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RESGATANDO IDEIAS CLÁSSICAS DO MARXISMO | Um debate sobre as noções de proletariado e Estado em Zizek (Parte I)*

segunda-feira 27 de julho de 2015 | 16:25

Difícil começar um texto sobre Zizek e não falar dos aspectos formais, incomuns no meio acadêmico, das exposições de suas ideias. A grande maioria dos artigos sobre o esloveno inicia comentando sua ênfase em misturar crítica de cinema, psicanálise, filosofia e marxismo. Sempre há referência a posição do filósofo em discutir a ideologia dominante em seus aspectos mais populares como Holywood combinando com uma leitura erudita de clássicos da filosofia e do marxismo. Alguns dirão que estes aspectos formais expressam uma adaptação ao mundo mercadológico ou a própria ideologia pós-moderna.

O presente texto buscou nas páginas de Zizek outras questões. Além de suas excentricidades, o autor possui o mérito de assumir debates contemporâneos resgatando questões que foram estratégicas para a esquerda, mas que durante os anos 80 e 90 ficaram apagadas ou, pelo menos, restritas a círculos bastante minoritários de ativistas e intelectuais. É necessário reconhecer que, ao menos do ponto de vista teórico, Zizek, à luz de reflexões sobre os clássicos do marxismo, propõem o debate de questões fundamentais, porém negligenciadas como as reflexões sobre poder, violência e Estado. Se estas questões são secundarizadas pelos críticos e comentadores do filósofo frente uma amplitude de outros temas de sua obra e de seu perfil excêntrico é mais um problema da insistência da intelectualidade em continuar tratando a revolução como algo distante do que de Zizek propriamente dito.

A recusa a se discutir a questão do Estado é provavelmente um dos elementos mais importantes assinalados por Zizek como crítica a adaptação da esquerda a todo um espírito de época que proclamava a democracia como valor universal. De fato, o mundo “pós-muro de Berlim” abriu um tempo difícil para a esquerda, principalmente a marxista: em todos os campos os pilares de sustentação da teoria pareciam ser quebrados por um novo mundo que diziam não só vir para ficar, mas também, para por um “fim na história”.

Lênin, combatendo as traições e o reformismo da segunda internacional, chegou a afirmar que o revisionismo não acontecia ao questionar qualquer tese marxiana, mas sim em descontruir algum de seus fundamentos basilares. Na filosofia, o revisionismo buscava descreditar a dialética e/ou o materialismo; na economia, teoria das crises cíclicas e de que as tendências objetivas do capitalismo provocam crises com potenciais revolucionários; no campo da política: a necessidade do partido e da classe operária como sujeito que lidera as camadas populares no processo revolucionário. Com o fim das experiências de estados operários e com o avanço do período neoliberal não era apenas que alguns marxistas buscavam reformular as teses de Marx. Elementos objetivos da conjuntura global, combinado com as derrotas consecutivas do proletariado pareciam desacreditar estas teses fundamentais e abriam espaço para um novo avanço da ideologia burguesa.

Muitos defendiam que não era Marx que havia errado, mas que o capitalismo havia mudado e que suas principais contradições poderiam ser superadas sem uma revolução, entendida no sentido clássico de uma classe destruindo o poder de outra e construindo uma nova organização social. Neste sentido ser um marxista “ortodoxo” caberia compreender estas mudanças e que as teses basilares do marxismo ortodoxo haviam ficado para os tempos passados.

Nesta nova etapa do capitalismo - Lenin teria errado sobre o imperialismo ser (fase) superior - a realidade impunha o descarte das teses antes tidas como guias para o marxismo. As teorias globalizantes que defendiam uma nova etapa do capital afirmavam: o capitalismo havia superado ou superaria o Estado nação; a classe operária havia desaparecido, ou havia perdido sua gravidade social e se diluído em outras noções identitárias; os conflitos interimperialistas deixariam de existir; a globalização acabava com a divisão entre países imperialistas e semi-coloniais; a especulação financeira era tão orgânica da vida contemporânea que se autonomizava da chamada “economia real”; os avanços tecnológicos criavam um mundo coletivizado virtual quase que não-privatizável.

