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Queda-de-braço entre dois impérios - entrevista com Francisco Claramunt

Redação

Queda-de-braço entre dois impérios - entrevista com Francisco Claramunt

Redação

Traduzimos para esta edição do Ideais de Esquerda uma entrevista sobre a invasão russa na Ucrânia concedida ao blog pessoal de Rafael Poch de Feliu no dia 25 de fevereiro. O entrevistado é Francisco Claramunt, editor do semanário uruguaio Brecha, que desenvolve sobre o que ele chama de dois níveis do conflito: a "queda-de-braço entre dois impérios, o euro-atlântico e o russo que disputam zonas de influência e a relação da Rússia com seu entorno pós-soviético.

Acesse aqui a matéria original

Por que Putin decide invadir a Ucrânia agora? Parece que ele queria confirmar tudo o que estava sendo dito sobre seu governo na propaganda de seus inimigos.

Ele está fazendo o que disse que faria. Em 17 de dezembro, a Rússia apresentou um documento aos Estados Unidos e outro à OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], em que exigia uma negociação sobre as garantias de segurança que a Rússia considerava que lhe faltavam. Esses documentos pediam uma série de coisas, que são pedidas há mais de 20 anos sem nunca terem sido atendidas. Desta vez pediu novamente, com 100.000 soldados na fronteira. Receberam uma resposta, que foi um processo diplomático, no qual os russos disseram que, se não ouvissem o que estavam propondo, adotariam "medidas técnico-militares". Não disseram mais nada, não explicaram em que consistiriam. Alguns pensavam que se tratava de reconhecer as repúblicas rebeldes do Leste da Ucrânia; outros especularam que poderia haver ataques de mísseis em infraestruturas militares ucranianas, e outros disseram que a Rússia poderia chegar a invadir aquele país, mas quase ninguém acreditava que poderia acontecer o que finalmente aconteceu: que a Ucrânia fosse invadida dessa maneira.

Tudo isso foi, antes de tudo, pressão para resolver a questão ucraniana, que na concepção oficial russa tem vários pontos: a ameaça militar representada, segundo a Rússia, pela possível adesão da Ucrânia à OTAN; o pedido de retirada das infraestruturas militares existentes da OTAN das fronteiras com a Rússia e, ainda, a retirada da OTAN para os seus limites de 1997, o que é praticamente repensar toda a segurança europeia e a voltar atrás com tudo o que foi feito desde aquele ano nas cinco ondas de ampliação da OTAN. É isso que o governo russo está pedindo; ao não obter respostas para essas questões, o que eles fizeram foi invadir a Ucrânia.

Além da responsabilidade direta da Rússia por cometer esta invasão, há também a responsabilidade das potências da OTAN por terem sido inflexíveis nos meses anteriores?

É uma responsabilidade compartilhada. Essa invasão infame é a culminação de um processo que começou imediatamente após a dissolução da União Soviética, quando o Ocidente acreditou que a Rússia não era mais uma potência e parou de levá-la a sério.

Em 1994, um punhado de guerrilheiros chechenos, não mais de 2.000, colocou o exército russo em xeque no Cáucaso. Pouco depois disso, a Rússia disse à Otan: "Não se expandam para o Leste, porque isso prejudica meus interesses de segurança". A posição da OTAN foi: "Bem, aproveite-os, você não é nada". Anos se passaram, e a Rússia hoje é menos fraca do que era então. Essas são as consequências.

Quais seriam os objetivos dessa inflexibilidade da aliança atlântica, tendo em vista que a Rússia, nos anos noventa e nos primeiros dois mil, estava alinhada ao discurso antiterrorista e liberal, e não era mais um país que representava uma ameaça militar à altura da soviética?

Em 1996, quando a expansão da OTAN para o Leste ainda não havia começado, o ministro de Relações Exteriores britânico daquele momento já havia dito que o objetivo final era a Ucrânia. Nessa época, foram realizadas as manobras OTAN-Ucrânia, com cenário em uma rebelião separatista na Crimeia. Em 1997, foi publicado O Grande tabuleiro mundial, pelo ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, que postulava que os Estados Unidos não podiam permitir que um concorrente tentasse hegemonizar a Eurásia e propunha a desintegração da Rússia em quatro repúblicas. Durante anos tivemos sistemas antimísseis da OTAN implantados na Romênia, que a Rússia considera uma ameaça direta. Se trata de um interesse estratégico, de muitas décadas, de evitar que a Rússia tente se tornar uma grande potência novamente.

