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REFORMA DO ENSINO MÉDIO | Reforma do Ensino Médio: a concepção deles e a nossa

Danilo ParisEditor de política nacional e professor de Sociologia

Mauro SalaCampinas

segunda-feira 26 de setembro de 2016 | Edição do dia

Como ação organizada do Estado, toda política educacional – de forma mais ou menos direta, mais ou menos explícita – formaliza e materializa uma determinada concepção de educação e de sociedade. A reforma do Ensino Médio, imposta autoritariamente por Michel Temer, também tem a sua. Essa reforma não é simplesmente o modo mais eficaz de se organizar um Ensino Médio em crise, como se ela fosse neutra, racional ou simplesmente necessária: ela é também um projeto de educação e sociedade que formaliza e materializa interesses próprios, os interesses dos capitalistas.

Se as políticas educacionais trazem consigo determinada concepção de educação e sociedade, sua crítica também traz a sua.

Nesse artigo, buscaremos explicitar alguns aspectos dessa reforma confrontando com alguns fundamentos de nossa crítica, explicitando a concepção dela e a nossa.

“Itinerários formativos específicos” ou ensino médio único? Problemas da articulação entre formação geral e formação para o trabalho.

Um dos elementos centrais dessa reforma é a “flexibilidade” dos “itinerários formativos específicos”. Para o MEC, trata-se de possibilitar que os estudantes possam escolher suas próprias trajetórias formativas, o que faria com que esses jovens se interessassem mais pelos estudos, reduzindo o problema da repetência e da evasão. Já para nós, esse é um dos elementos mais problemáticos da nova reforma e um dos que melhor expressa a concepção de educação e sociedade nela contida.

É claro que o MEC não esclareceu, como mostramos aqui, que sua Medida Provisória não garante de fato essa escolha, já que os sistemas de ensino não serão obrigados a oferecer mais que uma dentre as cinco possibilidades previstas na MP. Um determinado sistema pode oferecer só formação técnica e profissional ou só Ciências da Natureza ou só Ciências Humanas, por exemplo.

Mas o problema não é somente a não obrigatoriedade de oferta de todos os “itinerários formativos específicos”, é antes sua própria existência.

Como parte da educação básica, o Ensino Médio deveria abranger os três anos dessa etapa de escolarização. Quando falamos de educação básica, falamos de educação comum para todos. A MP propõe que se reduza a parte comum, das atuais duas mil e quatrocentas horas, para, no máximo, mil e duzentas horas, significando um aligeiramento na formação dos nossos jovens. O outro ano e meio seria preenchido por esses “itinerários específicos”.

O específico, por definição, se opõe ao que é comum: atacando na raiz a concepção de Ensino Médio como parte da educação básica. O novo Ensino Médio trará a formação profissional dentro da carga horária do Ensino Médio regular, substituindo-o.

Mas o que significa essa mudança?

A grande questão é a transformação da escola numa agência que – agora direta e intencionalmente – reproduz e intensifica a estratificação social e a divisão do trabalho, separando ainda mais a formação geral da formação técnica e profissionalizante.

A concepção de sociedade e de educação subjacente nessa reforma é a naturalização das relações capitalistas de produção, com a divisão entre concepção e execução, entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, expressa na separação ainda maior entre formação geral e a formação técnica e profissional.

O caminho desejável seria antes o da sua integração.

É claro que o Ensino Médio precisa ser repensado, mas não pode sê-lo por medidas unilaterais que unilateralizam ainda mais a formação dos jovens trabalhadores. Trata-se de integrar a formação geral e a formação técnica e profissional de modo a aproximar as dimensões intelectuais e manuais do trabalho, entre a capacidade de conceber determinado processo e de executá-lo.

Não nos opomos à necessidade de darmos uma formação técnica e profissional para a nossa juventude, que pressionados pelas próprias condições materiais e culturais, veem no trabalho tanto seu meio de vida quanto de sua identidade. A escola pública deve garantir essa formação.

Entretanto, não pode fazê-la no sentido de opor essa formação técnica e profissionalizante à formação geral (científica, artística, filosófica): deve antes fundi-las. Antonio Gramsci nos dizia que não podemos fazer da formação profissional uma “incubadora de pequenos monstros aridamente instruídos para um ofício, sem cultura geral, sem alma, mas só com o olho certeiro e a mão firme”.

