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O MARINHEIRO QUE LUTOU PARA MORRER | Ramón Sampedro e o direito à morte

domingo 11 de janeiro de 2015 | 21:45

A quem pertence nossa vida? Essa é a pergunta que a história de Ramón Sampedro nos coloca. Marinheiro espanhol, aos 25 anos Ramón sofreu um acidente que o deixou tetraplégico. Depois disso, por 28 anos Ramón irá lutar pelo seu direito a se suicidar e interromper o que considerava “uma vida sem dignidade”. Sua história foi registrada com grande sensibilidade e beleza no filme “Mar Adentro” (2004), de Alejandro Amenábar, trazendo Javier Bardem no papel de Sampedro.

O suicídio, em nossa sociedade, permanece sendo um tabu, um ato clandestino, condenado moralmente de forma praticamente unânime sob todo tipo de pretexto. A vida, para praticamente todos os religiosos, é claro, mas, também, surpreendentemente para quase todos os ateus, é encarada como um “valor universal”. A eutanásia, quando a pessoa está em coma, sem consciência, tendo apenas seu corpo mantido vivo por aparelhos, é muito mais aceita por quem não possua justificativas religiosas ou metafísicas para a valorização da vida. Mas, e se a pessoa se encontra consciente, e apenas não deseja mais viver? Quais motivos tornam ilegítima a sua decisão? Não deve um indivíduo dispor do direito de decidir livre e abertamente sobre o momento em que deve dizer basta e deixar de levar uma vida que não deseja?

Nosso mundo afirma, sem hesitar, que não: o direito à vida pertence à sociedade, e não ao indivíduo, ou seja, a quem efetivamente vive aquela vida todos os dias. Independente das condições em que a enfrente. Na maioria dos casos, isso leva a que as pessoas que não desejam mais viver tenham que – como afirmou o próprio Ramón Sampedro – morrer clandestinamente, sem dignidade, como criminosos. Suicidarem-se escondidos, levando a cabo todos os preparativos e a execução de sua morte por conta própria, sem a assistência ou o amparo das pessoas que ama. Morrer sozinho, levando em seus ombros, além da morte em si, o peso de quem comete um crime contra os outros. Ou seja, como se tirasse algo que pertence a eles, e não a si próprio. Ou, em muitos casos, como no da advogada que auxilia Sampedro em sua luta judicial, a sofrer um lento e angustiante processo degenerativo, chegando ao ponto de não saber seu nome, não reconhecer as pessoas que um dia amou, mas persistir, por longos e horríveis anos, levando uma vida da qual mal tem consciência. Porque o direito a não passar por isso lhe foi negado.

O caso de Sampedro foi distinto por dois motivos, apenas. O primeiro é que, como tetraplégico, tornava-se completamente dependente do auxílio de outras pessoas, inclusive para morrer. Encontrava-se incapacitado de cometer seu próprio suicídio e de levar para o túmulo o peso de seu “crime”. Em segundo lugar, porque ele decidiu que queria morrer com dignidade, o que, em seu entendimento, significava poder morrer legalmente, sem se esconder, sem ser um clandestino. E, por isso, travou uma grande batalha judicial, levantando publicamente uma questão que a nossa sociedade prefere ignorar.

No vídeo de seu próprio suicídio, Sampedro afirma: considero que viver é um direito, e não uma obrigação, como foi para mim. A “obrigação” em viver pode parecer, à primeira vista, uma questão atrelada a questões morais e religiosas, como no caso do Padre – também tetraplégico – que procura convencer Sampedro a não lutar pela morte com o argumento fundamental de que nossa vida pertence a Deus. Mas, no entanto, a questão está para além do âmbito religioso. Nossa sociedade, hipocritamente, afirma garantir o “direito à vida”. Para isso, torna clandestino e criminoso não apenas o suicídio, mas também o aborto. A “garantia à vida” de um punhado de células, fusão de um óvulo e um espermatozóide, é um “direito fundamental” em nossa sociedade. Graças a isso, milhares e milhares de mulheres – essas sim, seres humanos de fato, dotados de consciência, de vontade, de sentimentos e capacidade de sentir dor – morrem todos os anos praticando o ato clandestino e criminoso do aborto. Quando não o fazem, e as células que carregam se desenvolvem e se tornam um ser humano efetivamente, aí todo o discurso do “direito à vida” releva sua verdadeira face de hipocrisia: a sociedade não garante à criança que nasceu o direito a nada nessa vida: saúde, educação, moradia, alimentação. Tudo cabe à mãe, aquela mesma que seria uma criminosa se quisesse, por qual motivo fosse, interromper um processo de gestação em seu próprio corpo.