Apesar dos argumentos russos sobre a OTAN, em sua última coluna no CTXT, você aponta que “não se pode ser anti-imperialista e não sentir nojo” pelo que a Rússia está fazendo agora.

Existem dois níveis neste conflito. Um é a queda-de-braço entre dois impérios, o euro-atlântico e o russo. Eles estão disputando zonas de influência. O império russo considera-se ameaçado por este alargamento ocidental às suas fronteiras e reage com esta agressão contra a Ucrânia. Mas há outro nível, que é a relação da Rússia com seu entorno pós-soviético. Putin coloca isso em termos de um discurso nacionalista russo puro e duro. Isso dificulta muito a integração do entorno russo com Moscou, porque a afirmação nacional dessas novas repúblicas não combina bem com um discurso nacionalista russo. Esses Estados tornaram-se independentes de uma Rússia que anteriormente se chamava União Soviética. Esta antiga União Soviética diz-lhes agora que têm de se disciplinar em honra do nacionalismo russo, o que, por suposto, é impossível se quiserem manter a sua independência.

A isso acrescentamos outra coisa, que parece banal: quão atraente é o sistema político russo para um ucraniano ou para alguém dos Estados bálticos? Bem, muito pouco. Em seu discurso de outro dia, Putin praticamente denunciou a injustiça social na Ucrânia, o maltrato da oposição pelo governo ucraniano. Coisas que são reais, mas de que posição se formula tal censura? A situação interna na Rússia é ainda pior, há muito menos pluralismo na Rússia do que na Ucrânia. A situação social econômica pode ser melhor na Rússia do que na Ucrânia, mas o sistema oligárquico dominante é comum aos dois países, portanto, um ucraniano que busca uma vida mais livre e próspera dificilmente terá a Rússia como referência.

Depoimentos de que a população russa não apoia a guerra começaram a aparecer na mídia ocidental, assim como imagens de grandes protestos em Moscou, São Petersburgo e outras cidades. Fala-se em pelo menos 1.000 detidos. Qual a sua impressão sobre a popularidade que essa invasão pode ter na Rússia, considerando que a aprovação do governo cresceu quando anexou a Crimeia?

Vai depender muito dos resultados. Se essa aventura militar de Putin der errado para o Kremlin, ou seja, se o exército ucraniano se defender efetivamente, se os cadáveres começarem a chegar às cidades russas, haverá protestos muito grandes. Se, além disso, isso se complicar, na hipótese de que a OTAN e os Estados Unidos vão além das sanções; se eles tentarem algum tipo de medida contundente e que obrigue a Rússia a se retirar e, portanto, ser derrotada militarmente, isso criaria uma massa crítica perigosa para o regime. O que vimos até agora, no entanto, não nos dá a perspectiva de saber o que finalmente acontecerá.

Estou preocupado com a forma como a população ucraniana reagirá a este ataque. No Leste da Ucrânia, não sei como eles vão receber as tropas russas se isso se tornar uma ocupação. Duvido muito que a Rússia ocupe toda a Ucrânia, seria perigoso para seus interesses, mas é possível que haja algo como uma ocupação no Leste do país. Na Ucrânia há 15 milhões de russos e esta é uma população que não está muito feliz com o governo ucraniano. O atual presidente, Volodymyr Zelensky, chegou ao poder com a promessa de restabelecer as relações com a Rússia, abandonar o nacionalismo radical anti-russo do governo anterior, combater a corrupção e assim por diante. Ele não fez nada disso. Será preciso ver nos próximos dias que apoio ele obtém da população diante dessa agressão.

Por outro lado, devemos analisar a declaração de guerra de Putin. Ele disse que o objetivo desta operação militar é "desmilitarizar" e "desnazificar" a Ucrânia. Moscou repete que o governo ucraniano é nazista, o que é estúpido, absurdo. Na Ucrânia existe uma extrema direita influente, sim, mas uma minoria. Certamente não maior do que a extrema direita na Rússia. Quando Putin diz que eles querem “desnazificar”, o que ele está dizendo é que quer uma mudança de regime na Ucrânia. Lembremos também que Zelensky é judeu, ou seja, que não é nazista.

Qual é o contexto desta guerra fora da Europa Oriental?

