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LITERATURA | Sobre o romance Mefisto, de Klaus Mann

Mefisto, escrito em 1936, foi o terceiro romance que Klaus Mann (1906-1949) escreveu durante seu exílio da Alemanha nazista. Trata-se de um retrato absurdo do ator Gustaf Grundgens, que na juventude defendeu o comunismo, e depois fez carreira na Alemanha de Adolf Hitler.

sexta-feira 25 de setembro de 2015 | 19:27

Mais do que o retrato de um ator em particular, Mefisto é uma crítica brutal a todos os intelectuais e artistas que traiçoeiramente se vendem em troca de dinheiro e fama. Um soco na cara de todo artista que se considera neutro apesar dos patrocínios e favores de patrões, políticos e militares. Mefisto quebra a máscara desta suposta neutralidade ao apresentar um ator que caminhou sobre cadáveres em nome do sucesso.

1920. Hendrik Hofgen, filho de uma família classe média alemã é ator do Teatro de Arte de Hamburgo, um teatro de província que apresenta grandes textos da dramaturgia mundial, mas, devido às pressões comerciais é obrigado à se adaptar ao gosto médio pequeno burguês da época com seus dramas e comédias água com açúcar.

Hofgen é um ator dedicado, trabalha dezesseis horas por dia. Prefere os clássicos, mas executa seu trabalho com habilidade mesmo na mais banal produção. Faz o que tem que ser feito. E assim constrói sua carreira de ator conhecido na província.

Rachaduras no ovo da serpente. Os bandos nazistas se movimentam e Hendrik Hofgen não é antissemita e está animado pela Revolução Russa de 1917.

Na mesa do café, Hofgen discursa, rápida e apaixonadamente, sobre a exploração capitalista, o teatro como instrumento político e a necessidade de uma ação vigorosa na área estético-politica e termina prometendo o início sempre adiado dos ensaios de um teatro revolucionário. Um dia ele vai começar. E a cada semana um discurso contra o capitalismo e um pretexto para não lutar. A promessa de um teatro revolucionário funcionava como desculpa para encenar dramalhões pequeno-burgueses.

Seu maior sofrimento é estar preso a um teatro provinciano. Berlim vive sem o seu talento, os grandes teatros e os estúdios de cinema lucram muito sem Hendrik Hofgen e isto o consome. Fama na metrópole é um objetivo quase em si para este ator desconhecido do grande público. Ele quer o estrelato e para isso prefere recomeçar a carreira do zero em Berlim.

Torna-se marido de Bárbara Bruckner, filha de um importante historiador. Este casamento trás vantagens materiais, além da felicidade. O velho Bruckner tem grande influência nas rodas políticas e culturais e consegue indicar Hofgen a uma companhia teatral berlinense.

Deixa o Teatro de Arte de Hamburgo e vai viver a dura vida na capital. Salário baixo. O ator provinciano indicado por um importante acadêmico está disposto a conquistar um lugar ao sol no teatro burguês e faz o que tem que ser feito para alcançar tal objetivo. Sacrifícios seriam inevitáveis, desde que se quisesse subir.

Hendrik Hofgen faz seu trabalho bem feito e busca relações no meio artístico empresarial. Artistas-Patrões-Políticos. Os jornais começam a falar do talentoso ator que, segundo Klaus Mann, sabe preparar muito bem a perversão como quitute para a diversão dos ricos.

Hofgen, que nos anos 1920 prometia um Teatro Revolucionário, ao final da temporada de 1929- 1930 é admirável para a opinião da crítica e do público endinheirado dos teatros burgueses de Berlim. Tudo lhe saia bem. Recebe um bom salário agora, alugou um amplo apartamento e comprou uma Mercedes Benz. Atua no cinema e é disputado por grandes produtores. Um êxito comercial. O sucesso, o belo sonho convertera-se em realidade. A situação não poderia ser melhor. Será que existe crise? Haverá pessoas desempregadas? Existem operários degolados ou com os crânios esmagados pelas botas de bandos fascistas? Hofgen segue seu rumo, favorito da indústria pesada e do alto comando do Exército.

