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MÚSICA | Samba e o som universal da música brasileira

Durante o Festival da Canção, promovido pela TV Record em 1967, Gilberto Gil apresentava-se como um compositor que procurava estabelecer um “ som universal “ para a música brasileira.

sexta-feira 13 de novembro de 2015 | 21:33

A canção Domingo no Parque, defendida por Gil nesta mesma ocasião, carrega em sua constituição estética um processo de modernização da música popular no Brasil: som de roda de capoeira, arranjos orquestrados e a eletricidade da guitarra trazida pela banda de rock Mutantes, eram elementos que pela sua louca combinação rompiam com as barreiras artísticas da esquerda nacionalista; sem contar que a letra da canção é muito bem transada, revelando uma estrutura que possui paralelos com a arte cinematográfica. Sem copiar a música estrangeira, Gil assimilava diferentes influências nacionais e internacionais numa direção, por assim dizer, universal.

O resto da história já é bem conhecido, sendo que no Brasil já está quase virando “sessão da tarde“... Gil e Caetano Veloso passariam a liderar uma dissidência dentro da MPB, aderindo (e desenvolvendo) um movimento (contra) cultural mais amplo denominado tropicalismo; uma espécie de neo-antropofagismo ancorado numa releitura das ideias de Oswald de Andrade (o barato era misturar sem pudor Beatles com forró, Jimi Hendrix com baião, e por ai vai). Apesar da sua indefinição política (e de suas graves contradições) o tropicalismo atualizou o relógio da arte brasileira na hora exata das rebeliões internacionais da juventude de 1968. Nacionalistas reagiam afirmando que os tropicalistas estavam assassinando o samba. Mas por que raios o samba seria monopólio dos nacionalistas?

Já se escreveu muito sobre a tropicália, um tema que ainda move várias pesquisas. Porém, se a bibliografia sobre os debates estéticos entre tropicalistas e nacionalistas de esquerda é farta, samba e nacionalismo ainda são sinônimos para muita gente. O samba seria um território sagrado da MPB. Entretanto, o que seria música popular brasileira hoje? Um cheiro de café da manhã num domingo ensolarado de classe média, parece predominar naquilo que entende-se atualmente por MPB: músicas tranquilas, geralmente muito bem feitas, cantadas no mesmo ritmo com que se passa manteiga no pão. Parece até que MPB, uma sigla com forte conotação política nos anos sessenta, inclusive no sentido de apresentar-se como resistência contra a ditadura militar (1964-1985), virou outra coisa. Paralelamente no campo da música realizada e ouvida no Brasil dos nossos dias, existem outras praias musicais com as mais variadas conotações de classe: o rap e o funk enquanto expressões diretas dos jovens trabalhadores, uma espécie de sertanejo pop embalado igualmente para um público proletário, variações rockeiras de setores reacionários da classe média, etc... Claro, este não é exatamente um panorama completo, definitivo, da música no Brasil: existe muito, muito mais, afinal a variedade de gêneros musicais e de fusões rítmicas no país é pra lá de rica . Porém, as relações entre música popular e parte da esquerda ainda são temperadas indevidamente pelo nacionalismo.

No caldeirão estético da MPB o samba, por incrível que pareça, ainda é nostalgicamente instrumentalizado por alguns esquerdistas nacionalistas. Este é um papo que tem suas raízes históricas nos anos quarenta, quando a orientação jdanovista seguida religiosamente pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) proclamava aos quatro ventos que “o samba é a autentica música do povo brasileiro“. Inquestionavelmente o samba é uma das manifestações populares que historicamente entra em choque com o gosto e os valores da classe dominante. Mas, daí, apropriar-se dele enquanto gênero musical para ajudar no recheio de uma política cultural nacionalista, são outros quinhentos. A perspectiva verdadeiramente marxista valoriza o samba enquanto forte presença africana na música brasileira. Removendo o ufanismo encontramos no samba uma música rebelde, que colabora com o inconformismo político. Deve-se ressaltar a força política do samba a partir da sua origem no batuque: esta dança presente em países africanos como Angola e Congo, também foi praticada no Brasil dos tempos da escravidão.

A origem das rodas de samba está na batucada. A dança acompanhada por um violeiro baseava-se no batuque. É a partir deste mesmo batuque que nos deparamos com uma experiência libertária do corpo: o corpo reprimido/disciplinado pelo trabalho escravo rebelava-se contra a moral cristã através da batida, da dança sensual; aliás a rebelião do corpo que resiste ao opressor, gerou historicamente outras formas de resistência, inclusive no sentido marcial como comprova a capoeira. Samba vem de “semba“, palavra originária do idioma banto-quimbundo. O “semba“ dizia respeito ao momento em que a pessoa que saia da roda do batuque batia com o umbigo no umbigo de quem acabava de entrar. É neste balanço do corpo, nesta alegria guerreira contra o cotidiano opressor (um revoltante trajeto histórico que vai senzala à fábrica) que o samba se desenvolve como importante gênero musical brasileiro, batendo de frente com a cultura dominante: seja no século XIX e início do XX, momentos em que o samba entra em choque com a música clássica, a marcha militar e a música sacra; seja atualmente quando a energia popular do samba desafina o gosto plastificado de uma classe média moribunda.

Tanto a direita quanto a esquerda nacionalista tentaram inutilmente em nossa História recente domesticar o samba; mas acontece que é impossível controlar o canto espontâneo que eclode pelos mais longínquos botequins. Um samba pode ser feito sob o ritmo de uma simples caixinha de fósforo e não precisa de certificado ideológico para existir. Em meio ao debate historiográfico sobre a origem do samba estar na Bahia ou no Rio de Janeiro, o fato é que este gênero está plantado na carne de parte considerável dos trabalhadores brasileiros. Porém, não podemos fazer do samba e da música popular brasileira em geral um escudo nacionalista que culmina em esterilidade musical.

Nossos laços históricos com a África não possuem relações com a cegueira política dos nacionalistas de esquerda. Existe um internacionalismo musical, ou ao menos uma sintonia musical progressista entre os mais variados países, que nos leva a concluir que a África nos salvou de uma visão burguesa da música: batendo a um só tempo no ouvido e no quadril, as derivações musicais de origem afro são dinâmicas, vivas, estimulando pesquisas estéticas que não descambam para o embalsamento da música. O samba no Brasil, assim como o jazz e o blues nos EUA, são exemplos de manifestações artísticas de origem afro que podem fortalecer o debate musical da esquerda numa rota que ignora as fronteiras nacionais. Fiquemos vacinados quanto ao stalinismo musical. Quem inventou o nacionalismo na cultura não foram os comunistas, mas sim a burguesia.


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