Estas entre outras teses, se unilateralmente tidas como verdadeiras colocariam as teses marxistas como parte da etapa passada do capitalismo. Não faria mais sentido discutir materialismo e dialética num mundo em que a tecnologia criava uma virtualidade autônoma; as crises capitalistas eram questões menores, já que a etapa imperialista de “crises, guerras e revolução” havia passado; o papel da classe operária enquanto sujeito revolucionário não era mais uma questão tendo em vista sua diluição na multidão urbana, ou no mar pós-moderno de identidades; a noção de partido era um resquício do antigo “fetiche” pelo Estado da modernidade e, portanto, deveria ser abandonado como ferramenta de transformação.

Este espírito de época expresso pela direita com Fukoyama, e pela a esquerda com os teóricos autonomistas como Negri, Hardt e Holloway reembaralhou as cartas estratégicas do Marxismo que Lenin recomendava não “jogar no monte” para não ceder ao revisionismo. Zizek pode ser considerado um dos poucos defensores de um marxismo, em partes, contra este espírito de época. Não que ele seja um marxista ortodoxo - o presente artigo busca evidenciar as continuidades do autor com as teses do período neoliberal – mas, ao menos, é um dos filósofos contemporâneos que arrisca recuperar algumas cartas do “lixo”.

Este texto busca problematizar pontos em Zizek que o aproxima mais dos anos 90, o qual chama de “época da utopia democrática” e demonstrar que ele aceita algumas teses importantes de teóricos que busca criticar. Ainda que Zizek conclame a esquerda a voltar a pensar sobre como constituir um poder, capaz de estabelecer uma nova ordem de transformação, ele próprio continua preso ao período neoliberal em pontos chaves. Este texto busca evidenciar tal questão problematizando a forma como o autor relaciona as noções de proletariado, economia-política e Estado. Entendemos que este é um problema nuclear no pensamento de Zizek que o leva a um impedimento estratégico: a compreensão entre objetividade e subjetividade na constituição do sujeito revolucionário. Por outro lado, o mesmo núcleo problemático o leva a posições condescendentes com o stalinismo no balanço das experiências socialistas do século XX e em posições conciliatórias com os chamados governos pós-neoliberais[1].

Em defesa da ditadura de outro proletariado

Provavelmente, a carta que o filósofo segura com maior tensão é a do Estado e da necessidade da esquerda não abandonar a defesa de uma violência revolucionária, ou seja, um projeto de poder. Segundo o próprio Zizek a esquerda se adaptou em linhas gerais de 8 formas distintas e as vezes combinadas ao “capitalismo global” e a hegemonia da “democracia liberal”:

“1 .Aceitação total do arcabouço: continuar lutando pela emancipação dentro de suas regras (social-democracia da terceira via); 2. Aceitação desse arcabouço como algo que veio para ficar, mas ao qual ainda se deve resistir, escapando ao seu alcance e trabalhando e “interstícios”; 3. Aceitação da inutilidade de todas as lutas, já que hoje esse arcabouço tem abrangência total e coincida com seu oposto (...) 4. Aceitação da inutilidade temporária da luta (“hoje, no triunfo do capitalismo global, a verdadeira resistência não é possível, pelo menos não na metrópole do capitalismo, de modo que tudo o que podemos fazer até a renovação do espirito revolucionário da classe operária global é defender o que ainda resta do estado de bem-estar social, bombardeando os que estão no poder com exigências que sabemos que não podem atender, e, fora isso, nos refugiando nos estudos culturais, onde é possível realizar em silêncio o trabalho crítico”);5, ênfase no fato de que o problema é mais fundamental, de que o capitalismo global é (...), o efeito ôntico do princípio ontológico subjacente da tecnologia ou “razão instrumental”; 6, crença de que se pode minar o capitalismo global e o poder estatal, mas não pelo ataque direto, e sim pela reconcentração do campo de luta nas práticas cotidianas, nas quais é possível “construir um mundo novo”; dessa maneira, as bases do poder do capital e do Estado serão minadas aos poucos (...); 7. Mudança pós-moderna da ênfase na luta anticapitalista, que agora é dada as múltiplas formas de luta político-ideológica pela hegemonia(...); 8. Proposta de que é possível repetir no nível pós-moderno o gesto marxista clássico e encenar a “negação determinada” do capitalismo: com o surgimento hoje do “trabalho cognitivo”, a contradição entre produção social e relações capitalistas alcançou níveis nunca vistos, tornando possível, pela primeira vez, a “democracia absoluta”.(Em defesa das causas perdidas, pp 337 e 338)

