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Que faria a esquerda brasileira que defende a polícia, se estivesse nos Estados Unidos?

André Barbieri

Que faria a esquerda brasileira que defende a polícia, se estivesse nos Estados Unidos?

André Barbieri

O curso à esquerda da consciência das massas nos Estados Unidos deu origem a uma nova situação mundial. Ao se dar no coração do imperialismo, o fenômeno de repúdio ao racismo estrutural do Estado e de sua polícia, que abrange a esmagadora maioria da população norte-americana (majoritariamente branca), habilitou no mundo todo o desencadeamento do ódio social contra a tradição colonialista e escravista das burguesias nacionais. O assassinato de George Floyd em Minneapolis colocou em relevo, na suposta “terra da democracia”, o choque inevitável entre as vidas negras e os interesses da propriedade capitalista.

De imediato, a onda dos protestos foi capaz de alterar o clima de passividade imposto pela pandemia, e reverter a relação de forças de maneira desfavorável para as correntes xenófobas de extrema direita, encabeçadas por Trump – o que abre caminho, não nos iludimos, à demagogia de outra ala dos inimigos do povo, como é o imperialista e racista Partido Democrata nos EUA, em cujo governo surgiu o Black Lives Matter em 2014, que devem ser rechaçados pela esquerda e os setores oprimidos.

Mas há consequências mais penetrantes, do ponto de vista estratégico. E, sem dúvida, o questionamento estrutural à polícia, às forças repressivas do Estado, é uma das mais importantes.

Uma nova geração com ódio da polícia nos EUA

Nos Estados Unidos, não há paralelo nas últimas décadas. Segundo recente pesquisa da Quinnipiac University, 67% dos votantes apoiam as manifestações do Black Lives Matter contra a polícia e o racismo estatal. Um número impressionante, depois de 1 mês de protestos e enfrentamentos contra a polícia nos EUA. Esse apoio aos protestos contra a polícia é de 84% entre os negros, 64% entre os hispânicos e 61% entre os brancos. A Pew Research Center dão números similares, afirmando que bem mais de ²/³ da população dos EUA segue apoiando os manifestantes contra a polícia. Segundo pesquisa da Associated Press, de maneira inédita mais de 75% da população, tanto branca como negra, considera a violência policial um problema de primeira ordem. Segundo a agência FiveThirtyEight, um terço da população nacional apoia o desfinanciamento da polícia, um número recorde.

Explorando mais os dados, vemos que “placas tectônicas” se moveram de forma consolidada na consciência de segmentos de massas. A mesma Quinnipiac University, mais da metade da população (51%) desaprova a conduta da polícia a nível nacional – a polícia tinha 65% de aprovação em 2018 – sendo 41% nacionalmente favoráveis a remover financiamento da polícia para incrementar o orçamento dos serviços públicos. Na juventude, a mudança é categórica: 52% dos jovens entre 18 e 29 anos participou de manifestações contra a polícia nas últimas três semanas, e 53% dos jovens com diploma universitário o fizeram. Essa juventude, que foi a base do fenômeno sanderista em 2016 e 2020, e que continua na vanguarda da politização pela esquerda mesmo depois do fracasso de Bernie Sanders (apoiador de Joe Biden, que aprovou leis de “mão dura” da polícia contra os negros), é a mesma geração que segundo enquete da agência Gallup tem uma visão majoritariamente mais favorável ao socialismo (51%) que ao capitalismo (49%).

