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Radiografia dos 45 dias de Alberto Fernández: o início do desencanto?

Eduardo Castilla

Radiografia dos 45 dias de Alberto Fernández: o início do desencanto?

Eduardo Castilla

"Há uma estranha urgência em pagar, sempre, não importa se está na data ou não, um suspense que a natureza mais submissa do ato parece contradizer". Alan Pauls. História do dinheiro.

Imagem: Agostina Nejamkin - Integrante do Contraimagen FADU

A palavra entra e sai. Se choca com as paredes. Circula com profusão na linguagem oficial. Inunda papers, conferências e até projetos de lei. A sustentabilidade se transformou em bandeira para a gestão de Alberto Fernández.

O chamado a ser “sustentável” são os pagamentos da dívida pública. Dito em crioulo [referência às línguas dos povos originários da América Latina – nota do tradutor], a garantia dos interesses do FMI e dos grandes especuladores internacionais. Os que colaboraram ativamente no desastre macrista podem se sentir a salvo. Com o tom (excessivamente) calmo que lhe é próprio, o ministro de Economia reitera que sobra “vontade de pagar”.

Sentados sobre uma montanha de lucros, grandes bancos, empresas privatizadas e petroleiras – entre outros ganhadores da era Cambiemos – contemplam a demanda de “solidariedade” exigida a aposentados, trabalhadores e setores das classes médias.

O desencanto começa a emergir. Vaza entre as costuras da coalizão governista. Jornalistas como Víctor Hugo Morales ou Roberto Navarro são porta-vozes circunstanciais. Suas críticas – eles sabem – confirmam aquilo que a Frente de Esquerda denunciou. Constatam que não há futuro para as maiorias populares sob os ditados do FMI, como afirmou Nicolás do Caño na campanha eleitoral.

Lua de fel?

Em seus primeiros 45 dias de governo, a Frente de Todos evidenciou vocação de “pagadora exemplar”. Sua agenda de gestão registra como prioridade o acordo com os credores internacionais e o FMI. A dívida “fraudulenta e ilegal” – denunciada por meses – ficou enterrada sob uma montanha de palavras.

A falsamente chamada Lei de Solidariedade Social veio propor um esquema de ajuste fiscal destinado a dar certezas a esse setor do grande capital. As aposentadorias de milhões se transformaram em usina de recursos para engrossar a (já volumosa) carteira de fundos como BlackRock ou Franklin Templeton.

A dívida pública, por sua magnitude, constitui uma espécie de guilhotina que pende sobre a cabeça de milhões [1]. Os especuladores internacionais exigem que seus interesses sejam respeitados. O governo suspira resignado e aceita. Pede, roga, solicita um pouco de tempo para ordenar números.

Da sorte dessa negociação – que começa a caminhar publicamente – dependerá o plano que será colocado em prática nos próximos anos. No entanto, quaisquer adiamentos de pagamentos serão futuras encruzilhadas. Aquilo que não for abonado hoje se transformará em um peso futuramente, ainda mais odioso para as grandes maiorias do país.

O problema da dívida pública golpeia também sobre as províncias [são como os estados, no Brasil – NdT], que passam por situações complexas ou críticas. A saga que inclui Axel Kicillof [governador da província de Buenos Aires – NdT] e os especuladores internacionais tem esse pano de fundo. A província deve pagar quase 3 bilhões de dólares em 2020. O governador propõe confiar na “boa fé” dos especuladores. Mas no mundo dos negócios essa qualidade não existe.

Aos pés do império

A política internacional do governo anda pelos mesmos caminhos. Busca ganhar aliados ou simpatizantes para a causa da renegociação da dívida. A persistente tentativa de aproximação aos EUA se deve a uma razão: o país que Trump administra é o principal acionista no Diretório do FMI.

Em somente seis semanas, a “Pátria Grande” dorme oculta em uma gaveta. Acima se empilham os apertos de mão com Mike Pence [vice-presidente dos EUA – NdT] e as fotos sorridentes com Netanyahu.

Esse caminho está cheio de fatos deploráveis. É preciso contabilizar o lamentável comunicado depois do assassinato de Qasem Soleimani por parte dos EUA. Mais perto no tempo se encontra a recente viagem a Israel. Ali, o justo silêncio pelas vítimas do nazismo permitiu ocultar outro silêncio: aquele que merecem os milhares de assassinados e assassinadas por esse Estado terrorista.

O bolso, uma víscera sensível e menosprezada

A promessa redistributiva se esgotou após ter apenas atravessado o umbral da Casa Rosada. O discurso de reparação calou, rapidamente, a outro destinado a condenar a “herança recebida”. O desastre macrista – real por onde quer que se olhe – se transformou em fundamento para os limites impostos a cada iniciativa.