São casos muito diferentes, mas possuem, sim, muito em comum. São casos em que o corpo de uma pessoa, a sua própria vida, não lhe pertencem. A sociedade se arroga o direito de decidir como se vive ou se morre. Se, contudo, vivemos, essa vida também não nos pertence efetivamente. O tempo em que vivemos pertence a nossos patrões, a quem somos obrigados a vender nosso trabalho para poder garantir nosso sustento mínimo. É deles a maior parte de nossa semana. E aí reside o centro da questão: permitir que alguém disponha de sua própria vida, seu próprio corpo, mesmo que seja um tetraplégico, um doente terminal ou uma mulher gestante, coloca em questão a quem pertence nossa vida, e o que podemos ou não fazer dela. Para este mundo, valemos enquanto produzimos, enquanto geramos mais-valia. Os que não o fazem, não são vivos de fato; são marginais, são mortos-vivos, pois, ao mesmo tempo em que não têm o pleno direito à vida, também não têm o de morrer.

Sampedro discute insistentemente com familiares, amigos, imprensa, justiça, para obter algo elementar: o direito de decidir o que quer para sua vida. Se quer a sua vida, tal como ela é. Todos os dias no mundo ocorrem milhares e milhares de suicídios. A maior parte deles é consequência direta de como o capitalismo impede que as pessoas desfrutem de fato de sua vida: transexuais discriminados, como o recente caso de Leelah Alcorn; pessoas sem emprego por causa da crise capitalista, como em tantos casos que vimos explodirem na Grécia nos últimos anos; trabalhadores explorados até o limite do suportável, como os operários da Foxconn na China; pessoas com doenças psíquicas causadas por uma sociedade doentia. Em nosso país, onde o suicídio de pessoas entre 15 e 29 anos cresceu 30% nos últimos vinte anos. Cerca de um milhão de pessoas morrem anualmente no mundo em decorrência do suicídio.

As causas de tantos suicídios, vidas que se veem interrompidas porque nosso mundo não lhes dá direito à possibilidade de uma realização plena, não são condenadas pela justiça e o Estado. A miséria material e psíquica continua distribuída sem parcimônia aos membros de nossa sociedade. Apenas a medicalização cega da vida oferece uma “resposta” que a nada responde, mas que aumenta exponencialmente os lucros da bilionária indústria farmacêutica. Contudo, se alguém se encontra em uma situação limite, seja por uma doença terminal ou por uma condição de vida que a priva de qualquer perspectiva de felicidade ou satisfação pessoal, essa pessoa, sim, é condenada. Condenada a viver, ou sobreviver, ou existir fisicamente mesmo que não se possa chamar de “vida” aquilo que ela é obrigada a enfrentar a cada dia.

Há outros casos que, como o de Ramón Sampedro, colocam isso em questão. Como o médico americano Jack Kevorkian – cuja história foi retratada no filme “Você não conhece Jack” (2010), com Al Pacino no papel de Kevorkian – que ajudou mais de cem pessoas a cometerem suicídio assistido, garantindo-lhes uma morte tranquila, sem dor e acompanhada pelas pessoas que amavam. Isso levou Kevorkian a enfrentar diversos processos por homicídio, chegando em um deles a ser condenado a 25 anos de prisão. Casos como o de Sampedro e Kevorkian são apenas exemplos famosos de dilemas que milhares de pessoas enfrentam todos os dias, mas que nossa sociedade prefere ignorar. A todos nós, ressoa a pergunta: Para que(m) vivemos?




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