Mas esses efeitos não se reduzem à população em geral. Após o assassinato de Floyd, a classe trabalhadora norte-americana – que havia feito inúmeras ações nos locais de trabalho contra os perigos a que se expunham pela COVID-19 – vem protagonizando ações que tem como conteúdo um repúdio contundente à violência policial, ao racismo das forças repressivas do Estado, e à presença de policiais em seus sindicatos. Existe uma verdadeira onda de ações operárias contra o racismo estatal: segundo pesquisa Mike Elk, do PayDay Report, mais de 500 greves e paralisações ocorreram nas últimas três semanas, que combinavam demandas específicas das categorias com o repúdio aberto à violência policial. A mais importante delas foi protagonizada pelos portuários, que paralisaram nada menos de 29 portos em toda a Costa Oeste (de San Francisco a Seattle, de Oakland a Portland), organizada pelo International Longshore and Warehouse Union (ILWU), sindicato fundado em 1937 com longa tradição de combate à polícia e ao racismo. Portuários em Baltimore, e trabalhadores da imprensa de Pittsburgh paralisaram trabalhos contra a violência policial. No estado de Washington houve mais de 250 paralisações operárias no setor público. Os metalúrgicos organizados na United Auto Workers (UAW) pressionaram a direção sindical a manifestar-se contra a polícia, enquanto paralisavam 8 minutos e 46 segundos da produção (tempo em que Floyd teve o joelho de Derek Chauvin em seu pescoço) nas fábricas das principais automotrizes. Os professores em todo o país protestaram contra a polícia em seus sindicatos, e os professores de Minneapolis, Chicago e Los Angeles exigem a dissolução dos departamentos de polícia que atuam nas escolas. Os trabalhadores da saúde, linha de frente no combate à COVID-19, fizeram abaixo-assinado para expulsar os policiais de seu sindicato. No setor tecnológico do Vale do Silício, os pronunciamentos dos trabalhadores não foram menos claros: 1.600 funcionários da Google assinaram uma petição exigindo que a empresa cesse a venda de softwares para a polícia, uma exigência realizada também por funcionários da Amazon.

De fato, praticamente todas essas ações operárias acompanham a exigência “Cops out of our Unions” (Expulsemos os policiais de nossos sindicatos), exigência feita à burocracia sindical da AFL-CIO, maior central dos EUA, que abriga os 100.000 policiais da International Union of Police Associations, repudiada pelos trabalhadores.

A esquerda norte-americana busca sintonizar-se com esse clima social de enfrentamento contra a polícia. O Democratic Socialists of America (DSA), principal organização da esquerda, em sua seccional de Nova York, junto ao DSA AfroSocialist and Socialists of Color Caucus, com sindicatos e organizações do movimento negro, convocam para esta segunda-feira uma marcha massiva na maior cidade dos EUA pelo desfinanciamento e abolição da polícia, temas que se converteram em debates nacionais, especialmente na juventude, como mostra esta coluna do The New York Times. Nossos companheiros do Left Voice, que editam uma das principais páginas da esquerda norte-americana, com 400 mil visitas mensais, estão na linha de frente junto a dezenas de milhares contra o racismo estatal, levantando uma perspectiva anti-imperialista e revolucionária e, como parte disso, a perspectiva de acabar com a instituição policial, que só pode terminar com o fim do capitalismo.

Temos diversos pontos de divergência, expressos publicamente nos fóruns comuns de debates, com o DSA, cuja direção não levanta uma estratégia anticapitalista (tendo apoiado Bernie Sanders enquanto disputava candidatura, considerando possível construir uma organização socialista por dentro do Partido Democrata), e que no tema da polícia defende apenas a diminuição gradual seu orçamento. Essas divergências não nos impedem, entretanto, de atuar em comum para massificar esse movimento de jovens e trabalhadores contra a polícia. Trata-se de um valor inestimável que uma nova geração questione estruturalmente a polícia e as forças repressivas do Estado norte-americano, que oprime negros, latinos e imigrantes internamente, e os povos do mundo interior fora de suas fronteiras. É com isso que poderá surgir o material estratégico para a construção de um partido anticapitalistas, socialista e revolucionário nos EUA, um debate que o Left Voice faz no interior do movimento.

A esquerda brasileira envergonha o movimento de combate à polícia nos EUA

Assim, setores de massas nos Estados Unidos estão enfrentando diretamente o racismo policial e questionando a instituição da polícia, com discussões públicas sobre o desfinanciamento, a expulsão da polícia dos sindicatos e mesmo sua abolição. Diante desse panorama, é chocante ver como a política da esquerda brasileira é oposta pelo vértice à que vemos nas massas norte-americanas, capitulando de maneira vergonhosa a essa instituição racista e assassina do Estado.

Ao invés de exigir que nem mais um centavo do dinheiro público vá para o orçamento policial, organizações da esquerda brasileira tradicionalmente defendem seus motins por melhores condições materiais; ao invés de exigir a imediata expulsão da polícia de nossos sindicatos, incentiva-se uma espécie de “sindicalização” da polícia, tratando-a como parte da classe trabalhadora. Não resta dúvida que diante do que ocorre nos EUA, essa esquerda passa vergonha no Brasil.

