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DOCUMENTÁRIO | Sobre o documentário "Jesus Camp", ou como se transforma uma criança em fundamentalista

Uma verdadeira preciosidade para os estudos atuais sobre a “formação de fundamentalistas cristãos” desde a tenra idade nos EUA. Detalhadamente a partir de um acampamento de verão num final de semana. “Jesus Camp” (Direção de Heidi Ewing e Rachel Grady, 2006) é de grande importância no entendimento de muitas coisas na política dos Estados Unidos e de como ao mundo exporta suas “produções simbólicas”.

Romero Venâncio Aracajú (SE)

domingo 21 de agosto de 2016 | Edição do dia

No Brasil esse documentário vira aprendizado. As “famílias cristãs renascidas” dos EUA renascem por estas bandas com uma força política das mais nefastas e visíveis socialmente. Já temos uma década ou mais, no Brasil um crescimento assustador de um “fundamentalismo cristão” (protestante e católico) sem precedentes na história religiosa brasileira. E mais grave: com força política no congresso nacional e espalhados pelo Brasil a fora.

Da pedagogia do fundamentalismo cristão. No filme fica claro a maneira de trabalhar da protagonista do documentário: ocupar diuturnamente todos os espaços das crianças com discurso aterrorizador do “papel do diabo” na vida delas... Não se forma um fundamentalista cristão sem o medo de um mítico inferno e suas consequências nas vidas das pessoas... Isto é tão antigo quanto o próprio Cristianismo. Mas ao lado disto a um termo extraordinário utilizado por Terry Eagleton no seu livro: “A morte de Deus na cultura” (Record, 2016) que é o de “psicopatia do entusiasmo” – pra mim, uma chave das boas para entender o sucesso relativo dessas práticas fundamentalistas. Espumam de raiva, fazem discursos acalorados citando a Bíblia aleatoriamente e exemplificando tudo de maneira didática e aparentemente particularizado. Há toda uma preparação para isto. Não se trata de “amadores da fé”, mas de armadores da fé...

Todas essas práticas envolvem muito dinheiro e relações políticas nem sempre explicitas aos olhos dos simples fieis e muito menos das crianças em processo de doutrinação. Essa “psicopatia” funciona num primeiro momento da abordagem do tema e na sua justificação. Por exemplo, há um momento no filme em que a pregadora faz toda uma “análise” de como o Harry Potter é um grande inimigo de Deus. Os “bruxos” são um entrave a “fé verdadeira”. São pagãos, são do mundo e dispensam o poder do deus cristão, assim pensa a pregadora. A ironia que nos ajuda é a forma como a câmara passeia sobre os olhares das crianças enquanto fala a pregadora e de repente, aparece um menino tomando na boa “Pepsi Cola” enquanto se fala mal de bruxos, etc... Só uma pessoa muito ingênua não perceberia a ironia: entidades metafísicas são mais danosas do que esse xarope adocicado quimicamente e de quinta categoria que ferra a saúde de qualquer “cristão”. Isto, não é permitido ver. Harry Potter e inofensivo perto dessa alimentação fast-food que povoa o filme em várias cenas e a base do que comem essas crianças de classe média.

Da educação na concepção fundamentalista. No filme, um grupo de crianças não vão à escola pública dos Estados Unidos. Os pais dão a própria formação delas em casa e de acordo com sua religião. O medo? De que as crianças aprendam a “teoria da evolução” na escola. Que saibam de noções de ciência moderna. É triste ver no filme uma mãe justificando tudo isto em nome desse jesus que ela acredita. O filme documenta o exemplo de um menino que não vai à escola e nem se interessa, porque já acredita que a Bíblia tem toda fonte de informação que precisa para viver nesse mundo. Não precisa da escola ou da ciência (geralmente, vista coo inimiga da fé). O fundamentalismo cristão dos EUA está em pede guerra com Darwin, Marx e Freud a décadas a fio. Prepara seus fiéis na mais ridícula ignorância dos que estes homens descobriram e fundamentaram. Simone de Beauvoir então, é enviada direta do diabo para enganar as mocinhas direitas e transformá-las em maldosas e ateias feministas. É preciso defender os valores tradicionais que estão enraizados na Bíblia.

Da leitura fundamentalista da Bíblia. Tratamos desse tema no ensaio “Fundamentalismo religioso, direitos humanos e democracia” no livro-coletânea “Conhecimento e linguagem” (Redes editora) onde se destacava a história do fundamentalismo cristão dos EUA a partir do Século XIX e de sua peculiar leitura da Bíblia. No filme é bastante claro isto. A Bíblia é citada várias vezes e sempre na sua maneira leitura, ao pé da letra. Não existe possibilidade alguma para uma leitura mediada a partir da história ou da crítica das formas. O texto é tomado como sagrado e na sua literalidade. Obviamente, na literalidade que interessa ao grupo ou ao pregador ou pregadora de plantão. Tudo e todos os fenômenos naturais são “explicados” à luz de textos bíblicos. Todo o destino humano do nascimento a morte é explicado sempre de um ponto de vista religioso. Tudo que acontece no presente é explicado religiosamente. São considerados abominações a homossexualidade, a transexualidade, a união civil de pessoas do mesmo sexo e todas as questões de gênero discutidas ao longo da segunda metade do Século XX.

O filme se passa nos EUA e num momento de acampamento de verão voltado exclusivamente para “avivamento cristão”. Mas estas práticas se espalham cada vez mais na América Latina e Caribe. Chega às ruas, aos parlamentos, às cortes, às escolas e universidades. Vivemos um momento de considerável avança de ideias fundamentalistas que estão se tornando uma específica “teologia-política” de projeção massiva entre as camadas populares do continente americano como um todo. Uma boa parte da esquerda está perdida diante do fenômeno e usando ainda categorias que não mais dão conta do fundamentalismo nas suas especificidades do Século XX. Termino com uma citação do marxista inglês Terry Eagleton sempre atento a esses fenômenos no seu necessário livro: “A morte de Deus na cultura”:
“Hoje, uma das mais patentes refutações da alegação de que a religião desapareceu da vida pública chama-se Estados Unidos. A modernidade tardia desenvolve algumas práticas simbólicas em relação à propriedade pública. Entre tais práticas está a religião, que sob a forma dos diferentes revivalismo e fundamentalismos torna-se novamente força política a ser levada em conta” (P. 12).




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