No ponto de vista da superação da divisão entre concepção e execução, da divisão entre o trabalho intelectual e manual, a escola deve agir no sentido de integrar cada vez mais as dimensões do trabalho com a ciência e a cultura, garantindo aos nossos jovens não apenas um “saber fazer” ou as competências operacionais do processo produtivo, mas a própria compreensão de seus fundamentos científicos, culturais e sociais. O que só com a articulação entre as formações geral e técnica-profissional podemos almejar.

A reforma do governo Temer vai na direção oposta: ela quer unilateralizar ainda mais a formação dos nossos jovens, seja por uma formação geral desprendida do trabalho, seja por uma formação para o trabalho desprendida da formação geral, compartimentalizando-as ainda mais.

Assim, quando defendemos uma escola comum para todos os jovens, defendemos sob a perspectiva dessa articulação, não do modelo atual.

O problema da escola de tempo integral: ou como conciliar uma escola de tempo integral com uma jornada de trabalho de tempo integral?

Outro elemento importante na reforma do Ensino Médio que o MEC quer impor é o Ensino Médio em tempo integral, aumentando a carga horária dessa etapa da escolarização, das atuais oitocentas horas anuais para mil e quatrocentas horas.

Logo no início da MP podemos ler: “Parágrafo único. A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser progressivamente ampliada, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, observadas as normas do respectivo sistema de ensino e de acordo com as diretrizes, os objetivos, as metas e as estratégias de implementação estabelecidos no Plano Nacional de Educação.”

De fato, o aumento no número de matrículas em tempo integral é uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, homologado pela presidenta Dilma em 2014. A meta é oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender 25% dos alunos da educação básica.

Atualmente, das cerca de seis milhões e oitocentas mil matrículas no Ensino Médio, apenas trezentas e oitenta e quatro mil (ou 5,6%) são em escolas de tempo integral. A meta do governo Temer é de pouco mais de duzentas e cinquenta mil novas matrículas em escolas de tempo integral para 2017 e para 2018.

A ideia de fortalecer o Ensino Médio em tempo integral é quase um consenso entre os formuladores de nossas políticas educacionais e unifica a reforma do Temer com a proposta feita pelo PT.

Pode até parecer óbvio que o aumento do tempo do aluno na escola vá na direção da valorização da educação. Entretanto, esse modelo pode se tornar fator de marginalização de uma importante parcela da juventude brasileira: a juventude que além de estudante também é trabalhadora.

O projeto não leva em conta a diferença de oportunidade na disposição do tempo por parte da juventude brasileira. Tomar o jovem indistintamente como um ser ocioso é um erro que só comete quem parte apenas de um conceito abstrato de juventude, não percebendo as cisões de classe que a atravessa. Grande parte da juventude brasileira é trabalhadora.

Conciliar educação e trabalho faz parte da vivência de milhões de jovens trabalhadores-estudantes. Seja no trabalho reprodutivo doméstico (cuidando da casa ou das crianças menores), seja no trabalho remunerado (notadamente informal e precário), grande parte da juventude brasileira que frequenta a escola é trabalhadora.

No Ensino Médio, “apenas 45,3% dos estudantes só frequentam a escola, 28,9% estudam e trabalham, 9,7% realizam bicos e vão ao colégio, e 16,1% já conciliaram as duas atividades, mas se dedicam somente aos estudos atualmente”, segundo relatório publicado pelo centro de referências em Educação Integral.

Não é à toa que em São Paulo , quando da implementação do Ensino Médio em tempo integral, houve uma forte resistência das comunidades escolares em aceitarem a implementação do projeto do governo paulista. Mais da metade das escolas consultadas se negou a participar do projeto, em 2012.

Não se pode pensar uma política educacional ignorando a vivência concreta da população para a qual ela se dirige. Assim, levar em conta essa realidade é fundamental para pensarmos as políticas educacionais como parte das políticas para o conjunto da classe trabalhadora.

