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Um breve debate com Vladimir Safatle sobre o retorno da luta de classes

Simone Ishibashi

Um breve debate com Vladimir Safatle sobre o retorno da luta de classes

Simone Ishibashi

No dia 24 de outubro, em meio à elevação das manifestações no Chile que aprofundaram a entrada em cena da luta de classes na América do Sul, o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle publicou um texto no jornal El País sobre os novos ventos que sopram em nosso continente. Destoando de uma série de artigos e análises publicados nos grandes meios, a breve nota de Safatle “Quando as ruas queimam” é digna de menção, e convida a reflexões relevantes neste momento.

Tratemos primeiramente dos méritos que a nota traz. O primeiro elemento é uma continuidade da trajetória que os textos políticos de Safatle vem tomando recentemente. O autor tem quebrado a torre de marfim que circunda muitas vezes a academia, e não apenas aborda temas centrais da realidade nacional e internacional, como ainda o faz retomando alguns conceitos tão vigentes, como heréticos para boa parte de seus colegas de cátedra. Tem assumido o posto de ferrenho crítico entre a intelectualidade da insistência estratégica de grande parte da esquerda brasileira em buscar saídas pactuadas, quando essas foram justamente as raízes dos males que assolam o cenário nacional atual, e que permitiram que torturadores fossem anistiados, outro aspecto entranhado na formação do Estado brasileiro contra o qual corretamente Safatle se lança. Ademais, tem igualmente combatido o sentimento de saudosismo regressivo que nega-se a enxergar que a história não volta atrás, e que a mutação aberta no regime político brasileiro é profunda, fazendo com que a aspiração do retorno do gradualismo pacífico experimentado por parcela da classe média social dos anos do lulismo seja no melhor dos casos uma vã aspiração.

Este mesmo fio condutor é em parte retomado pelo breve artigo citado acima.

A tese fundamental apresentada por Safatle é a de que a luta de classes retornou à cena internacional, e que em algum momento chegará ao Brasil. Essa definição poderia ser uma mera constatação de um fato. Mas o que difere o artigo de Safatle de tantos outros é algo simples, como o feliz uso da definição dos processos de luta de classes justamente pelo conceito que lhes cabe, isto é “luta de classes”. Algo que no atual contexto assume importância. Afinal vivemos tempos que as verdades óbvias passaram a ter que ser novamente defendidas. Isso porque a luta de classes é não raramente negada por intelectuais e analistas com pavor acomodado, muitas vezes mal disfarçado detrás sentenças de um pretenso caráter obsoleto.

Portanto, simplesmente escrever em um jornal de ampla circulação que o que ocorre no Chile, bem como no Líbano, Equador, França, é produto da luta de classes, e não “balbúrdia”, “saques”, “ações orquestradas por poderes ocultos” ou qualquer equivalente elaborado com a finalidade de negar a ação das massas. Isso não é à toa. O próprio uso da palavra “classe” remete a noção de que vivemos em um mundo dividido, cuja fratura econômica entre uns poucos que não produzem, mas usufruem das grandes benesses que advém do trabalho humano, engendra um inexorável conflito com a maioria produtora, e crescentemente despojada das riquezas que produzem. Uma contradição que se agrava ano a ano, e cujas soluções paliativas detém cada vez menos tempo de validade. É dessa constatação simples, mas de que muitos intelectuais inclusive que se colocam no campo marxista ou da esquerda não partem, que Safatle retira as bases para vaticinar que cedo ou tarde os abalos sociais que hoje incendeiam o Chile chegarão aqui.

