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Trótski, Lênin e o neostalinismo

Simón J. Neves

Trótski, Lênin e o neostalinismo

Simón J. Neves

Na semana passada, foi realizado o evento internacional “Trótski em Permanência” de maneira online, com debates e simpósios entre militantes e pesquisadores do marxismo e do trotskismo. Uma das mesas que aconteceram foi sobre stalinismo e neostalinismo, contando com Sean Purdy, professor da USP e membro do PSOL, Robério Paulino, vereador de Natal também pelo PSOL, e Felipe Demier, professor da UERJ e militante da Resistência/PSOL.

O stalinismo sempre foi, ao longo do século XX, uma corrente bastante forte da esquerda internacional, tendo o PCB, no Brasil, cumprindo um papel de conter as lutas da classe trabalhadora e de fazer alianças com a burguesia nacional. Perante isso, a luta de Trótski, e dos trotskistas, foi a de manter vivo o marxismo revolucionário e combater o stalinismo e sua colaboração de classes.

No entanto, nos últimos tempos se vê um ganho de fôlego do stalinismo na vanguarda brasileira, em especial pela via da UP e de um PCB que, apesar de um certo dinamismo midiático e no movimento estudantil, já não tem sequer uma fração do peso e da importância na realidade nacional que teve no século passado.

O debate sobre o stalinismo diz respeito não só ao passado, mas também a qual estratégia deve ser seguida para que a revolução proletária possa triunfar no presente, mantendo, assim, sua atualidade.

Neste sentido, as 3 falas dos membros da mesa resgataram elementos muito importantes da discussão em relação ao stalinismo. No entanto, apresentaram também problemas em como levar este combate.

Sean Purdy e Felipe Demier terminaram por fazer uma discussão de um ponto de vista quase que puramente histórico, sem apresentar as necessárias conclusões de como levar a frente este combate ainda hoje.

Neste ponto, Demier explicou que, depois da Primeira Guerra Mundial e da Guerra Civil, o proletariado russo se encontrava exausto, e boa parte de sua vanguarda havia morrido nos conflitos. Subsequentemente, o país conseguiu diminuir a escassez extrema que reinara até então, com a fome e o frio matando milhares de pessoas. Este processo termina por elevar a burocracia “acima” da sociedade, transformando-a em árbitro da escassez e da desigualdade, além de minar a resistência do proletariado russo, que buscava algum mínimo de estabilidade depois de ter passado por tantas penúrias e sacrifícios.

É fundamental, ainda, citar o papel da Nova Política Econômica (NEP) na criação desta burocracia. Por força do isolamento e do caráter predominantemente agrário da Rússia, e da necessidade de ganhar tempo até que um novo impulso revolucionário internacional permitisse ao país romper tal isolamento, a NEP significou uma abertura a elementos de mercado na economia soviética e criou setores que tiveram um enriquecimento dentro do país, em especial: i) os kulaks, setores do campesinato que puderam concentrar terras e, inclusive, empregar em benefício próprio o trabalho de outros camponeses, mais pobres; e ii) os chamados NEPmen, em geral do setor de comércio.

Porém, ao contrário da proposta inicial de Lênin, de tratar a NEP abertamente como um "passo atrás necessário", com limites muito claros e prazo de validade, a burocracia stalinista prolongou indefinidamente a NEP, expandiu sem limites e passou a dizer que ela seria parte do próprio caminho ao socialismo (e não mais um "passo atrás). Assim estes setores desenvolveram relações com a burocracia e passaram a desenvolver um papel importante na economia, ampliando uma diferenciação social. Uma demonstração da relação dos kulaks com a burocracia foi a posição adotada pelo stalinismo nos anos 1920, de levantar a palavra de ordem de “camponeses, enriquecei-vos”, em oposição ao estímulo à industrialização pela via dos planos econômicos, posição defendida por Trótski e a Oposição de Esquerda.

