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MARXISMO | Stalin, sem moralismos?

Há cerca de um mês o professor José Paulo Netto, um dos principais divulgadores do pensamento de Lukács no país e nome respeitado no marxismo da academia brasileira, esteve em uma mesa em que comentava sobre o fenômeno do stalinismo e ao final reivindicava a busca de uma concepção teórico-metodológica que desse conta do fenômeno, mas curiosamente terminava convocando que essa análise deveria se dar “sem moralismos”.

quarta-feira 1º de novembro de 2017 | Edição do dia

José Paulo ao utilizar essa expressão buscou se contrapor especialmente a visão que busca “demonizar Stalin” (utilizando suas palavras), o que esteve com muita ênfase em seu discurso – ainda que também tenha falado de modo mais breve contra a bibliografia que quer reabilitar Stalin no país.

Ou seja, advogava uma posição de “crítica equilibrada” do stalinismo, analisando o fenômeno que está para além da “teoria psicológica do poder” que coloca a crítica apenas na figura de Stalin, e nesse sentido, observando o significado do stalinismo ligado aos fatores históricos (como a guerra civil, isolamento da revolução etc). Por isso, “não dá pra demonizar Stalin”, porque “(para o bem e para o mal) Stalin é um personagem absolutamente importante do século XX” e precisamos encontrar uma teoria para fazer a análise histórica.

O que é curioso nisso? Dois aspectos essencialmente, um político e outro teórico, que nos parecem muito fora do lugar na intervenção de José Paulo Netto.

Do ponto de vista político, é muito chamativo que em meio a comemoração dos 100 anos da Revolução Russa, em que o nome do comunismo ficou manchado por gerações (e ainda segue) por causa das imensas barbaridades do stalinismo, José Paulo fale em analisar “sem moralismo” esse fenômeno. Aonde quer chegar?

O que seria analisar “sem moralismo” o assassinato de Leon Trotski, que JPN chama de um ato “criminoso”, bárbaro acrescentaríamos, a mando de Stalin? Não se tratava de “deslize”, um “exagero” de Stalin – seria uma visão muito superficial do fato, mas a investigação minuciosa da história já comprovou que esse assassinato era uma peça importante na estratégia stalinista em meio a Segunda Guerra Mundial.

O que seria analisar sem moralismo os Processos de Moscou de 1936, em que o que restou da vanguarda da revolução e mesmo setores outrora adeptos da burocracia foram violentamente fuzilados? O que seria analisar sem moralismo a perda de representatividade dos sovietes que foram relegados ao plano histórico com a imposição ditatorial de todos os ditames da burocracia, dirigida por Stalin, contra a ação democrática e genuína das massas operárias? O que seria analisar sem moralismo o fim dos direitos históricos conquistados para as mulheres quando Stalin chega ao cúmulo de declarar em 1936 que “O aborto que destrói a vida é inadmissível em nosso país. A mulher soviética tem os mesmos direitos que o homem, mas isso não a exime do grande e nobre dever que a natureza lhe assinalou: é mãe, da vida”? O que seria analisar sem moralismo o regime burocrático que feriu de morte a alma de brilhantes poetas como Maiakoviski (levando ao suicídio) ou fuzilou e exterminou artistas e sua liberdade criativa, impondo de modo totalitário a estética única do realismo socialista?

Analisar sem moralismo inclusive é analisar estrategicamente a política internacional na era Stalin, em que a sucessão de medidas catastróficas sob a bandeira do “socialismo num só pais” levou a derrota de processos decisivos já desde a Revolução Alemã de 1923, mas passando pelo comitê anglo-russo de 1926 (levando a derrota a greve britânica), a revolução chinesa de 1925-1927 (atuando contra os sovietes e terminando por fortalecer Chiang Kai-shek), depois o período ultraesquerdista na Alemanha em 1933 (levando a ascensão de Hitler), a defesa da Frente-Popular no ascenso revolucionário na França de 1934-36 (levando a derrota do ascenso), o afogamento da Revolução Espanhola em 1936 (levando a ascensão do fascismo) e muitos outros exemplo de que estrategicamente o stalinismo significou, senão a explicação última de todas essas derrotas, uma determinação muito importante, um enorme freio internacional para as lutas do proletariado. Ou seja, não se pode falar em tomar em conta o “isolamento da revolução” por fora da própria (não) política internacional de Stalin.