O ponto de contato de todas essas respostas é a negativa para a problemática clássica do marxismo sobre a luta de classes como o antagonismo social determinante; e que o seu desenvolvimento desdobra em um “ponto onde não é possível o retorno” onde a necessidade de um projeto de poder da classe explorada necessitará entrar em choque direto com o poder e o estado do capital. Todas as variantes descritas por Zizek evitam esta questão que ele compara com o “Real traumático” na psicanálise. E de fato passando pelas variantes mais radicais ou mais adaptadas ao regime quase todos grupos com certa expressividade se adaptam a alguns dos pontos: Zapatistas(6), Zonas Autonomas Temporárias, neo-anarquistas (2), autonomistas a lá Negri (8), as distintas teorias críticas (3 e 5), partidos e frentes “anti-capitalistas” sem foco na centralidade da classe operária (4), os que defendem o fortalecimento de projetos de participação popular em governo considerados mais progressistas (7) e etc. Mesmo grupos dentro do cenário europeu tidos como extrema esquerda como o SU (Secretariado Unificado), antigamente dirigido pelo trotskista Mandel, deixa clara sua inclusão nesse quadro ao retirarem de seu programa a consigna “ditadura do proletariado”, alegando que o novo período e as experiências totalitárias tornam impossível a compreensão “original” do conceito.

Zizek ao se diferenciar destas respostas realmente resgata várias dos conceitos do marxismo: classe operária, violência revolucionária, a importância da economia-política, a centralidade da análise da exploração, e mesmo a noção de partido e da ditadura do proletariado. No livro “Em Defesa das Causas Perdidas” Zizek busca resgatar através da análise dos processos revolucionários desde a revolução francesa até a revolução cultural chinesa os projetos e os ensaios de poder, para buscar compreender a necessidade de um poder e uma violência que cumpram o papel transitório revolucionário. Ele é no mínimo enfático nessa necessidade, não mostra vergonha em discutir nos termos de “terror” e faz analogias ao que Benjamin chamou de “violência divina”. Zizek busca se contrapor as distintas variantes adaptadas à democracia burguesa e ao espírito de época resgatando elementos chaves (“causas perdidas”) dos projetos revolucionários clássicos: a necessidade de um tipo de violência transformadora, um projeto de poder, a disciplina, e mesmo “um corpo forte, competente para tomar decisões rápidas e implementá-las com todo o rigor necessário” [2] . Nesse empenho Zizek chega, inclusive, na possibilidade de resgatarmos a categoria de “ditadura do proletariado”:

“E se assumirmos o risco de ressuscitar a boa e velha “ditadura do proletariado” como única maneira de romper com a biopolítica? Hoje, isso só pode soar ridículo; só podem parecer dois termos incompatíveis, de campos diferentes, sem nenhum espaço em comum: a análise mais recente de poder político contra a mitologia comunista arcaica e desacreditada. Ainda assim, hoje é a única escolha verdadeira. A expressão “ditadura do proletariado” continua a apontar o problema-chave.” (Em defesa das causas perdidas, PP. 207)

O ponto crítico em Zizek não é a utilização ou não de conceitos clássicos do marxismo, mas o tipo de atualização e a articulação que ele faz entre eles. O movimento geral do filósofo é a defesa de uma categoria clássica do marxismo combinando com uma atualização que cede às noções pós-modernas. O exemplo mais claro disso é na forma como o autor defende, ao mesmo tempo, as noções de classe operária e ditadura do proletariado e aceita a tese de que a nova configuração do proletariado, devido à expansão do trabalho intelectual, transformou demasiado o capitalismo e o próprio proletariado.