Isso leva a outro mérito do artigo, embora esse seja algo mais parcial não tanto pelo que afirma, mas por uma ausência. Trata-se da contestação da falsa tese de que o povo brasileiro, ao contrário do chileno, seria carente de “bravura”, e graças a isso não teria ocorrido aqui uma resistência contra os ataques neoliberais. Em resposta a essa reedição do mito do brasileiro cordial Safatle convida a uma visita às comunidades do Rio de Janeiro, onde barricadas recorrentemente postas de pé pela população contra as subidas dos caveirões e brutal repressão estatal são erguidas, e onde a juventude negra, mãe e trabalhadores enfrentam-se a uma política de assassinato sistemático. Nada mais verdadeiro. Aqui no Rio de Janeiro torna-se patente que os trabalhadores, a juventude negra, as mães e até os anciões que compõem a povo pobre estão longe de terem deficiência de “bravura”. Muito pelo contrário, enfrentam de peito aberto, literalmente muitas vezes, a polícia e seus fuzis, as milícias e a mentira que sistematicamente transforma jovens e chefes de famílias em “bandidos” para forjar autos de resistência de modo a mascarar a face a mais horrenda do decadente capitalismo e da herança escravista tão entranhada na formação do Estado brasileiro.

Entretanto, assim mesmo, a pergunta “por que o Chile ainda não é aqui?” é algo que deve ser analisado. E nisso reside uma lacuna não explorada por Safatle, ainda que pistas importantes nesse sentido venham sendo dadas por ele em outras notas. Uma das respostas a essa questão é a via de conformação do Estado integral brasileiro, entendida no sentido gramsciano. Como se sabe, Gramsci indicou que a hegemonia capitalista não é sustentada apenas em base à repressão. Uma ordem estruturada apenas em repressão seria qualitativamente mais débil, e mesmo as mais repressivas necessitam da organização de algum nível de consenso para se consolidarem. Nesse sentido, os sindicatos emergem simultaneamente como um desafio para a partir do qual se transforma a estrutura política, e ao mesmo tempo trazia já o germe de sua decadência com a sua integração ao Estado, processo que a se aprofunda com a formação e disseminação da burocracia sindical. As análises de Gramsci sobre esse ponto mantém elementos de convergência com as de Trotsky, quando afirma que “na época atual os sindicatos não podem ser simples organismos democráticos como na época do capitalismo de livre concorrência e já não podem permanecer por muito tempo politicamente neutros”. Essas definições trazidas para a realidade nacional presente indicam que se o país ainda não se incendiou como o Chile, a despeito das inúmeras razões que têm para tal, é em uma medida relevante por conta da ação da burocracia sindical hegemonizada pelo PT, que atuou como um freio para as mobilizações dos trabalhadores, elemento crucial para a consolidação do golpe institucional de 2016, conseqüente eleição de Bolsonaro, e mais recentemente da aprovação de ataques como a reforma da previdência. Muito embora isso não signifique que aqui estaria inviabilizada a possibilidade de levantes espontâneos, quanto mais profundo esses forem mais terão que se enfrentar com a burocracia sindical e política hegemonizada pelo PT e sua estratégia conciliadora.

Além desse aspecto outro elemento que emerge como uma hipótese pouco provável nas linhas de Safatle sobre o Chile é a possibilidade de que o movimento aberto naquele país tenha como resultado o fortalecimento da ultradireita, tal como teria havido no Brasil após as movimentações de junho de 2013. Essa hipótese assume uma característica algo esquemática na medida em que não observa as grandes diferenças existentes na natureza das próprias reivindicações do movimento chileno. Apesar de tal como no Brasil ter se iniciado contra a elevação do preço das passagens do transporte público, conforme ele avança passa a incorporar reivindicações claramente anti-neoliberais e contrárias à pauta da direita, como o fim da herança pinochetista que ainda sobrevive no regime político chileno, contra a repressão estatal, e a elevação dos níveis de exploração contra a classe trabalhadora. Assim, trata-se de um movimento que avança contra um governo direitista, criando um clima político avesso ao fortalecimento da ultradireita, que ao contrário de se fortalecer viu-se obrigada a suspender a convocatória que havia feito para unir suas fileiras em meio ao crescimento dos protestos.