Naturalmente não nos referimos ao PT quando falamos do tratamento que a polícia recebe da esquerda. O PT é parte orgânica desse regime político que atende aos interesses dos capitalistas, que precisam de suas forças repressivas para a defesa de sua propriedade. Durante as presidências de Lula e Dilma, juntos aos seus governadores e prefeitos, o PT fortaleceu o aparato repressivo do Estado, em todos os níveis. Esse aparato policial reprimiu greves operárias nas grandes obras da construção civil, e em boa medida é hoje base do governo Bolsonaro. Mesmo assim, podemos ver governadores petistas saudarem entusiasticamente os oficiais da polícia militar, como fez Fátima Bezerra, governadora do Rio Grande do Norte, saudando os 186 anos da PM potiguar, responsável pelo assassinato do jovem Geovane Gabriel.

A conduta petista é completamente esperada. Mas que dizer da defesa dos motins policiais, incessantemente defendida pelo PSTU por anos? O PSTU considera a polícia parte da classe trabalhadora, a despeito das generosas ilustrações que essa mesma polícia faz, diariamente, de que não passa de um “destacamento especial de homens armados” para a defesa do capital, como definia Engels. Ao PSTU pouco importa os assassinatos de milhares de jovens negros e de trabalhadores pela polícia: apoia sem pestanejar todos os motins policiais possíveis, e não é diferente nesse governo da extrema direita sustentado pelas bases policiais. Que dizer do apoio atroz do PSTU ao motim da polícia militar do Ceará, que assassinou centenas de negros e brancos cearenses durante seu “movimento”, organizado por deputados e sargentos bolsonaristas, como o Capitão Wagner (PROS), e apoiado por Eduardo Bolsonaro? Não à toa é recorrentemente repudiado nas redes sociais ao apoiar a polícia. Chega a ser ridículo uma organização que se diz socialista atingir tal ponto de degradação teórica e política nesse ponto estratégico para os marxistas, apoiando os protestos dos inimigos jurados da classe trabalhadora e dos negros.

Com a “teoria” reacionária da conquista dos policiais para “o lado dos trabalhadores”, qual a diferença entre a política do PSTU e a de setores que reivindicam abertamente o stalinismo, como Jones Manoel do PCB, segundo o qual esse seria o momento para “a esquerda criar bases na polícia”? Para a nefasta tradição stalinista, que com métodos policiais destruiu revoluções no século XX e perseguiu trabalhadores em todo o mundo, a defesa da polícia sempre esteve acima da luta de classe dos negros e dos trabalhadores. Para os marxistas, o combate à polícia é parte do abecedário do comunismo.

O PSOL não se encontra fora do escopo da esquerda que se reclina no regaço da polícia. O PSOL abandonou até mesmo a tradição reformista que, na questão da mal chamada “segurança pública”, minimamente partiria de que a resposta só pode se dar a partir do terreno econômico-social (nem falar do combate ao capitalismo). Especialmente no RJ, onde é mais forte, o PSOL faz inúmeros gestos de solidariedade à polícia, umas das mais assassinas do país. Isso se expressa numa linha permanente, mesmo após o assassinato da Marielle, de clamar pela ilusão de “outra polícia”. É chocante como o PSOL não se envergonha de comemorar a filiação de centenas de policiais num partido que se pretende esquerda, como Marcelo Freixo fez em entrevista ao falar sobre 200 policiais que entraram no partido em Pernambuco, em 2018.

Nesse ano, o PSOL do Rio de Janeiro lançou a candidatura de Orlando Zaccone, delegado da Polícia Civil, e elaborou um programa para a “segurança pública” idealizado por Íbis Pereira, ex-comandante da PM, que propaga a falácia de humanização da polícia. Tal programa reacionário foi reproduzido nas campanhas dos principais referenciais políticos desse partido, como Freixo, Tarcísio Motta, e também do candidato à presidência Guilherme Boulos. Sâmia Bomfim, deputada federal do MES em SP, tem em seu programa o item sobre a “valorização dos profissionais da segurança pública”, num contraste direto com o que vemos na juventude e nos trabalhadores dos EUA. O PSOL de fato acredita que, governando um estado ou município, pode modelar de forma “humanizada” a polícia.

Por mais esforço que se faça, um breve exame não deixa outra conclusão senão que a esquerda brasileira se encontra completamente atrasada se comparada com o movimento de massas nos EUA. Fogem da independência de classe como da peste, quando a condição dessa independência passa necessariamente pelo repúdio incontestável à polícia.

