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LITERATURA | Será que existe uma literatura de esquerda?

Seja nos tempos da pena ou na atualidade digital, escrever sempre foi um ato político. Particularmente no âmbito da literatura, a obra em sua capacidade de ler a realidade social e entrar em choque com a moral estabelecida e o poder instituído, levou mais de uma vez poetas e romancistas e serem considerados inimigos do Estado. Mas se escrever implica em necessariamente arriscar o pescoço, literatos amantes de almofadas não reconhecem esta escolha.

segunda-feira 15 de junho de 2015 | 00:00

Para a corja de pequenos burgueses de uma figa, que leem um romance da mesma maneira como quem veste roupa de marca ou saboreia chocolate caro, literatura e política nunca se encontram. Num Brasil cortado de cabo a rabo pela miséria econômica, essa gente compõe os exilados das livrarias grã-finas e das torres de marfim forradas com louros e letras. Entretanto, do lado oposto, e até o presente momento em número reduzido, existem leitores e escritores revolucionários. É natural que ambos façam uma velha pergunta: haveria uma “literatura de esquerda"?

Antes de se tentar problematizar a expressão "literatura de esquerda", é preciso considerar como andam as atividades literárias dentro da esquerda. Se existe uma coisa que definitivamente ajuda a irrigar o sangue do movimento político revolucionário em sua dimensão cultural, é a publicação de poemas, romances, contos e textos teóricos que dão sustança para a crítica literária marxista. Mobilizar editoras e periódicos de esquerda para esta tarefa, não menos urgente que uma assembleia de trabalhadores ou uma eleição no sindicato, possibilita aos militantes comunistas tanto a assimilação de obras referenciais quanto a leitura de textos dos novos escritores revolucionários. Dentre estes últimos, gostaria de apontar para a importância dos poemas de Luiza Romão, publicados neste jornal. A agilidade verbal contida nos versos da atriz e poetisa de São Paulo, articula-se com imagens provocadoras, cujo efeito só pode ser o de despertar no leitor a vontade de romper com a ordem vigente. Portanto, dentro da imprensa operária, um poema pode ser em si tão eficaz quanto um artigo sobre a conjuntura política nacional.

Numa organização revolucionária que entende o valor da criação artística empenhada em contribuir com uma sensibilidade enraivecida, formação política e literária, militância e debate estético não se separam. Mas passando agora para uma reflexão sobre as implicações técnicas e ideológicas das manifestações literárias que se opõem com toda energia ao mundo burguês, é preciso tomar alguns cuidados com o termo “esquerda". Tais cuidados não são feitos por mera prudência política, mas, ao contrário, para preservar o que a literatura possui de revolucionário a partir de si mesma. André Breton, numa conferência pronunciada em Praga no ano de 1935, fez a seguinte indagação: “Rigorosamente falando, existe, ou não, uma arte de esquerda capaz de defender-se, ou seja, apta a justificar sua técnica ’avançada’ pelo simples fato de achar-se a serviço de um estado de espírito de esquerda?". Na ocasião desta conferência, Breton questiona a expressão "arte de esquerda", chamando atenção para o fato de que não adianta nada uma obra pretender-se politicamente de esquerda se sua técnica estiver em descompasso com as transformações expressivas da modernidade. Logo, não basta que o conteúdo de uma obra de arte seja “de esquerda" para afirmar que esta contribui com a revolução socialista.

O perigo que mora na expressão “literatura de esquerda" está na desconsideração da dinâmica interna da criação literária. Preso a uma força tarefa, acorrentado em seus recursos de linguagem para embutir artificialmente a sua ideologia política, o escritor de esquerda corre o risco de equivocar-se politicamente e artisticamente. Ou seja, fazer com que a mensagem política entre forçosamente letra a dentro não contribui nem com a literatura e nem com a revolução; afinal de contas, o resultado literário não passa de uma porcaria mal escrita. É este tipo de prejuízo que os stalinistas colocaram sobre a chamada “literatura de esquerda brasileira". Tratando-se do chamado romance social, a prosa não pode ser conduzida por uma estrutura melodramática na qual burgueses e proletários são apresentados numa débil narrativa maniqueísta. Um célebre caso histórico que nos ajuda a entender este problema, encontra-se na tesourada que o PCB (Partido Comunista Brasileiro) deu na escritora Rachel de Queiroz.

Em 1932 Rachel de Queiroz era um dos principais expoentes do chamado Romance de 30. Inquestionavelmente o amadurecimento da nossa prosa moderna deu-se com a literatura da década de trinta: as condições de vida dos trabalhadores da cidade e do campo são expostas em romances que arquitetam com crueza tristes cenários marcados pela fome e pela exploração. Se os escritores da década de trinta, especialmente os ficcionistas do nordeste, posicionavam-se politicamente no campo da esquerda, os stalinistas não entendiam chongas de literatura. Atropelando os procedimentos literários que conferem verossimilhança aos dramas dos personagens dos romances, o Partidão procurava afastar os escritores das conquistas estéticas do modernismo para encarcerar a narrativa na propaganda política edificante do proletariado. Tudo isto era feito em nome de uma “literatura de esquerda". Neste contexto hostil, Rachel, que até então era militante do PCB, foi censurada pelo Partido devido ao seu segundo romance “João Miguel" (1932). O livro conta a história de um trabalhador, João Miguel, que após assassinar alcoolizado outro trabalhador, foi em cana. Segue que Rachel apresenta uma sequência de acontecimentos que fogem das simplificações folhetinescas tão ao gosto dos stalinistas.

Vejam só o perigo de mutilação artística que um romance pode sofrer entre aqueles que proclamam em alto e bom “a literatura de esquerda". Toda patrulha ideológica que culminaria na importação do realismo socialista no Brasil prejudicou a literatura com intenções progressistas. Se autores como Jorge Amado embarcaram legal nesta canoa furada, outros poucos resistiram sendo fiéis aos seus próprios meios expressivos. Mas, a pergunta não quer calar: existe ou não uma “literatura de esquerda"? Talvez o mais importante seja pensar uma múltipla produção literária revolucionária dentro da esquerda. Tal produção deve existir em função do debate, da sua contribuição revolucionária, e não em função de um rótulo que quando apropriado por quem não entende nada de arte presta um desserviço à literatura.




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