Ou seja, essa é uma primeira pergunta que queríamos deixar para José Paulo Netto: a análise “sem moralismo” do stalinismo não deve levar aos intelectuais a condenarem incondicionalmente as brutalidades cometidas pelo stalinismo e por Stalin e desvinculá-las absolutamente da palavra comunismo? O que a sociedade de produtores livremente associados reivindicada por Marx tem a ver com a reação termidoriana ocorrida na URSS?

Acreditamos que sem fazer essa disputa enorme contra a ideologia burguesa que quis transformar o stalinismo no “socialismo real”, “socialismo prático” será impossível reapaixonar as novas gerações em nome do comunismo, das verdadeiras ideias defendidas pelos fundadores do socialismo revolucionário.

Agora entramos no problema teórico: José Paulo comenta já no começo de sua exposição que tem muitos amigos trotskistas e em seguida condena o que seria a “teoria psicológica do poder”, e o que seria isso? Ao que ele explica em seguida, seria atribuir a personalidade individual de Stalin todos os equívocos do stalinismo, sem analisar as bases materiais do fenômeno, que em certo sentido vão muito para além de Stalin. Com isso, pelo que entendemos, José Paulo Netto quer desqualificar a “análise dos trotskistas”, porque supostamente focam na análise da figura de Stalin.

Não conhecemos os amigos trotskistas de José Paulo Netto e o que opinam sobre esse ponto, mas conhecemos muito bem a análise de Trotski (infelizmente, essa sim, muito desconhecida nos meios acadêmicos e completamente vulgarizada), e não resta dúvidas que em diversas oportunidades, mas sobretudo numa das obras principais de Trotski de análise do stalinismo, A Revolução Traída, a última coisa que ocorre a sua análise científica é qualificar o fenômeno do stalinismo pela mera análise individual ou psicológica, ainda que naturalmente a individualidade e a psicologia tem sim por vezes importância bastante grande como sabemos.

Mas Trotski escreve precisava na A Revolução Traída, respondendo a pergunta costumeira e enviesada de “por que Stalin venceu Trotski” particularmente retirando completamente o conteúdo individualista e personalista da pergunta e dando uma dimensão histórica e material para o fenômeno, que precisamente para dar uma dimensão histórica chamou, em analogia com a revolução francesa, de termidor soviético.

Ali, Trotski sustenta que em todos os processos revolucionários o problema da contrarrevolução e da reação sempre esteve presente e na Rússia não foi diferente. Apoiadas no esgotamento da guerra civil, nas contradições provenientes da Nova Política Econômica, do isolamento da revolução, na morte de boa parte do melhor da vanguarda operária na guerra civil, no debilitamento da classe operária com quase metade de suas forças morta na Guerra Mundial e guerra civil e mesmo no falecimento de personalidades fundamentais da revolução como Lenin, a soma desses distintos fatores cria um caldo de cultura propício para que se fortaleçam as tendências burocráticas no Estado e no partido.

Sem a expansão da revolução em âmbito internacional era completamente previsível que enormes forças sociais burocráticas, conformando uma casta que se isola dos interesses das massas e começa a atuar contra elas, se constituiria na Rússia, e o papel do partido seria compreender esse fenômeno e criar os anticorpos necessários para travar a disputa necessária contra essas pressões burocráticas, sabendo que não seriam resolvidas com poucas medidas administrativas, mas compreendendo a luta de classes que se dá no plano interno e alentando as tendências que atuam no sentido da revolução dentro da revolução.

