis pela logística que também fazem essa conexão, etc.

O trabalho da informação também é um trabalho físico. Todos os trabalhadores possuem corpos. Mesmo que você esteja sentado na frente de uma tela, usando fones de ouvido, você ainda está submetendo seu corpo ao um stress físico, a uma pressão de trabalhar rápido, estando num espaço confinado lidando com atrasos e abusos. Não devemos esquecer a materialidade dos corpos dos trabalhadores do setor de serviços também.

A reestruturação produtiva das últimas décadas e a formação dos novos grandes monopólios tecnológicos, do setor de serviços e de logística, colocaram em xeque a importância da classe trabalhadora industrial? Ou do ponto de vista da teoria do valor, ainda se mantém a importância desse setor da classe trabalhadora?

Acho que precisamos repensar o que queremos dizer com classe operária industrial. A teoria do valor de Marx se aplica à produção de mercadorias com valor de troca. Marx faz uma distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, ou trabalho reprodutivo. Trabalho improdutivo, nos termos de Marx, envolve a produção de bens e serviços apenas em função de seu valor de uso.

No capitalismo moderno, mais e mais trabalhadores estão envolvidos na produção de mercadorias, sejam materiais ou imateriais. O que as seguradoras vendem é uma mercadoria, por exemplo. Um pacote de viagem no feriado é uma mercadoria. Uma mercadoria não precisa ser uma coisa física, embora esta seja a forma mais comum de mercadoria no capitalismo. Porque é mais fácil saber que aquilo que você vendeu foi despachado. Portanto, se usamos essa definição, se incluírmos no conceito de classe operária todos aqueles trabalhadores que estão sob serviço direto do capitalismo – quando digo direto incluo, claro, os trabalhadores eventuais, ainda que não sejam funcionários formais, mas que estejam em relação direta com a produção capitalista – numa relação de exploração em que estão trocando suas habilidades, seu tempo e seu esforço físico, por dinheiro, então há um antagonismo direto de interesses, porque existe o conflito entre o empresário e o trabalhador sobre este quantum do tempo de trabalho que é convertido em mais-valia.

Se usamos essa definição então a classe operária está crescendo mais rapidamente agora do que em qualquer outro período na história. Porque um número cada vez maior de trabalhadores está sendo sugado para dentro deste escopo das relações de exploração capitalista. Trabalhadores do setor público estão sendo privatizados, e neste processo eles se tornam parte da classe operária. Porque não mais estão produzindo apenas valores de uso; estes valores de uso passam a ter valor de troca, passam a produzir lucro para um capitalista privado. Temos então um enorme crescimento da classe operária através das privatizações.

Temos outro enorme crescimento da classe operária através do que podemos chamar de “formalização da economia informal”; o tipo de trabalho que costumava ser do setor privado ou da “pequena produção”, por exemplo, trabalhadores da limpeza, limpadores de janelas, cuidadores de idosos ou crianças, que são pagos diretamente em dinheiro – normalmente, na maior parte do mundo – fora do escopo das relações formais do capitalismo.

Agora conhecemos as plataformas online como a Uber, sugando os trabalhadores para dentro da órbita das relações formais do capitalismo; embora não sejam funcionários formais, estão sujeitos à disciplina capitalista, à disciplina do tempo, e outras formas de disciplina e supervisão por capitalistas. Embora nos estágios iniciais da produção fabril inclusive, o modelo de trabalho era originalmente um modelo de aluguel; eles não empregavam diretamente os trabalhadores, eles alugavam um espaço na fábrica no período inicial do desenvolvimento industrial. Estas empresas de plataforma estão usando também um modelo tipicamente de aluguel, tomam para si uma percentagem por cada transação.

Cada vez que uma limpadora de janelas vem limpar uma vidraça, 25% do que ela recebe vai para alguma empresa na Califórnia. A economia informal na Europa é relativamente pequena, mas na Índia é muito grande, imagino que no Brasil e no México também seja enorme parte da economia, pelo tamanho da população.

