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CINEMA | Que horas ela volta?: Um filme ‘subversivo’?

[CONTÉM SPOILER] Pouco tempo após o lançamento do novo longa metragem ‘Que horas ela volta?’, dirigido por Anna Muylaert, escrevi um texto aqui no Esquerda Diário sobre as qualidades do filme em denunciar a persistência da mentalidade escravista como um componente essencial do capitalismo brasileiro. Agora, trazemos um debate sobre aspectos mais profundos da ideologia desse filme.

quarta-feira 14 de outubro de 2015 | 15:28

Quando assistimos ao filme, salta aos olhos a mentalidade reacionária de Bárbara e a relação despudoradamente exploradora e arcaica que tem com Val e sua filha (veja aqui), que chega a São Paulo para prestar vestibular e se hospeda na casa dos patrões da mãe, onde essa reside espremendo suas coisas no minúsculo quarto de empregada.

Contudo, a mensagem mais profunda que o filme traz está implícita na fala de Bárbara ao saber que Jéssica irá prestar arquitetura, um dos cursos mais concorridos na USP. A patroa diz, numa mistura de ironia e rancor: “O país mudou mesmo, hein?”. Mudou, segundo ela, porque até “a filha da empregada” pode ambicionar estudar na FAU.

A ideia de que “o país mudou mesmo” é o que o filme quer nos transmitir, tomando como meio para demonstrar isso a relação entre uma velha geração de trabalhadores (Val) e uma nova, encarnada em Jéssica. A ideia que Anna Muylaert nos transmite é que Jéssica, incapaz de se curvar diante da posição social e do dinheiro da patroa da mãe, expressa uma mentalidade daquilo que a mídia e o governo passaram a chamar de “nova classe média”, uma ficção criada para atestar o slogan preferido do governo petista: que o Brasil é um “país de todos”. Essa mentalidade nova encontraria subsídio em uma nova realidade econômica e social.

Essa ficção se sustentou ao longo dos governos petistas a partir de uma forte propaganda, aliada a uma política governamental que colocou um ínfimo número de jovens nas universidades, sem, no entanto, mexer uma vírgula na estrutura educacional no Brasil. O fato de que o país apresentava um dos sistemas educacionais mais elitistas da América Latina, com uma porcentagem de jovens no ensino superior inferior a países muito mais pobres como México ou Bolívia, permitiu ao governo vender a imagem de uma pequena expansão precarizada como uma “revolução na educação”. Os dois carros chefes dessa política foram o ProUni – que por meio de isenção de impostos tirava dinheiro das universidades públicas e transferia para as privadas em troca de concessão de bolsas – e o Reuni, a reforma universitária que garantiu um pequeno aumento de verbas para um desproporcional aumento de vagas sem garantir estrutura básica, contratação de professores, políticas de permanência estudantil etc., o que levou, entre outros conflitos, às imensas greves das universidades federais, como a de 2012 ou a desse ano.

Curiosamente, quando essa fachada da “revolução na educação” dos governos petistas, alardeando seu novo slogan de “pátria educadora”, começa a ser insustentável, com os cortes cada vez mais profundos que o governo federal tem feito na educação, o filme “Que horas ela volta?” surge para tentar encobrir essa realidade escancarada.

Jéssica é a porta voz dessa ideologia: no filme, sua atitude altiva, seu esforço pessoal e seu triunfo no vestibular supostamente “provam” que uma mistura de meritocracia e a “mudança no país” podem levar os filhos das empregadas domésticas a estudar na universidade mais elitista do país. Já Fabinho, mesmo com todo o dinheiro e as possibilidades que sua origem social lhe garantem, não entra na universidade.

Jéssica, além de tudo, seria a responsável por fazer sua própria mãe erguer a cabeça e enfrentar a patroa, mostrando que já não é necessário se submeter aos desmandos de patrões com mentalidade escravocrata. E o filme termina justamente no ponto do “triunfo” de mãe e filha, que deixam o lar da patroa retrógrada e mesquinha para tomarem as rédeas de suas próprias vidas. O destino de miséria que fez com que Val abandonasse Jéssica já não será repetido, pois a mãe fala para ela trazer a criança para São Paulo. Assim, consagra-se o “final feliz”.

Contudo, a realidade fora das telas desmente esse final feliz. Mesmo que existam exceções que, como Jéssica, conseguem furar o verdadeiro filtro social que é um vestibular como o da USP, esse é só o primeiro obstáculo que os filhos de trabalhadores enfrentam nesse caminho. Jéssica não terá garantida uma creche, pois, como viemos denunciando aqui no Esquerda Diário, as creches da USP, cujas vagas já eram insuficientes, vêm sofrendo ataques por parte da reitoria, bem como todas as políticas de permanência. Os cortes de custos atingem sobretudo os empregos dos trabalhadores – a meta da reitoria é terceirizar – e os estudantes que dependem de permanência. Um curso como arquitetura, além de ser em período integral (sem vagas noturnas) e praticamente inviabilizar que seus alunos o conciliem com trabalho, exige uma série de materiais específicos caros, que a universidade não fornece. Val, por sua vez, não poderá trabalhar se quiser ajudar Jéssica a cuidar do filho enquanto ela está na universidade. O destino de muitas e muitas jovens mães de origem proletária como Jéssica é o de ter que abandonar seus estudos, porque o Estado não fornece mínimas condições para que possam continuar na universidade.

Assim, por mais que Dilma continue proferindo seu discurso de que vivemos em uma “pátria educadora”, e que personagens como Bárbara digam com amargura que “o país mudou mesmo”, a realidade é distinta. O fato de que o filme de Muylaert tenha como produtora a Globo e seja indicado ao Oscar (duas instituições cujo interesse em incentivar qualquer produção cultural minimamente subversiva é completamente nulo) encontra um pouco de base nesse fato de que, por trás de uma denúncia da relação de exploração, ele transmita uma mensagem também profundamente conciliadora, a de que “aos poucos” é possível mudar, é possível, dentro de uma sociedade com milhões de “Jéssicas” e “Vals” sendo exploradas por Bárbaras, se chegar à justiça com governos que mantém a exploração intocada e proferem belos discursos de mudança.




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