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IGREJA E ESTADO | Uma ’inovação’ de 1789 inexistente no Brasil: separação da Igreja e do Estado

sexta-feira 8 de julho de 2016 | Edição do dia

A suspensão dos passaportes diplomáticos concedidos por José Serra ao pastor R. R. Soares e a sua mulher Maria Magdalena Ribeiro Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, por parte da Justiça Federal, já é um sortilégio em si: as instituições do Estado algumas vezes coíbem a violação obscena daquela “inovação” política instituída pela Revolução Francesa em 1789: a separação completa da Igreja e do Estado.

Este princípio, que custou a cabeça de centenas de aristocratas, nobres e membros eclesiásticos no século XVIII, é esquecido por vezes por aqueles que não tiveram a oportunidade de perder a cabeça na “navalha nacional”, muito mais porque se beneficiam politicamente dos laços estabelecidos com os chefes religiosos milionários que tem o controle sobre rádio e televisão para transmitir a massas a sua mensagem política.

A justificativa que aparece no site do Ministério comandado por Serra para explicar a concessão de passaportes é de que, “durante o período imperial o passaporte diplomático era concedido a líderes católicos e que, por isso, hoje o Brasil concede o benefício a todas as religiões”. Logo, hoje, nada mais natural que permitir que Soares, Malafaia, Valdomiro de Oliveira (líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, beneficiado por Dilma e o PT) e o pastor Samuel Ferreira (Assembléia de Deus) encarnem a emancipação das injustiças passadas, recebendo todos os privilégios que faltaram aos seus antepassados.

Os milhões de fiéis devotos não gozarão deste piedoso benefício do direito ao uso de uma fila especial nos aeroportos, uma vez que não tem o poder divino de conceder maioria parlamentar em votações no Congresso. O que o tucano José Serra realmente quer é que o apoio recebido pelo PSDB no parlamento (que se estende de uma forma ao governo golpista de Temer) não seja apenas das lideranças católicas, mas sim daquelas “de todas as religiões”.

Desconsideremos a ignorância de Serra em saber que durante o Império o Brasil não era um Estado laico. Ainda assim, levando em consideração que não poderia hoje ignorar que “sua” Constituição estabelece formalmente a laicidade do estado, o princípio da isonomia se daria ao não conceder privilégio nenhum a qualquer líder religioso, e não estender a todos dispositivos de uma monarquia (apesar de toda a compaixão que Serra pode ter por ela).

De fato, nada há de laico nesta democracia dos ricos e poderosos “pela graça de Deus”. Para não mencionar os debates dignos do Concílio de Trento durante a votação do impeachment na Câmara, as instituições do Estado trabalham para fortalecer a influência das Igrejas na política.

Se a bancada evangélica fosse um partido, ela seria o terceiro maior na Câmara Federal. A frente parlamentar evangélica, que conta com parlamentares das mais diversas denominações, tem 78 deputados, número superado apenas pelo PT e pelo PMDB. Tem como principais pautas atacar os direitos das mulheres e dos LGBTs, com a negação do direito ao aborto, do casamento homoafetivo e propostas grotescas como a “cura gay”. Foi até agora dirigida pelo chefe da Assembléia de Deus, Eduardo Cunha, que renunciou da presidência da Câmara por inúmeros crimes relacionados a desvios da Petrobrás, e que será substituído por outro missionário do mesmo calibre. O atual portavoz do governo golpista na Câmara é seu apadrinhado evangélico André Moura, do PSC, que lançou projeto de lei proibindo pessoas trans de usarem banheiros de acordo com sua identidade de gênero.

Em junho de 2015 a dupla fez passar em sessão da Câmara a isenção tributária às igrejas, que garante a anulação de autuações fiscais a igrejas que extrapolam R$ 300 milhões. A medida aumenta a isenção fiscal de profissionais da fé, ao livrar da cobrança de impostos as chamadas "comissões" que líderes religiosos ganham por arrebanhar fieis ou recolher mais dízimos. A Constituição de 1988 já garante imunidade tributária a templos.

Uma das principais beneficiárias da medida seria justamente a Igreja Internacional da Graça de Deus, do missionário R.R. Soares, amigo de Serra, multada em cerca de R$ 60 milhões em 2014 e que deixou de pagar o tributo. Os pastores Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra, participaram da articulação o atual presidente golpista Michel Temer sobre a inclusão do artigo.

Muitos dos casos de sonegação religiosa são de pastores que recebem, por exemplo, um salário mínimo e, por fora, "comissões", a título de "ajuda de custo", que chegam à casa dos R$ 100 mil. Valores sempre vinculados ao desempenho do profissional em angariar fieis.

Além dos auxílios de custo, isenções tributárias e privilégios financeiros que recebem como todos os políticos de alto escalão, servem-se de verbas públicas para encenar seus ritos espirituais nas Câmaras Municipais. O Jornal Estado de São Paulo divulgou levantamento da agenda da Câmara, e mostra como esta foi sede de 24 atos de cunho religioso entre janeiro e junho (cerca de um por semana), e tendo ainda seus custos pagos com dinheiro público do Legislativo. Nas sessões, os políticos-missionários faziam odes edificantes contra o islamismo, o marxismo e a esquerda.

Fica claro que os privilégios às Igrejas e seu atrelamento ao Estado nada tem a ver com a proteção aos direitos de cada indivíduo professar a própria fé. Pelo contrário, o dinheiro público financia o conteúdo opressor, racista, islamófobo e homofóbico destes cultos.

Temos o exemplo da República francesa que nasce no bojo da queda dos Bourbon em 1794. A Assembléia Nacional colocou à disposição da nação todas as propriedades do clero e permitiu maior liberdade de religião (o poder da Igreja, apesar de parcialmente fortalecido depois da derrota da Comuna de Paris em 1871, nunca mais voltou a ser o mesmo). Na revolução russa de 1905 o poder da Igreja Ortodoxa desapareceu rapidamente depois do massacre de 9 de janeiro, quando o czar cristão ordenou a seus cossacos abrir fogo contra o povo desarmado. A partir desse momento a religião não desempenhou nenhum papel relevante, tendo a influência eclesiástica colapsado ainda mais rapidamente que na França depois do triunfo da revolução de outubro de 1917, com a formação do novo estado operário de transição.

Nestas duas experiências temos a Igreja ligada com as forças conservadoras e reacionárias, e sua separação com o Estado nascente imposta pelas energias desencadeadas. A persistência da influência da Igreja sobre o Estado em pleno século XXI é prova de quão conservadora é a Constituição de 88 e quão reacionária é a classe dominante brasileira que sempre dependeu das batinas para governar, inclusive daquelas responsáveis pela ditadura militar. Lutar contra o atrelamento da Igreja com o Estado significa necessariamente enfrentar todo o regime político existente e "ajudá-los a perder as cabeças".




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