A princípio, Zizek não pode ser enquadrado dentre os teóricos que defenderam o fim da classe operária. Ele inclusive percebeu o papel ideológico construído por trás deste discurso, ao discutir a ausência de imagens de processos produtivos reais e a desvalorização do trabalho físico no cinema de Hollywood:

“A tradição que remonta ao Ouro do Reno, de Wagner, e a Metropolis de Lang, a tradição em que o trabalho se processa de baixo da terra, em cavernas escuras, culmina hoje em dia nos milhões de trabalhadores anônimos que se consomem nas fábricas do terceiro mundo, desde os gulagues chineses até as cadeias de montagem na indonésia ou no Brasil – graças a esta invisibilidade, o ocidente pode dar-se o luxo de falar do “desaparecimento da classe operária”. Mas o que é crucial nesta tradição é a identificação do trabalho manual (...) é na sua origem uma atividade criminosa indecente que deve ser ocultada do olhar público. Nos filmes de Hollywood, as únicas vezes que vemos o processo produtivo em toda sua intensidade é nas cenas em que o herói penetra no domínio secreto do chefe dos criminosos e descobre aí o local onde se faz todo o trabalho (destilar e empacotar droga, construir um míssil destinado a destruir Nova York, etc). Geralmente, James Bond, quando é capturado pelo chefe dos criminosos, este leva-o à sua fábrica clandestina, e isto é talvez o mais próximo que Hollywood chega da orgulhosa apresentação realista-socialista da produção numa fábrica. E, evidentemente, a função da intervenção de Bond é fazer ir pelos ares este centro de produção, permitindo-nos voltar à ilusão quotidiana de vivermos num mundo de onde “desapareceu a classe operária”. (Lacrimae Rerum, pp180 e 181)

Mas o limite de Zizek está exatamente na forma como ele concebe as noções de classe operária e de proletariado. A postura, neste ponto, realmente eclética, do autor dessubstancialisa o conceito de classe operária. Mesmo nas defesas mais contundentes do porque devemos utilizar a noção de proletariado a defesa do autor se fundamenta no sentido político que a palavra acarreta e não na forma econômica-social que ela representa:

“a oposição entre proletariado e “povo” é fundamental : em hegelianês, essa oposição é a mesma que existe entre universidade “falsa” e “verdadeira”. O povo é inclusivo, o proletariado é exclusivo; o povo combate intrusos, parasitas, os que atrapalham sua autoafirmação, o proletariado trava uma luta que divide o povo em seu próprio âmago. O povo quer se afirmar, o proletariado quer se abolir.” (Em defesa das causas perdidas, 410)

Ou mesmo quando crítica o populismo sua ênfase é no fato de que a luta pela unidade da nação substitui a “luta de classes”. O problema é, ainda que verdadeiras, estas foram as conclusões políticas de Marx sobre proletariado. E não a definição de proletariado. Ao definir as coisas dessa forma, evitando recortes socioeconômicos, Zizek acaba tendo uma noção moldável de classe social. No que tange o proletariado hoje, sua postura é: “Em vez de procurar a classe trabalhadora que desaparece, deveríamos, em vez disso, perguntar: hoje em dia quem ocupa, quem consegue tornar subjetiva, a posição de proletário?” (Bem vindo ao deserto do real) E quando existem definições, elas acabam sendo mais psicanalíticas do que econômicas. Como, por exemplo, “o proletariado é algo próximo a ‘parte de parte alguma’”.