O ajuste do governo peronista caminha trilhas parcialmente diferentes daquelas traçadas pelo Cambiemos. Expressa, em última instância, a relação de forças existente, nascida da canalização eleitoral do rechaço às políticas macristas. Trabalho que impediu de derrotar nas ruas as medidas que afundaram a vida das maiorias populares.

A suspensão de aumentos nas tarifas; bônus e (magros) aumentos salariais; a implementação do cartão alimentação. Ali aparecem os mecanismos com os quais se busca paliar as consequências do atual ajuste para os setores mais desfavorecidos da população.

No entanto, a espiral inflacionária está longe de acabar. Um levantamento feito nas últimas semanas indica aumentos de até 40% por fora do Plano de Preços Monitorados. O problema da inflação, um martelo que golpeia constante sobre a vida das grandes maiorias, parece um enigma para a gestão fernandista.

Na hora de discutir as causas da subida de preços, o discurso oficial oferece um menu distante do progressismo. Enquanto se esquiva de tocar os interesses dos grandes formadores de preços, repete o falso mantra de que salários e aposentadorias “são inflacionárias” se forem aumentados “em excesso”. Na Argentina monopolizada, o problema vem a residir em quem ganha um pouco mais ou um pouco menos do que custa uma cesta familiar [valor mínimo que uma família deveria receber, em cálculo semelhante ao salário mínimo do DIEESE, no Brasil – NdT].

No novo relato oficial, a aspiração operária a viver dignamente gera inflação. O pedido presidencial de “moderação” nas datas-base [período de negociação salarial – NdT] ilustra bem. Certo é que essa disposição é o que tem sobrado na direção sindical peronista, que deu de presente ao macrismo quatro anos de trégua.

O governo adoece ainda do anunciado pacto social. As rachaduras desse pacto precisam ser buscadas, talvez, nos atores convocados. A docilidade da cúpula sindical contrasta vivamente com a prepotência burguesa. As grandes patronais, como ocorre em Siderca ou Vaca Morta [siderúrgica e petroleira – NdT], querem impor seus próprios programas de ajuste e racionalização.

Fazendo contas

O novo relato oficial tende a idolatrar o dólar. Não aquele nas mãos de particulares, senão o que engrossa as arcas do Estado nacional, acumulando-se com um destino fixo: o pagamento da dívida pública.

Esse discurso supõe aceitar uma realidade permanente da política nacional: a escassez estrutural de recursos, também conhecida como restrição externa. Suas causas precisam ser buscadas no atraso nacional e na dependência em relação ao mercado mundial. E também na “natureza fugitiva” do grande capital argentino e estrangeiro [referência à fuga de capitais – NdT]. O ciclo macrista foi prolífico nessa tarefa: em quatro anos aproximou-se de 90 bilhões de dólares.

O Estado nacional se enfrenta com a titânica tarefa de obter recursos. Suas preferências políticas se inclinam a quem pode produzir recursos. Aí que se deve buscar as razões do explícito aval dado por Alberto Fernández à mineração contaminante em Mendoza. Anunciada entre sorrisos junto a Héctor Magnetto, encontrou uma massiva resposta nas ruas de Mendoza. Isso também motoriza as negociações com as grandes petroleiras, prestes a receberem novos benefícios mediante a lei de hidrocarbonetos que o governo se propõe a enviar nas próximas semanas ao Congresso.

Com o mal chamado “campo”, se mantém uma tensa calma. As recentes chuvas, ao habilitar uma colheita melhor, podem explicar parte do alívio. Também poderia dever-se ao temor frente a eventuais mobilizações. É bom lembrar que Alberto Fernández se retirou do governo de Cristina Kirchner depois do conflito de 2008. Que o governismo não tenha implementado os 3% adicionais em retenções – permitidos pela lei de Emergência – retrata o momento atual.

Entre o relato e as tensões reais

As fissuras do novo governismo se mostram desde o início. Passam em canais e programas de rádio. Também redes sociais. Confirmam o carácter de coalizão que define o governo da Frente de Todos. Tensões e curtos-circuitos se abrem circularmente: a morte de Nisman; presos políticos ou detenções arbitrárias; discussões entre Berni e Sabina Frederic sobre a Gendarmeria; a aspereza de Grabois frente a algumas medidas econômicas. A “unidade anti-macrista” deu origem a um emaranhado multicolorido onde as diferenças, mais cedo que tarde, começam a se delinear.