Que faria essa esquerda brasileira se estivesse nos Estados Unidos, com a luta imponente de setores de massas contra o racismo policial? Se possuíssem qualquer vontade de construir uma corrente política para influenciar os acontecimentos nos Estados Unidos, provavelmente PSTU e PSOL seriam rechaçados pela juventude em luta contra a polícia.

Polícia não é trabalhador: uma esquerda independente requer esse lema

A polícia é inimiga irreconciliável da classe trabalhadora. Os policiais não são trabalhadores, são burgueses armados. Na tradição marxista, os principais teóricos e dirigentes revolucionários explicaram incessantemente o caráter de classe dessa instituição. O fato de um policial ser de extração pobre, ou mesmo de família trabalhadora, pouco importa para a caracterização de sua função social, que passa a ser a defesa armada da propriedade privada burguesa. Isso era claro para Leon Trótski. Debatendo em sua obra “Revolução e Contrarrevolução na Alemanha” contra as ilusões da socialdemocracia alemã na polícia, durante os anos 1930, afirmava que “um trabalhador que entra para a polícia deixa de ser um trabalhador, passa a ser um agente fardado da burguesia”. Em meio à revolução russa, sua caracterização sobre a polícia não era menos clara: “O desarmamento dos ‘faraós’ [apelido para a polícia] tornou-se uma palavra de ordem universal. A polícia é o inimigo cruel, implacável, odiado e odioso. Ganhá-los está fora de questão”.

A força dessas palavras se faz sentir em cheio na situação brasileira, não apenas pelas barbaridades de Bolsonaro e sua fixação nas forças repressivas que o sustentam, mas por todo o autoritário arcabouço jurídico encabeçado pelo STF, que dispõe das prisões e cárceres. O STF é responsável pelo Brasil ter a terceira maior população carcerária do mundo, com 700 mil presos, sendo que 64% desses são negros, em que um de cada três responde por crimes ligados ao tráfico de drogas.

Lênin também desenvolve, com sua habitual clareza, o caráter irreconciliável dos interesses da polícia frente aos interesses dos trabalhadores. Comentando a obra de Engels, “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, classifica a polícia como um destacamento de homens armados a serviço do Estado burguês, um órgão de opressão dos trabalhadores pela classe dominante:

Para a grande maioria dos europeus do fim do século XIX, aos quais Engels se dirige e que não viveram nem observaram de perto nenhuma grande revolução, não poderia ser de outra forma. Não compreendem de maneira alguma o que seria a "organização espontânea da população em armas". De onde vem a necessidade de corpos especiais de homens armados (polícia, exército permanente), separados da sociedade e superiores a ela? Os filisteus da Europa ocidental e da Rússia respondem, muito naturalmente, a essa pergunta, por uma ou duas frases colhidas em Spencer ou em Mikhailovsky, e alegam a complicação crescente da vida social, a diferenciação das funções sociais, etc. Essas alegações parecem "científicas" e tranquilizam admiravelmente o bom público, obscurecendo o principal, o essencial: a cisão da sociedade em classes irreconciliavelmente inimigas” (O Estado e a Revolução).

Não é possível reformá-la; estrategicamente, o combate ao capitalismo exige clareza sobre a perspectiva de destruição das forças policiais dos capitalistas. Uma coisa é indissociável da outra. A juventude e segmentos dos trabalhadores que lutam nos EUA por justiça a George Floyd, mesmo sem necessariamente conhecer o marxismo, aproxima-se bem mais de sua teoria sobre as forças repressivas do Estado do que a esquerda brasileira.

Por isso, ela mostra o caminho. Precisa de uma organização socialista e revolucionária à altura da batalha contra o racismo e o imperialismo, para que o Partido Democrata não desvie para o interior do regime bipartidário a vontade política de milhões que despertaram para a política. Devemos ajudar nessa tarefa. Antes, entretanto, cumpre dissipar qualquer ilusão quanto à atitude dos marxistas diante da polícia. No Brasil, mais que nunca, os trabalhadores merecem uma esquerda com independência de classe, que saiba enfrentar o racismo estatal e sua polícia, seja ela manejada pela extrema direita bolsonarista, pelas demais forças autoritárias e golpistas desse regime, ou pelo PT.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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