É interessante perceber que a proposta de Zizek é o retorno à economia-política com o “conceito de exploração (...) radicalmente repensado”. A conclusão política disso não será outra do que a defesa de uma classe operária “radicalmente repensada” e uma “ditadura do proletariado” com uma nova noção de proletários:

“A atual conjuntura histórica, além de não nos impelir a abandonar a noção de proletariado, de posição proletária, impele-nos, ao contrário, a radicalizá-la num nível existencial que está muito além da imaginação de Marx. Precisamos de uma noção mais radical de sujeito proletário, um sujeito reduzido ao ponto evanescente do cogito cartesiano, privado de seu conteúdo substancial”. (Vivendo nos fins dos tempos, pp 196)

A consequência política de tal leitura é que dentre as inúmeras características que recupera do pensamento de esquerda anterior a “pós-modernidade” [3], Zizek aceita a causa de que é necessário um projeto de Estado para a transformação social, mas abandona a noção clássica da classe operária como sujeito “líder” de um processo revolucionário que envolve as outras classes oprimidas. A política revolucionária para nosso filósofo apesar de necessitar apoiar-se nas amplas massas, não passa pelo tema central do marxismo clássico de como a classe operária deverá se organizar na luta contra o capitalismo e na transição para um novo mundo. Isto porque Zizek opta por uma noção fenomênica, circunstancial e contingente de classe, ignorando uma noção “objetiva” de proletariado ou das classes em geral. Fundamentalmente, a noção de organização da classe operária desaparece em Zizek ao passo que aceita a ideia de que a nova configuração do proletariado devido ao trabalho intelectual transformou essencialmente o capitalismo e o próprio proletariado. Em suas palavras:

“ O problema é que a ascensão do trabalho “intelectual” (conhecimento científico, além do saber fazer prático)à posição hegemônica (o “intelecto geral”) destrói a noção subjacente de exploração, já que não é mais o tempo de trabalho que serve de fonte e medida suprema de valor. Isso significa que o conceito de exploração deveria ser radicalmente repensado.” (Vivendo no fim dos tempos, pp 196)

Este é um dos pontos chaves que mostra que, apesar das críticas contundentes aos autonomistas “a lá Negri”, Zizek sede muito à noções como a de “cognotariado”, ou mesmo de “multidão”. Sua diferença com os autonomistas é que ao invés de afirmar “o capitalismo e o proletariado mudaram radicalmente, isto implica que devemos recusar a luta pelo Estado” Zizek afirma: “o capitalismo e o proletariado mudaram, ainda assim não devemos nos esquecer do Estado”.

O contraditório é que Zizek sabe das limitações dessa noção. Sabe “da questão marxista especifica relativa ao proletariado como classe produtiva explorada e privada dos frutos de seu trabalho” (idem, pp 196). Reconhece, também, que a expansão do trabalho imaterial não pode fazer ”jamais nos esquecer do anverso do centro “criativo” pós-moderno no Vale do Silício” são os “alojamentos em estilo militar, na China, assolados por uma série de suicídios de trabalhadores, todos por consequências das condições estressantes de trabalho”. (O ano em que sonhamos perigosamente, 120-121). Porém, o que Zizek insiste, junto a outros teóricos da etapa pós-industrial, é na transformação exagerada que o trabalho imaterial teria causado na lógica capitalista. Estes autores invertem a ordem de determinação ao não perceberem a consciência, e consequentemente as práticas intelectuais de trabalho, como um momento do próprio trabalho. Zizek, ainda que perceba, as proximidades na análise de Negri e Hardt com os defensores do “capitalismo sem conflito” pós-moderno, parece aceitar a seguinte mudança histórica:

“Hoje, o trabalho imaterial é “hegemônico” no sentido exato que Marx proclamava que, no capitalismo do século XIX, a larga produção industrial era hegêmonica como a cor específica que dá tom à totalidade - não quantitativamente, mas desempenhando o emblemático papel estrutural.” (O ano em que sonhamos perigosamente, p.18)

A resposta de Zizek, para continuarmos utilizando o conceito de proletariado neste mundo, onde para ele “o tempo de trabalho não é mais a medida do valor”, será universalizar a noção de proletariado incluindo os desempregados como peça chave. Aqui será uma das necessidades de Zizek voltar a Hegel. Ao invés de articular a noção de classe operária e povo, como Lenin, Trotski e Rosa fizeram, Zizek recupera a noção de “populaça”:

“Essa expansão do círculo dos “desempregados” não nos levaria de volta de Marx a Hegel: a populaça está de volta, surgindo no próprio cerne das lutas emancipatórias? Em outras palavras, tal recategorização muda todo o “mapeamento cognitivo” da situação: o pano de fundo inerte da História torna-se um agente potencial da luta emancipatória” (Menos que nada, pp. 1336)