1930, 1931, 1932. Aplausos ao grande ator enquanto Adolf Hitler promete publicamente que cabeças vão rolar. No palácio, latifundiários tecem intrigas, o chefe de polícia manda atirar contra os trabalhadores e as promessas de punição e destruição tem permissão para circular diariamente sem interrupção. Mas Hendrik não vê nada, não ouve nada, não nota nada. Conhece apenas palcos, estúdios de cinema, camarins e palacetes. Os nazistas preparam o golpe e Hofgen vive mais uma estreia.

Os nazistas vão tomar o poder e o grande papel de Hendrik Hofgen na temporada de 1932/1933 será Mefistófeles, numa nova produção de Fausto com que o Teatro Estatal vai celebrar o centenário da morte do escritor, poeta e dramaturgo alemão Johann Wolfgang Goethe (1749-1832).

Hofgen encontrava-se na Espanha quando Hitler se tornou chanceler na Alemanha. Hendrik fazia o papel de um elegante vigarista num filme policial. Tomou um susto quando comprou os jornais e viu a notícia. Hitler é um fanfarrão! E eu que tinha a mais absoluta certeza de que os nazistas não deviam ser levados a sério.

Atacara os nazistas e sabia que era tarde demais para pedir desculpas. Evitou o pânico, pois para o ator, Hitler se tornou chanceler, mas nunca se tornará um ditador. Os socialdemocratas e os comunistas iam resistir, talvez pela luta armada. Era o que previa Hendrik em seu quarto de hotel na Espanha. Mas, supondo que Hitler se mantenha no poder, que é que ele, Hendrik Hofgen, devia temer da parte deles? Hofgen não é judeu e não pertence a nenhum partido político. Ele é alemão e por isso vai ser perdoado. Quem ficar bem quietinho talvez não sofra muito...

Berlim se entusiasma com o Führer e o célebre artista alemão acha mais aconselhável demonstrar simpatia para com o regime nazista. É mesmo preciso que implore o perdão desse bando de assassinos?

Hendrik é recomendado à uma famosa atriz alemã, casada com um oficial aviador nazista, um dos oficiais nazistas mais poderosos do III Reich e admirador de dramas, operetas e óperas. É perdoado. Fez as malas e correu para uma agência de viagem a fim de reservar um leito no carro-dormitório do trem para Berlim. Precisa se adaptar ao novo ambiente e mostrar sua capacidade de colaborar. Com um profundo suspiro, Hofgen encostou-se ao assento de couro de sua Mercedes. Assume o papel de amigo do regime.

Reestreia de Fausto no Teatro Estatal. Presença do primeiro-ministro que durante o intervalo da peça pediu a Hofgen que comparecesse ao seu camarote. O diálogo entre o ator e o oficial nazista foi animado. Neste dia selam um pacto. Agora me sujei, pensou Hendrik perplexo. Na minha mão surgiu uma mancha que jamais conseguirei limpar. Acabo de me vender. Estou marcado!

Artistas se apóiam na espada do carrasco criando todos os dias novos fantasmas. Festas e execuções. Não é preciso dizer que também colecionam dinheiro. Hendrik é protegido por um oficial nazista que adora teatro e bombardeios. Hofgen é convidado especial no palácio da morte. Só sucesso! Agora serei grande. Faz parte do grupo de artistas do III Reich. Recebe altos salários e tem fama. Mora num palacete, com parque, quadra de tênis e garagens espaçosas. Coleciona cavalos e automóveis. Sou um artista! – bradou Hendrik com um brilho chamejante nos olhos. O ator nacional caminha sobre cadáveres. Este é o seu sonho de verão, fantástico e sangrento.

Assim aconteceu a terceira ascensão de Hendrik Hofgen. A primeira, mais sólida e merecida, foi na cidade de Hamburgo no Teatro de Arte. A segunda foi o triunfo sobre o mercado nos palcos de Berlim e a terceira foi a aliança com o regime nazista. Assim como muitos, Hofgen fez de tudo para ser um artista famoso. Celebrou patrões e genocidas. Mas ele se considera apenas um ator.




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