A pretexto de evitar uma ruptura da aliança operário-camponesa, Stálin atuou no sentido de aprofundar as diferenças sociais geradas por essa política, naquele então, junto a Bukhárin, expressando os interesses dos kulaks e dos NEPmen, contra os quais a política da Oposição se chocava. O fortalecimento desses setores sociais levou, entre outras coisas, ao fim da democracia interna no Partido Bolchevique. Por isso, é um erro identificar que o stalinismo como algum tipo de consequência da política leninista, como faz não só o próprio stalinismo, buscando apresentar esta suposta continuidade de maneira positiva, mas também setores anti-bolcheviques, colocando de maneira negativa.

A partir disto sei pode se entender as insuficiências, mais profundas, da fala de Robério Paulino. Dentro deste contexto que se inserem suas posições de ver nos “excessos de burocratismo” de Lênin um germe da burocracia stalinista.

Ainda que ele não coloque a segunda como consequência única e exclusivamente da primeira, Paulino irá empreender uma revisão da teoria marxista em relação ao Estado que vai no sentido de aproximar a política de Lênin da de Stálin, ao dizer que Lênin, após a Revolução Russa, vai rever sua posição do livro O Estado e a Revolução, abandonando sua posição em relação ao definhamento do Estado. A demonstração desta suposta mudança de posição seria o fato de que, durante o período leninista, o Estado soviético teria “crescido” e não caminhado no sentido de desaparecer. Paulino diz, em seu artigo, presente no livro que ele divulgou durante a mesa, “O Estado como agente de opressão e civilização”:

Se o Estado era apenas um mal, um elemento de opressão, por que os dirigentes soviéticos dos primeiros anos, mesmo antes da burocracia stalinista, ou seja, ainda no tempo do Lênin consciente, não começaram a reduzi-lo assim que consolidaram o poder após vitória na Guerra Civil, mas sim tiveram que o agigantar? [...] O crescimento do estado na formação nascente era uma necessidade imperiosa para se reconstruir, industrializar, modernizar e armar o país para enfrentar novas agressões. Ele iria crescer de toda forma, mesmo sem Stalin e a burocracia. [...] Logo no início da década de 1920, os bolcheviques abandonam a visão expressa por Lênin em O Estado e a Revolução, de redução gradativa do Estado, e passam a defender um Estado forte. Lênin, e mesmo Trotsky, muito cedo mudaram sua visão parcial e utópica sobre o papel do Estado naquele contexto. E foi Lênin, ainda em vida, que propôs fortalecer, e muito, o Estado.

A questão que se coloca, no entanto, é que o definhamento não se trata de uma diminuição linear do tamanho do Estado, ocorrendo por fora da luta de classes internacional e do contexto de isolamento da Revolução, mas sim que o papel do Estado segue sendo o de opressão de classe, mas da classe operária contra a burguesia. O seu definhamento ocorre, então, da própria perda de sentido de sua função, em um contexto de extinção da divisão da sociedade em classes, e não de uma ação de diminuir ativamente suas funções, o que nos levaria a crer que o neoliberalismo seria a ante-sala do fim do Estado.

Sua visão do “lado positivo” do Estado, inclusive do Estado burguês, termina por ser funcional ao reformismo e a visões puramente anti-neoliberais, mas não necessariamente anticapitalistas, que vêem o Estado, em si, como indutor de um desenvolvimento e provedor de serviços públicos, por fora da luta de classes. Em outras palavras, Paulino considera que o Estado oferece serviços como educação, saúde, transporte, eletrificação, coleta de lixo, etc., etc., porque este é o seu papel, enquanto "agente civilizador" - e não porque, por um lado, tais serviços são funcionais e úteis para a acumulação capitalista e, por outro, porque a classe trabalhadora luta pelo reconhecimento de direitos e de um padrão de vida minimamente digno, obrigando o Estado a fazer concessões e internalizar uma dada correlação de força entre as classes sem perder, com isso, seu caráter essencial de instrumento de opressão de uma classe por outra.