Para explicar melhor como o filósofo constrói essa concepção de proletariado sem trabalhadores objetivos, sem classe operária, Zizek parte de Fredric Jameson buscando entender o desemprego não só como um fenômeno de formação do exército industrial de reserva, mas da própria noção de exploração. Ele se utiliza de uma piada para expressar essa concepção. Um sujeito ao ser indagado o porquê é explorado responde:

“Por dois motivos: o primeiro quando trabalho, o capitalista se apropria da minha mais-valia” logo a pessoa que pergunta retruca: “mas você está desempregado! Não produz mais valia nenhuma!” então o trabalhador responde: “este é o segundo motivo”. (Menos que nada, p. 638 e O ano em que sonhamos perigosamente, p. 16).
O problema aqui não é a importância que se dá ao desemprego como produto do próprio movimento de valorização do capital. Autores como Jameson, Zizek ou Harvey possuem o mérito de perceber a existência de amplos setores da sociedade do capitalismo contemporâneo que possuem uma vida que se enfrenta com distintas formas de desemprego, mas que não podem ser considerados lumpenproletários. Ou seja, apesar de desempregados, não estão à margem do processo produtivo. A questão problemática, portanto, de Zizek é que sua valorização dos que possuem alguma relação com o desemprego é na verdade tão ampla que substitui a própria noção de assalariados, ou pelo menos, de classe operária. O movimento teórico é incorporar o desemprego na noção de exploração, mas a consequência disso é quase negar o emprego como exploração.

É da noção proposta por Jameson de 4 facetas de sujeito explorado na sociedade contemporânea que a tese de Zizek parte: trabalhadores, exército industrial dos desempregados temporariamente, os não empregáveis e os anteriormente empregados. Os adendos do filósofo para aprofundar o argumento do desemprego como categoria positiva da exploração econômica é acrescentar a noção de ilegalmente empregados (trabalho escravo e mercado negro), mostrar a importância dos considerados “excluídos” no interior do próprio mercado mundial [4], e acrescentar o oposto do “anteriormente empregável”: aqueles que recebem a promessa de emprego futuro, como os estudantes, que não conseguirão empregos em suas áreas.

Ora, o interessante aqui é que, tanto o quadrado semiótico de Jameson, quanto a ampliação de Zizek, podem ser entendidos não só através do prisma do desemprego mas também do próprio trabalho. É uma opção teórica do esloveno afirmar que este quadro complexo expressa uma espécie de centralidade do desemprego. Ele expressa, ao mesmo tempo, a centralidade da noção de trabalho. Todos os exemplos de Zizek mostram que, apesar do desemprego, as distintas formas de trabalho estão amplamente combinadas no capitalismo contemporâneo.

Sobre a relação entre desempregados e exploração podemos inclusive pensar na noção inversa de Zizek. Hoje, existe a possibilidade conjuntural de que exista a função antiga do exército industrial de reserva sem o desemprego prolongado. O Brasil talvez seja o exemplo mais paradoxal disso, o chamado “modelo brasileiro” teve como característica a ideia de que era possível combinar crescimento econômico com distribuição de renda. Chegou-se a falar em pleno emprego no país.
A questão é que o emprego aumentava paralelamente a rotatividade do trabalho (aumento da terceirização, trabalho precário, empregos temporários, etc). Através desta, o capitalismo consegue usar a função clássica do exército industrial de reserva no interior do próprio processo produtivo, sem desempregar uma massa por tempos prolongados [5]. Em relação aos “ilegalmente empregados”, o fato de não serem reconhecidos juridicamente como trabalhadores legais, não muda o fato de serem trabalhadores. Pelo contrário, só mostra que a ilegalidade pode ser um recurso de aumento da exploração e do rebaixamento salarial. E, evidentemente, os estudantes que não conseguirem emprego em sua área, buscarão emprego em outras áreas, o que aumenta a competitividade pelos postos de trabalho.