Temos que pensar a política da escola em tempo integral em associação com as reformas que o governo Temer já anunciou - como as mudanças na aposentadoria e a flexibilização das leis trabalhistas, que poderá ampliar a jornada diária de trabalho do conjunto dos trabalhadores - e aquelas que o governo Dilma já tinha promovido, como a alteração das regras para acessar o seguro desemprego, medida que atingiu fortemente a juventude trabalhadora, precarizando a sua condição de vida e dificultando o acesso e a permanência na escola dessa parcela da população.

Sem superar essas contradições, o Ensino Médio em Tempo Integral, já defendido por Dilma e agora imposto por Temer, acaba por ter um efeito bastante perverso: ele precariza, sobretudo, a educação escolar da juventude trabalhadora, que terá que frequentar um ensino noturno ainda mais distante da realidade dos cursos diurnos e em tempo integral, tendo inclusive diferença de recursos no seu financiamento.

Na verdade, a implementação da escola em tempo integral vai acabar por criar dois sistemas distintos: um em tempo integral e outro em tempo parcial e/ou noturno.

Assim, as políticas do golpista Michel Temer estão novamente na contramão do que defendemos. Para nós, mais do que simplesmente aumentar o tempo de permanência do aluno na escola, uma das políticas educacionais mais importantes é a redução da jornada de trabalho sem redução salarial para todos os trabalhadores, para que assim se possa articular a educação com o trabalho como duas dimensões reais e fundamentais de suas experiências. Sem a redução da jornada de trabalho, por um lado, e uma efetiva política de permanência estudantil, por outro, implementar a escola em tempo integral, que excluirá parte significativa dos jovens brasileiros, é uma medida reacionária. O que se tem que fazer é disponibilizar tempo e recursos para que a juventude trabalhadora possa, de fato, cada vez mais frequentar a escola, articulando sem substituir essas duas dimensões de sua vida.

A experiência do trabalho pode substituir o cumprimento das exigências curriculares do Ensino Médio? Isso é integração?

Quando falamos em articulação entre formação geral e técnica-profissional ou entre educação e trabalho, nos distanciamos bastante da atual reforma do Ensino Médio e como ela concebe a questão. Como mostramos, a escolha de “itinerários formativos específicos” caminha na contramão da formação única articulada; e a escola em tempo integral separa ainda mais a juventude que trabalha da escola, ou cria uma escola de “segunda linha” para os jovens trabalhadores.

Para haver integração entre a formação geral e a formação técnica-profissional e entre o trabalho e a educação, precisamos ter uma escola única e integrada e uma política de redução da jornada de trabalho para que a juventude que trabalha possa frequentar a escola em condições de fazer dela um efetivo espaço formativo. A separação dessas dimensões, apenas reforça as distinções que se dá fora do âmbito escolar, qual seja, entre o trabalho de concepção e execução, entre quem controla e quem faz, naturalizando essas relações hierárquicas.

A escola precisa trabalhar no sentido de ir contra essa distinção, permitindo aos jovens estudantes a apropriação dos fundamentos científicos, culturais e sociais do processo produtivo.

Um outro aspecto da Medida Provisória deixa claro que a reforma imposta caminha no sentido da substituição de uma dimensão por outra, e não de sua articulação e integração.

A Medida Provisória prevê, “para efeito de cumprimento de exigências curriculares do ensino médio”, que os sistemas de ensino “poderão reconhecer, mediante regulamentação própria, conhecimentos, saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de comprovação, como: I - demonstração prática; II - experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar; III - atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino; IV - cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais; V - estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e, VI - educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.”

Isso não é articulação entre formação e trabalho, é a simples substituição da formação escolar pela experiência prática do trabalho, sem contar os aspectos claros de privatização contidos nesse dispositivo, como mostramos aqui.

Mas para o que nos interessa nesse artigo, não podemos aceitar a simples equivalência entre a “demonstração prática” ou da “experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar” com a formação propriamente escolar. A escola, na perspectiva que defendemos, não deve ser um lugar apenas do “saber fazer”, mas sim da compreensão científica, cultural e social de seus fundamentos. Substituir a formação escolar por demonstrações práticas ou por experiências não escolares é esvaziar a escola, sobretudo, a escola da parcela da juventude que já frequenta o trabalho.




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