Como é amplamente sabido, Lenin morreu travando uma batalha feroz contra Stalin e a burocracia que recém se conformava, em documentos e mesmo no que ficou conhecido como seu testamento, em que escrevia que:

“Stálin é brusco demais, e este defeito, plenamente tolerável em nosso meio e entre nós, os comunistas, se coloca intolerável no cargo de Secretário Geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem a forma de passar Stálin a outro posto e nomear a este cargo outro homem que se diferencie do camarada Stálin em todos os demais aspectos apenas por uma vantagem a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais correto e mais atento com os camaradas, menos caprichoso, etc.” (Lenin, testamento político)

O testamento se dá no contexto preciso dos últimos textos da vida de Lenin em que desdobra grande energia contra a burocratização que começava a ocorrer no aparato do partido, momento no qual Stalin tornou-se secretário geral, lembrando que Lenin escreve um dos últimos, senão último texto, seu célebre “É melhor pouco, porém melhor”, em que pede parar agregar a direção bolchevique ao menos 50, senão 100 bons operários para evitar a burocratização.

E justamente a análise de Trotski é a mais abarcativa em compreender o fenômeno histórico do termidor soviético e todas as consequências do que ficou conhecido como stalinismo. Com sua particular lucidez, Trotski na análise desse processo chega mesmo a dizer que não foi Stalin quem promoveu a burocracia, mas, ao contrário, foi a burocracia que escolheu Stalin:

"Seria ingênuo acreditar que Stalin, desconhecido pelas massas, surgiu repentinamente dos bastidores armado de um plano estratégico completamente elaborado. Não. Antes que ele previsse seu caminho, a burocracia já o havia adivinhado. Stalin lhes conferia todas as garantias desejáveis: o prestígio de um velho bolchevique, um caráter firme, uma visão estreita, vínculos indissolúveis com a maquinaria política como a única fonte de sua influência pessoal. A princípio, Stalin se surpreendeu com seu próprio êxito. Era uma recepção calorosa de uma nova camada dirigente que tratava de se liberar dos velhos princípios assim como do controle das massas, que necessitava de um árbitro confiável em seus assuntos internos. Figura de segundo plano ante as massas e ante a revolução, Stalin se revelou como o chefe indiscutível da burocracia termidoriana, o primeiro entre os termidorianos (Trotski, A Revolução Traída – capítulo V)"

Ou seja, Trotski inverte qualquer análise “psicológica do poder” e crava como ninguém as bases materiais da reação termidoriana. Isso não quer dizer que os indivíduos e as personalidades sejam um produto passivo das circunstâncias (todos nós lemos as Teses sobre Feuerbach - e acreditamos que partimos desse acordo), de modo que Stalin sim foi essa peça fundamental, tomou suas “decisões” e deve ter sua política e as bárbaras práticas totalitárias, os fuzilamentos, as perseguições, a reação contra as massas operárias, as mulheres e os artistas enfim, todos os elementos que compõe as práticas particulares de Stalin e dão corpo ao fenômeno de reação termidoriana do stalinismo devem ser amplamente condenados, de modo firme e sem hesitação.

Esse debate que propomos com a visão José Paulo Netto nos parece fundamental especialmente em tempos em que desgraçadamente correntes importantes de pensamento e mesmo organizações que carregam o nome de “comunista” no nome, como o PCB no Brasil, mantem ainda uma relação no mínimo ambígua com o stalinismo (e nem falar do PCdoB - esse sim abertamente stalinista). Evidentemente, aqui portanto, não se trata de nenhum preciosismo acadêmico, mas é nosso dever pensar o fenômeno do stalinismo em todas as suas determinações e de modo muito crítico se queremos resgatar uma perspectiva marxista que possa fazer frente aos desafios da revolução no século XXI.

Ou seja, a crítica implacável é a nossa única opção se quiser falar de Stalin e do stalinismo, sem moralismos…

Veja o vídeo de intervenção de José Paulo Netto no seminário da Boitempo sobre os 100 anos da Revolução Russa:




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