Imagine boa parte deste trabalho informal sendo sugado para dentro da plataforma Uber, ou sistemas de serviços informais de taxi, e há muitas outras plataformas menos conhecidas que o Uber mas que são igualmente grandes, que compõem uma forma de expansão do capitalismo para novas áreas da vida. Há outras formas em que o capitalismo se expande, claro: com a produção de novos “bio-objetos” baseados no DNA, novas drogas, o corpo humano como um lugar de acumulação de capital, com a mercadorização da cultura e da sociabilidade (com as mídias sociais, os telefones móveis, etc.). O capitalismo, com isso, se expande numa velocidade considerável, e mais trabalhadores estão sendo sugados para a órbita da classe trabalhadora.

A questão é a seguinte: a classe tem duas dimensões. Temos a dimensão objetiva, a posição de classe, da qual fazem parte todos estes novos setores de trabalhadores [da economia de plataformas], mas temos também a dimensão subjetiva, da consicência de classe. Antes que essa classe se torne consciente de si mesma, como classe, e há muitos obstáculos para isso, a internalização de responsabilidades é um problema grande.

Estou fazendo pesquisas com os trabalhadores destas plataformas online, falei com dois trabalhadores, e eles tinham experiências horríveis. Falava com uma trabalhadora da limpeza outro dia e exigiram que ela carregasse sacos plásticos cheios de vidros quebrados, a serem despachados por uma longa escada de concreto num lugar escuro. Os braços dela tinham inúmeros cortes pelo vidro. Perguntei por que ela não recusou o pedido e ela disse que se fizesse isso receberia uma avaliação ruim do consumidor; não seria paga se recebesse uma avaliação ruim do consumidor. Então perguntei por que ela não recusou o emprego e ela disse “É tudo culpa minha, eu aceitei o emprego, fui insensata, precisava muito do dinheiro”, etc. Ou seja, ela estava assumindo a responsabilidade no lugar desse vil empregador, e isso acontece com muitos trabalhadores.

O problema então é essa total ausência de sentimento de direito para melhorar suas condições de trabalho. Mas naturalmente há outros obstáculos mais estruturais para a aquisição da consciência de classe, entre os quais os mais evidentes hoje são o racismo e a xenofobia. Porque o capitalismo está cada vez mais recorrendo ao exército industrial de reserva global, através da importação de mão de obra, ou através da terceirização para áreas de produção fora do seu território e em ambos os casos a tradicional solidariedade entre os trabalhadores é colocada sob uma pressão incrível, porque os trabalhadores que estão no exército industrial de reserva são demonizados como aqueles que estão “reduzindo os salários” ou “querendo tomar o emprego” daqueles já empregados. Então existem essas profundas divisões na classe operária, todos os quais são superexplorados pelos Donald Trumps desse mundo. Esse populismo xenófobo está muito forte hoje.

Podemos dizer que o século XXI vivenciará lutas de novos setores do proletariado, combinando setores clássicos e o “cyberproletariado”? Há evidências hoje do impacto que isso poderá ter nos métodos de luta dos trabalhadores?

Uma cadeia de acontecimentos bem interessante ocorre agora. No Reino Unido estamos presenciando uma nova onda de sindicalização, entre motoristas de Uber, entregadores que trabalham de bicicleta (vários dos quais são brasileiros, aliás, há muitos brasileiros que trabalham neste ramo de entregas). Eles se sindicalizaram, triunfaram em greves, obtiveram concessões como o pagamento dos dias afastados por doença, o que no contexto do Reino Unido hoje é uma grande conquista.

Os trabalhadores vinculados à “economia de plataformas” mais fáceis de organizar são justamente os motoristas de Uber e entregadores, uma vez que eles passam o tempo juntos e se encontram próximos uns aos outros – é como se fossem os trabalhadores das docas há 100 anos atrás, que tinham de esperar juntos nas docas até saber quem seria escolhido para o trabalho – então é claro que eles desenvolviam solidariedade e falam uns com os outros. É bem mais difícil com os trabalhadores que estão isolados, trabalhando nos domicílios de outras pessoas, já que nunca se encontram. Mas este novo sindicato, o IWGB (International Workers of Great Britain, Trabalhadores Internacionais da Grã-Bretanha), que foi criado baseado na antiga organização sindical de inícios do século XX, a IWW (International Workers of the World) dos Estados Unidos, organizou um grande número de greves entre os trabalhadores da limpeza nas universidades, trabalhadores que foram terceirizados mas que eram antigamente funcionários do setor público (como dizia, estes setores terceirizados fazem parte da “nova classe operária” que entra no circuito capitalista).

