Afonso MachadoCampinas
terça-feira 17 de setembro de 2019 | Edição do dia
Faltavam poucos minutos para o enforcamento. Eram 15 h e o sino da igreja da vila repicava sem parar, emitindo sons que chegavam como soco no nariz, dedo nos olhos e picada de marimbondo. Todos acotovelavam-se na praça para ouvir as acusações contra o condenado . Dali alguns instantes seria enfocado um homem com cerca de 74 anos. O carrasco observava de maneira enigmática a série de sete janelas trancadas no céu. Ele iria proferir antes do enforcamento um discurso incriminador perante a população composta essencialmente de operários, trabalhadores de aplicativos, professores, faxineiros, caixas de super mercado e atendentes de telemarketing . Ao fundo uma orquestra tocava pela quinta e última vez o hino nacional.
O homem estava com a corda com pele de sucuri em volta do pescoço. A longa corda foi amarrada no galho de uma árvore centenária. O condenado com as mãos atadas, os pés amarrados e a boca tampada, mal conseguia se equilibrar no banquinho, que seria chutado dentro de instantes. O carrasco iniciou seu discurso:
Duas mulheres que estavam junto ao público gritaram :
O carrasco continuava:
Uma senhora sorridente caminhou em direção ao carrasco com uma caixa contendo variados itens que pertenciam ao condenado. O carrasco retirou da caixa um exemplar do livro A origem das Espécies, de Charles Darwin.
A evolução das espécies é uma teoria que nega a Deus.
Um homem gritou:
O carrasco retirou outro livro: A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud. Nem foi preciso que ele comentasse a obra, sendo interrompido por três pessoas que gritavam:
O carrasco colocava as mãos sobre o rosto e em seguida as elevava em direção ao céu, como se pedisse auxílio divino. Ele prosseguiu e retirou da caixa uma pilha de revistas de histórias em quadrinhos e um antigo single dos Beatles:
Pessoas gritavam:
O carrasco prosseguiu tendo em mãos agora o velho single do quarteto de
Liverpool:
Mais gritos vinham do público:
O carrasco pediu calma e prosseguiu:
O carrasco retirou da caixa livros assinados por autores como Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Marcuse e outros. Ele atirava os livros pelo ar. Transtornado, descabelado, ele vociferou em meio aos gritos da multidão suas palavras finais:
Todos gritavam:
O homem foi enforcado. No final da tarde, a caixa contento os itens do morto deveria ser levada para longe da vila e enterrada em local desconhecido. Um jovem, que passa os dias fazendo entregas de bicicleta foi escalado junto a outros dois jovens que trabalham como atendentes de telemarketing, para enterrar a caixa. Os três enterraram a caixa tomados por uma grande curiosidade pelos itens que esta continha. Estes jovens não tinham as mesmas opiniões dos outros habitantes da vila. A caixa foi enterrada naquela noite. Porém, passados dois dias, a caixa foi desenterrada e seu conteúdo desapareceu.
Naquela vila, por volta das 2 h da madrugada, quando os homens e mulheres tementes a Deus dormem, aqueles três jovens estudam documentos históricos, leem aquelas obras que pertenceram a um condenado.
Observação: esta é uma pequena obra de ficção. Apesar do seu pano de fundo ser inevitavelmente histórico, personagens e lugares foram inventados.
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