O outro lado da moeda da argumentação substitucionista de Zizek é a descaracterização dos trabalhadores que possuem relativa seguridade no emprego. É muito comum ultimamente o esloveno dizer que se pensarmos na categoria clássica de operário com emprego e direitos garantidos veríamos que “ser operário hoje é quase um privilégio”. Existe uma argumentação mais teórica sobre isso: Zizek compartilha da noção de “mais-salário” e “de burguesia assalariada” de Jean-Claude Milner, que tenta explicar, em alguma medida, os altos salários de executivos, gerentes e administradores e também de setores altos da classe média que recebem ou “mais-salário” ou “menos-tempo de trabalho”, caso de alguns profissionais intelectualizados e os altos escalões do funcionalismo público. Zizek parece ir além, e defende que “todos os tipos de especialistas” são parte “dos privilegiados que recebem um ‘mais-salário’”. Ao discutir as greves e mobilizações pós-crise o filósofo amplia ainda mais essa noção e enquadra setores que saíram em luta pela manutenção de seus empregos como “camadas baixas” da burguesia assalariada:

“Embora esses protestos sejam nominalmente dirigidos contra a lógica brutal do mercado, eles protestam na verdade contra a corrosão gradual de sua posição econômica (politicamente) privilegiada.”

E continua defendendo que as greves de hoje são “em sua maioria, greves “da burguesia assalariada” privilegiada, movida pelo temor de perder privilégios (o excedente sobre o salário mínimo). Essas greves não são protestos de proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido a proletário. Em outras palavras, quem ousa fazer greve hoje em dia, quando ter trabalho fixo já começa a ser um privilégio? (...) a camada de trabalhadores privilegiados, com empregos garantidos” (O ano em que sonhamos perigosamente, p.22)

A verdade é que nesta formulação amplos setores de trabalhadores acabam sendo considerados “burguesia assalariada”. Professores, trabalhadores do transporte, baixos servidores públicos entre outros. A noção é tão ampla que caberia perguntar se Zizek considera as lutas dos trabalhadores franceses contra os fechamentos de fábricas e pela manutenção dos postos de trabalho parte da maioria de greves de burgueses assalariados contra a ameaça de se tornarem proletários.

O embaralhar de Zizek dos conceitos para definir o proletariado de hoje substitui a centralidade do trabalho pela do desemprego. A combinação de que o desemprego possui uma centralidade estrutural muito maior hoje com a tese de que não é mais o tempo de trabalho fonte de riqueza [6] reduz a categoria de trabalho a uma noção tão secundária que possibilita não só incluir todos que possuem alguma relação com o desemprego na categoria de proletários, como subtrair dela os trabalhadores que possuem alguma estabilidade empregatícia. O que Zizek não percebe é que essa presença potente do desemprego não é característica de um momento novo do capitalismo, mas o aprofundamento de uma tendência clássica dele. A complexidade do trabalho contemporâneo confirma e aprofunda a relação instável entre trabalho e desemprego que sempre esteve presente no capitalismo. Ser trabalhador nunca significou proteção contra o desemprego. Este é a própria consequência da força de trabalho como mercadoria, e um recurso social que atormenta o conjunto da classe trabalhadora no decorrer da história moderna. Um exemplo marcante disso é o fato de que a primeira reivindicação que aparece no “Programa de transição” de Trotsky [7] seja relativa ao desemprego:

“O proletariado não pode tolerar, sob pena de degenerar, a transformação de uma parte crescente dos operários em desempregados crônicos, em miseráveis vivendo das migalhas de uma sociedade em decomposição. O direito ao trabalho é o único direito sério que o operário tem numa sociedade fundada sobre a exploração. Entretanto, este direito lhe é tirado a cada instante. Contra o desemprego, tanto estrutural quanto conjuntural, é tempo de lançar, ao mesmo tempo que a palavra-de-ordem de trabalhos públicos, a de ESCALA MÓVEL DAS HORAS DE TRABALHO.” (Programa de Transição)