O neostalinismo

Outro ponto importante de debate na mesa foi a questão do neostalinismo, que ganha tração em setores da juventude atualmente. Apesar de uma visão negativa em relação a reabilitação da figura de Stalin, os diagnósticos de por que surge este “novo tipo” de stalinismo passaram por fora de um ponto muito central, qual seja, a deriva estratégica pela qual passam diversas tradições trotskistas, em especial após a queda da URSS e dos estados do Leste Europeu.

Um caso paradigmático desta deriva é o PSTU. Este partido chegou a ser a maior corrente do trotskismo brasileiro, com um importante peso na vanguarda, em especial no movimento sindical. No entanto, sua política a nível nacional se caracteriza por uma adaptação a burocracia sindical, e a nível internacional, caracterizou-se, em muitos casos, por uma adaptação a política imperialista em processos como a Primavera Árabe, quando considerou uma “revolução democrática triunfante” a derrubada de Kadafi pelas forças da OTAN na Líbia, ou na revolução colorida na Ucrânia, quando apoiou uma oposição direitista e com peso do fascismo ao então governo pró-Rússia.

Esta política culmina com o apoio ao golpe institucional no Brasil, em 2016. Disso ocorrerá uma cisão onde quase metade da organização rompe e termina formando uma nova corrente, a Resistência. Esta corrente será a contracara da política sectária do PSTU, passando um processo bastante grande de adaptação ao próprio petismo, considerando quase uma heresia não apoiar Lula desde o primeiro turno nas eleições de 2022.

Cada um a seu modo, estes exemplos, que não são os únicos, demonstram que estas correntes abandonaram princípios básicos do marxismo revolucionário, como a independência de classe e o anti-imperialismo, levando a que não sejam vistos como uma real alternativa por diversos setores da vanguarda operária e da juventude.

Nisto, se abre espaço para que o neostalinismo ganhe espaço, mesmo que também termine se adaptando ao reformismo, pois possui uma “estética radical”, com a reivindicação dos símbolos soviéticos, bem como uma aparência de anti-imperialismo devido a posição campista de declarar apoio quase irrestrito a qualquer regime que se oponha, ainda que de maneira capitalista, aos Estados Unidos, como a China, o ditador sírio Assad, ou o governo chavista na Venezuela, que se mantém, terminado a conjuntura econômica internacional dos anos 2000, apoiando-se quase exclusivamente na repressão ao povo pobre e trabalhador.

Em sua fala no debate, Demier identifica corretamente essa visão como fazendo uma substituição da luta de classes pela luta entre Estados nacionais. No entanto, ele irá identificar que o crescimento do neostalinismo se deve a falta de referências teórico-políticas, que ocorreria no período pós-queda da URSS, e que isto levou toda uma geração de jovens ativistas a ter “aversão aos estudos” e a buscar respostas simples, posição que seria fortalecida pelas redes sociais.

Ironicamente, a própria posição de Demier, membro da Resistência, termina sendo uma resposta simples à questão, além de marcadamente elitista, e, não por acaso, passa por fora de debater a questão da deriva estratégica, o que tornaria necessário debater a atuação de sua própria corrente.

Assim, há que se debater qual o caminho para o real enfrentamento ao fenômeno neostalinista, que busca apenas dar uma nova roupagem à colaboração de classes e a burocracias que se baseiam na opressão aos trabalhadores. Isso fica demonstrado pelo apoio de correntes como UP e PCB a prefeitura de Belém, que se une com a burguesia e ataca direitos dos trabalhadores, e regimes como o chinês.

Esse caminho passa por recuperar os fios de continuidade do marxismo revolucionário, o trotskismo, fazendo um profundo balanço das diferentes tradições trotskistas que nascem após a explosão da IV Internacional, no pós-guerra, para chegar a posições verdadeiramente anti-imperialistas, anti-burocráticas e revolucionárias, e poder construir uma real alternativa entre a juventude e os trabalhadores.


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