Claro está que a retomada da luta de classes no Chile aprofunda a polarização, e não se pode descartar como hipótese teórica que uma derrota do movimento, sobretudo através da repressão, poderia abrir caminho para uma contra-ofensiva da direita. No entanto, essa não parece ser a possibilidade prioritária, já que frente à força das manifestações, em especial com a paralisação de 90% dos portos do país em aliança com a “juventude sem medo” o governo Piñera foi obrigado não apenas a retroceder do aumento das passagens, como ainda dar novas concessões na tentativa de desinflar as mobilizações. Assim, a disjuntiva posta pela correlação de forças no Chile indica duas vias mais prováveis. Uma seria o aprofundamento da coordenação e das tendências à auto-organização dos setores em luta, que assim poderiam superar o freio composto pela burocracia sindical da CUT chilena e do PC, e abrir caminho para que a greve geral imponha uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana capaz de reverter a privatização das principais riquezas nacionais colocando-as sob gestão dos próprios trabalhadores e do povo. Outra seria um desvio do movimento circunscrevendo-o para os limites do regime, recompondo-o sob um equilíbrio precário. O Partido Comunista vem trabalhando para a derrota do movimento justamente através de um intento de desvio, ao tentar substituir a queda de Piñera pela ação independente dos trabalhadores por um processo de impeachment, e defendendo que a Assembléia Constituinte se resuma a uma espécie de auto-reforma do regime.

Mas a entrada em cena da luta de classes internacional, tendo o Chile seu epicentro, encontra-se em pleno desenvolvimento. Portanto, o debate sobre suas perspectivas entrelaça-se ao exame das orientações estratégicas postas para que triunfe. Isso nos leva ao terceiro e último ponto de debate com o breve artigo de Safatle no El País. Seguindo o esforço de buscar respostas para a questão do porque as ruas brasileiras ainda não queimam como as chilenas, Safatle indica que aqui a ultradireita assumiu o papel anti-sistêmico que deveria caber à esquerda, e com isso capitalizou parte da insatisfação social, enquanto a esquerda brasileira nega-se a ir além de sua estratégia de conciliação. A saída seria então preparar as condições para a superação desses limites, para de acordo com o próprio Safatle “preparar esses processos insurrecionais. Ou seja, todo esforço em direção a trabalhos transversais de convergência e assunção de uma pauta clara de ruptura econômica.” Nada mais correto que esse diagnóstico do problema, e a conseqüente proposta de superação mediante a preparação das condições de insurreição. O problema é o que se segue como base em Safatle para concretizar esse desafio. Em suas próprias palavras: “Para se ter uma ideia, há dias o candidato democrata Bernie Sanders divulgou seu programa econômico para a próxima eleição norte-americana. Esse programa, de um candidato do Partido Democrata, é infinitamente mais radical do que todos os programas que a esquerda oficial brasileira foi capaz de apresentar. Suas proposições sobre modificação estrutural das relações trabalhistas ao dar aos trabalhadores quantidade igual de assentos nos boards de empresas e garantir que, ao menos, 20% das ações estejam nas mãos dos trabalhadores é simplesmente fora da pauta no Brasil”