As críticas de jornalistas como Víctor Hugo Morales ou Roberto Navarro complementam outra tendência: a integração de intelectuais e referentes da esquerda kirchnerista – próximos a posições da Frente de Esquerda – em estratos do Poder Executivo. Para ilustrá-lo: denunciantes do caráter ilegal da dívida pública se somam a um governo que propõe pagar até o último dólar. Passam, à distância e com especificidades, pelo caminho do ministerialismo feito pelo Unidas-Podemos no Estado Espanhol. O agrupamento referenciado em Pablo Iglesias acaba de somar-se ao governo imperialista do PSOE. É, por definição, o governo de grandes multinacionais como o BBVA, Telefônica ou Repsol.

Também nessas tensões é preciso buscar as ambivalências do relato fernandista. Obrigado a escalar posições em diversos setores da sociedade, ensaia um discurso de verniz institucionalista, propondo uma (ainda) genérica reforma da Justiça e dos serviços de Inteligência. Aposta em sustentar o vínculo com o núcleo duro do kirchnerismo revisitando uma agenda ligada aos direitos humanos. Repete, diante de cada microfone, um discurso anti-greta [anti-polarização – NdT], destinado aos estranhos mais que aos próprios.

A fraqueza maior de seu relato se localiza no terreno da economia. Tendo escolhido uma política de ajuste, propõe uma proposta “solidária” que não afeta os interesses do grande capital. A “redistribuição” tem teto: são os setores da classe trabalhadora os que devem perder algo para ajudar os que menos têm. Para o futuro, essa construção termina sendo fraca, frágil. Os que votaram “com o bolso” – apostando em recuperar o perdido com Macri – podem começar a olhar com desconfiança para a nova gestão. A relativa prudência do moyanismo [uma das principais direções sindicais do país – NdT] talvez esteja ilustrando esse mal-estar.

A aposta da esquerda

As seis semanas transcorridas desde aquele caloroso 10 de dezembro definem tendências. Permitem avistar parte do futuro: honrar a dívida ilegal e fraudulenta define um marco estrutural para os tempos por vir.

Em termos de ciclos políticos, os dias transcorridos são quase nada. No entanto, nesse lapso de tempo ficou em evidência a importância do lugar que ocupa a Frente de Esquerda. A última quinzena de 2019 mostrou o enorme alcance de uma oposição política apoiada na independência de classe, alheia aos interesses do grande capital. A oposição da esquerda ao ajuste e em defesa dos aposentados se ligou ao papel destacado cumprido pelos parlamentares e pela militância do PTS-FIT na luta contra a mineração contaminante em Mendoza.

Esta força é a que é preciso desenvolver e potencializar no período por vir. Apostar em fortalecer uma perspectiva independente, que contribua a apoiar as inevitáveis resistências que chegarão, tarde ou cedo, frente à política de ajuste em curso. Resistências que ocorrerão em um mundo que começa a ser convulsionado pela crescente luta de classes, desde a Praça Dignidade até os Campos Elíseos, passando pelas ruas de Hong-Kong e Teerã.

A construção de um novo projeto, como o que nos propomos a desenvolver por meio do La Izquierda Diario Multimídia aposta nessa perspectiva. Esse objetivo se torna essencial no mapa midiático que se constrói sob o novo tempo político. A semana que acaba de terminar apresenta um exemplo taxativo. O ataque de um bando contra os trabalhadores despedidos da Ferrovia Roca foi apresentado pela grande mídia – de maneira quase unânime – como um “enfrentamento entre passageiros e manifestantes”. Nada mais longe da realidade, como evidenciaram testemunhos e imagens posteriores. O acompanhamento militante da luta – traída pela direção sindical e ignorada pelo governo – terminou sendo fundamental nessa tarefa.

O governo de Alberto Fernández somente acaba de começar. Longe do discurso de campanha, o dia a dia se apresenta acinzentado. Milhões ainda esperam recuperar o que foi perdido nos anos de CEOcracia. O caminho escolhido pela Frente de Todos empurra na direção contrária. Anuncia novas decepções. Prepara as condições para uma nova experiência política das maiorias populares com o peronismo.

Para a esquerda é fundamental trabalhar na preparação ativa e consciente para as batalhas políticas que se avizinharão quando o desencanto começar a dar lugar – lenta ou velozmente – à decepção. Uma decepção que, na turbulenta história nacional, tende a tomar seu lugar nas ruas.

Tradução: Francisco Marques.


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FOOTNOTES

[1Como estima a pesquisadora Noemí Brenta no último número do El Dipló os juros e encargos da dívida “representam ao redor de um quinto do gasto público. Isto é muitíssimo: supera, por exemplo, a soma do orçamento nacional em saúde, educação e ciência e tecnologia. E como ao redor da metade destes pagamentos vai ao estrangeiro, nem se quer se gasta ou se economiza dentro do país”. El Dipló. Janeiro 2020. N° 247
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