A categoria “universalizada” de proletariado para todos que possuem alguma relação com o desemprego não é somente uma resposta errada, mas é o desenvolvimento de uma pergunta errada: “como pensar a universalidade singular do sujeito emancipatório como não puramente formal, isto é, como determinada concreta e objetivamente, mas sem a classe operária como base substancial?” Zizek busca uma utilidade radical política do conceito de proletariado, mas se recusa pensar nas bases objetivas que esse conceito expressa. Separa a radicalidade política deste conceito sem sua base social.
Por isso, a pergunta de Zizek é como criar uma articulação que cumpra o papel que o proletariado possuía no marxismo clássico sem buscar um núcleo objetivo dele na realidade social:

“(...) não devemos esquecer que, para o verdadeiro marxista, as “classes” não são categorias da realidade social positiva, ou partes do organismo social, mas categorias do real de uma luta política que atravessa todo o organismo social” (Vivendo nos fins dos tempos, p 159)

Ainda que não seja correto separar mecanicamente a posição subjetiva, engajada da defesa do proletariado de sua dimensão objetiva, parte do organismo social. E que concordemos sobre a existência de uma dimensão política na própria economia (a luta de classes não para). Zizek parece cair em um erro idealista ao afirmar que as classes não existem na realidade social. Como se fosse possível pensar na objetividade “da luta de classes”, mas não das classes sociais.

Nesta concepção é impossível a ideia da classe operária ser base substancial do sujeito emancipador na sociedade. Esta postura filosófico-política de Zizek se combina com noções equivocadas sobre a heterogeneidade de classe operária e de sua relação com o restante das massas oprimidas proletarizadas ou semi-proletarizadas. De fundo, a pergunta que o filósofo negligência, continua sendo como os revolucionários devem articular a heterogeneidade da classe trabalhadora e a sua relação com o conjunto das massas oprimidas. Uma nova “morfologia do trabalho” não muda esta pergunta estratégica.

Notas:

* Este texto, dividido em três partes, é fruto de um conjunto de reflexões que o Esquerda Diário, a editora ISKRA e a editora Centelha vêm realizando sobre o pensamento de teóricos marxistas contemporâneos. Outros debates sobre as ideias de Zizek se encontram no livro, recém-lançado pelas editoras ISKRA e Centelha, organizado por Gilson Dantas: Zizek e Seu Diálogo Com Marx, Lacan e Lenin. Para pedidos deste livro: Pedidos: [email protected]

1 É reconhecida a forma como o Zizek transita entre críticas pontuais no interior de uma defesa mais genérica aos chamados “governos progressistas” da América Latina Evo Morales, Hugo Chavez e Lula.

2 http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/assaltantes-de-lojinhas-do-mundo-uni-vos.html e Menos que Nada, pp. 633

3 Nas palavras de Vladimir Safatle Zizek tenta recuperar o projeto ”racionalista moderno com suas aspirações de emancipação e reconhecimento”.

4 O exemplo usado pelo autor é a “tribalização” em países como o Congo onde as empresas multinacionais fazem comércio com realidades não mediadas por leis estatais onde o trabalho infantil, escravo e semi escravo comandado por chefes barateiam os preços de produtos comprados.

5 Esta realidade pode ser vista nos anos áureos do Lulismo no Brasil. Atualmente, pelo desenvolvimento da crise econômica internacional e pelo fim de ciclo econômico do país, está se provando quanto este “pilar” do modelo de desenvolvimento brasileiro era frágil com o desemprego voltando a assombrar os trabalhadores brasileiros.

6 Em defesa das Causas perdidas Zizek chega a estranha conclusão que hoje não se pode dizer mais que a classe operária é quem gera a riqueza da sociedade.

7 Espécie de Manifesto Programático da fundação da quarta internacional na antessala da segunda guerra mundial.

Referências:

TROTSKY, Leon. O Programa de Transição; São Paulo: Editora ISKRA, 2008
ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas; Tradução Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.
ZIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegal e a sombra do materialismo dialético; Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo Boitempo, 2013.
ZIZEK Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente; Tradução: Rogério Bettooni. São Paulo , Boitempo 2011.
ZIZEK Slajov. Vivendo no fim dos tempos; Tradução: Maria Beatriz de Medina. São: Boitempo, 2012.


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