Muito embora seja efetivamente digno de nota que Bernie Sanders, que se declara “socialista” esteja ganhando expressão em um país como os Estados Unidos, há que debruçar-se com mais cuidado sobre a proposição de tomá-lo como referência para a tão necessária superação por parte da esquerda brasileira de sua insistência em jamais romper a miséria do possível. Isso porque Bernie Sanders tampouco encarna a ruptura necessária. Primeiro porque apesar de ter elementos de um programa que possa aparecer como mais radicais que o apresentado pela esquerda brasileira, em larga medida os pontos levantados assumem a forma de um intento progressista, mas incompleto, de redistribuição da riqueza. Por exemplo, garantir assento nos conselhos das empresas pelos trabalhadores ou dar-lhes ações não equivale ao controle por parte dos trabalhadores sobre os principais ramos econômicos. Existem muitas experiências, como a realizada por Cardenas nos anos 1930 de inserção dos sindicatos e trabalhadores na direção das empresas nacionalizadas do petróleo, e isso tampouco reverteu em profundidade a estrutura social desigual do país, muito embora fosse uma medida progressista. A gestão completa dos recursos pelos trabalhadores, ligada ao controle social da população sobre as riquezas produzidas, é o que pode solucionar definitivamente a ampla desigualdade social que assola os países da América Latina, e mesmo de nações imperialistas, como são os Estados Unidos. Mas destacamos a necessidade desta lógica em especial para a América Latina porque em um país como o Brasil, ou o Chile, pelos laços de subserviência mantidos com o capital monopólico imperialista, implica na necessidade de medidas que ligue a instauração de uma nova ordem de propriedade econômica socializada, ao combate pela verdadeira soberania nacional em relação ao imperialismo.

Bernie Sanders apresentou um programa que em suma visa limitar os excessos do capital financeiro, em especial o especulativo. Por exemplo, ele propõe dividir os grandes bancos em unidades menores, pois assim acredita que limita seu poder em relação ao Estado. Para isso propõe votar uma Lei Glass-Steagall do século XXI. A Lei Glass-Steagall foi aprovada pelo presidente Franklin D. Roosevelt em 1933 devido à Grande Depressão de 1929, dividindo as instituições bancárias em comerciais e financeiras, e a criação de impostos à especulação financeira, e uma reforma das agências de classificação de risco, que atuam manipulando os índices financeiros de acordo com seus interesses como bem se sabe. De conjunto trata-se de um programa que apesar de algumas medidas progressistas reedita a lógica keynesiana, de limitação da predominância do mercado financeiro e especulativo sobre a economia. Mas que não toca no regime de propriedade privada.

Decerto que, pelo papel cumprido pelos Estados Unidos como principal potência imperialista, a especulação financeira é o modus operandi de grande parte das mazelas e desigualdade social. No entanto, é uma utopia desvalida de base advogar em nome de humanizar o capitalismo nos Estados Unidos propondo uma espécie de retorno aos moldes de um capitalismo menos financeiro. A roda da história não gira para trás. Do que se trata é de superar o capitalismo em seu nexo essencial. E este segue sendo a propriedade privada dos meios de produção, sobre os quais ergueu-se a especulação financeira.

Uma inspiração algo mais valiosa reside bem ao lado de nosso país. Trata-se da Frente de Izquierda y de los Trabajadores (FIT) argentina, integrada pelo PTS, que defende justamente uma saída nesse sentido. Dizendo claramente que a dívida externa que hoje sangra a Argentina é ilegal e não deve ser paga, que o sistema financeiro deve ser nacionalizado sob controle dos trabalhadores para fornecer crédito aos pequenos produtores, a estatização gerida pelos trabalhadores das principais riquezas do país, a FIT oferece um caminho realmente profunda para atacar na raiz as mazelas a que estamos submetidos. Trazendo para o coração do debate presidencial argentino a luta de classes internacional, tendo sido na voz de Nicolás Del Caño o único que colocou a importância do Equador e Chile, a FIT expressou que contrariamente a noção de que tudo se resolve pelo alto são os povos e trabalhadores com suas mobilizações independentes os que podem oferecer uma reversão da atual correlação de forças. Assim, a FIT constitui-se como uma inspiração mais elevada estrategicamente para a esquerda brasileira que Bernie Sanders, pois para organizar a insurreição não basta uma saída um pouco mais radical. É necessária uma saída que vá a raiz das questões. Fica o convite a Vadimir Saftale para que se debruce e comente o que a FIT pode nos dizer sobre o caminho a ser seguido pela esquerda brasileira.


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Simone Ishibashi

Rio de Janeiro
Editora da revista Ideias de Esquerda e Doutora em Economia Política Internacional pela UFRJ.
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