Não é coincidência que a Rússia tenha escolhido este momento para fazer essa afirmação com tanta força e, não sendo acatada, decidiu por essa agressão militar. Este momento é caracterizado pela fraqueza de todos. Joe Biden parece estar a caminho de ser presidente entre dois mandatos de Donald Trump. Há um ano houve uma tentativa de golpe de Estado em Washington. O establishment dos EUA está tão conflitado internamente que comentaristas da grande mídia estão discutindo a possibilidade de uma guerra civil. E tivemos a derrota do Afeganistão. No Reino Unido, Boris Johnson está na corda bamba, investigado pela partygate. Na França, há eleições em abril. A Alemanha está com o coração partido entre a russofobia e o interesse de seus negócios com a Rússia e o Leste Europeu, energéticos e não energéticos, que movimentaram mais de 200 bilhões de euros no ano passado. Tudo isso diz à Rússia que seus rivais estão em uma posição muito fraca e é um bom momento para tentar explorar as contradições dentro da OTAN.

Por enquanto, temos esses anúncios de sanções que não sabemos até onde vão, e que vão prejudicar a Rússia, sem dúvida, mas a Rússia também vem se preparando. São sanções que não podem ser levadas ao extremo porque afetariam a própria União Europeia. Até agora, Biden não queria dar o passo de retirar a Rússia do sistema interbancário internacional Swift. Se isso acontecer, como os ocidentais vão pagar pelo gás ou hidrocarbonetos russos? Se o comércio de energia com a Rússia for cortado, qual será a alternativa? Isso aumentaria massivamente o preço da energia. Enquanto isso, os russos e chineses estão criando um sistema de pagamento paralelo e o dólar está enfraquecendo a longo prazo porque está sendo negociado menos com ele. Tudo isso é muito perigoso e as potências ocidentais terão que calibrar com muito cuidado.

Neste momento há muita especulação sobre o apoio que a China daria à Rússia nesta guerra. No entanto, a China foi muito cuidadosa no passado: nunca reconheceu a anexação da Crimeia, por exemplo. Nesta quinta-feira, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China disse que a Rússia é um país independente que toma suas próprias decisões e que o que está acontecendo agora na Ucrânia não é o que a China esperava.

A primeira coisa a entender é que a aliança China-Rússia é produto da estupidez estratégica dos Estados Unidos. Ele cercou militarmente seus dois adversários e, ao fazê-lo, os uniu no mesmo sentimento de ameaça. Nos primeiros anos de seu governo, Putin buscou uma aliança com os Estados Unidos e o Ocidente. Depois do 11 de setembro de 2001, ele imediatamente ligou para George W. Bush, ofereceu sua solidariedade, todo tipo de instalações nas bases russas na Ásia Central, cooperação de inteligência, possivelmente apoio no Afeganistão... Tudo isso não teve o menor resultado, a Rússia continuou a ser ignorada.

Depois de tantos anos de humilhação, Putin voltou-se para a China porque eles fizeram um pouco a mesma coisa com a China. Eles se encontraram lá, mas, objetivamente falando, se você olhar no mapa, verá que a Rússia é um país enorme, mas economicamente não muito poderoso, que está localizado no meio de duas potências muito mais fortes que ela: por um lado, a China e, por outro, a União Europeia e a sua aliança euro-atlântica. É um país com uma posição geoestratégica extremamente difícil. Moscou queria um acordo com os ocidentais, sem ser vassalo, com certa autonomia. E agora a situação a leva a ser parceira da China. Mas um parceiro da China, quando o desequilíbrio entre os dois é tão grande, acaba por implicar o perigo de que a Rússia fique subordinada à China.

Kissinger e outros estrategistas dos EUA vêm dizendo há anos que a coisa a fazer é conquistar a Rússia para enfrentar a China. Os Estados Unidos não sabem o que fazer com a China, não estão preparados para que um dia em breve deixe de ser a potência hegemônica e que haja outra potência – que, aliás, não será branca – que poderá se tornar mais poderosa do que ele. E diante desse dilema existencial, não sabem bem o que fazer. E é compreensível, porque o ladrão pensa que todos estão na mesma condição. Se fizeram o que fizeram nestes 200 anos, pensam que quem vier depois deles fará o mesmo com eles.

Certamente a China não esperava que a Rússia levasse as coisas tão longe. Em sua última aparição pública sobre o assunto antes da invasão, o chanceler chinês perguntou à OTAN se não deveria se adaptar aos novos tempos e reconsiderar se sua expansão para o Leste está contribuindo para a paz e o diálogo. Uma atitude muito prudente e, ao mesmo tempo, muito razoável. A política chinesa mostrou grande qualidade em várias frentes; caso contrário, não seria explicado como a China, em 30 anos, conseguiu o que conseguiu. Outra coisa é como reagirá se se encontrar na mesma situação que a Rússia.

Tradução: Angelo Delazeri


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