Eles organizaram greves exitosas em três universidades, organizaram greves de funcionários de hospitais privados, e no norte da Inglaterra e estão organizando um outro tipo de trabalhadoras que normalmente ficam “escondidas”: as chamadas “mães sociais”, mulheres que são remuneradas pelo Estado para cuidar de crianças que foram tiradas de seus pais ou famíliares, crianças que ainda não foram adotadas e que são cuidadas temporariamente em casas de acolhimento. Esse em particular é um grupo muito vulnerável de trabalhadoras, porque estão muito isoladas, são muito exploradas por conta da natureza afetiva de seu trabalho (não podem fazer uma greve, porque afetaria a vida das crianças).

Mas é interessante que os sindicatos estejam organizando estes setores, que são os grupos de trabalhadores em situações mais precáriaa. E não é apenas no Reino Unido, os entregadores organizaram greves na Alemanha, na Itália, creio que organizaram também na França (ainda que seja outro tipo de empresa, embora que do mesmo setor), ou seja, greves de trabalhadores que entregam alimentos em bicicletas.

Por isso tenho a sensação de que essa nova classe operária está começando a se mover. Também houve interessantes ações com os trabalhadores de Taiwan, que conseguiram algo como banir o Uber do país. A expansão de empresas de plataforma como o Uber tem sido tão dramática que estamos começando a saber de iniciativas de organização em países como o Egito, a Indonésia, lugares que você absolutamente não esperaria [risos].

Não sei exatamente como está a organização destes setores no Brasil, mas imagino que se estão se organizando em Londres, também estão em São Paulo. No ano passado, dois motoristas de Uber formaram um sindicato independente de motoristas, United Private Hard Drivers (UPHD) e eles levaram um caso novo para o tribunal, tratando de serem reconhecidos como empregados e não como autônomos e um dos sindicatos tradicionais, o GMB, os apoiou, forneceu o dinheiro necessário para a disputa no tribunal, garantiu os advogados, os apoiou no caso e isso abriu um novo tipo de abordagem dos sindicatos tradicionais para os setores precarizados, especialmente aqueles com o “contrato de zero hora”, muito comuns no Reino Unido.

Os sindicatos acabaram tomando ciência de que, muitos destes trabalhadores precários, são os mesmos que eles representam em outros ramos. O tipo padrão de “trabalhador pobre” no Reino Unido é aquele que assume mais de um emprego simultaneamente para poder sobreviver. Um trabalhador muitas vezes dirige, trabalha num bar, realiza tarefas de limpeza, etc. Assim, em um emprego esse trabalhador pode estar representado por um sindicato tradicional, ou coberto por um acordo coletivo realizado por um sindicato tradicional, e num outro emprego podem ser parte de um novo tipo de organização.

Então o que eu acho que está acontecendo é que, nesse novo clima político, com o ressurgimento da esquerda – finalmente! – ou uma espécie de ressurgimento da esquerda, que apesar de não ter vencido as últimas eleições obteve um resultado que foi um choque para o establishment – estamos começando a ver uma espécie de pensamento comum na esquerda, fazendo com que os sindicatos tradicionais se tornem mais abertos a trabalhar com os sindicatos “sociais” novos que estão emergindo.

Esses são tempos entusiasmantes, as coisas estão mudando bastante rápido. Estes são sinais de um novo tipo de pensamento e porventura do avanço da consciência de classe. Eu vou a algumas reuniões sindicais dos motoristas de Uber, porque eles se reunem perto da minha casa e além de tudo são muito simpáticos [risos], 85% dos motoristas de Uber em Londres são imigrantes, não são brancos, enquanto que 85% dos tradicionais motoristas de taxi londrinos são brancos, então existe uma grande diferença. E os motoristas de Uber tem consciência disso, eles dizem “os motoristas brancos estão bem representados nas autoridades municipais e o fato de não estarmos é fruto de racismo e discriminação” e fazem pronunciamentos afirmando que “nós somos os trabalhadores precários” (working poor), uma frase que usam, e isso me parece indicar a posse de um nível de consciência de classe. Eles claramente rejeitam aquele sentimento de “responsabilidade” do qual falava a respeito da trabalhadora que havia se cortado com vidro. Os motoristas dizem “isso não deve ser minha responsabilidade, é responsabilidade do patrão” e para mim essas formas de pensamento representam a agitação de uma nova consicência de classe.


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