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ENEM | Professor Luiz Carlos de Freitas, da UNICAMP, fala sobre a repercussão dos resultados do ENEM.

O Esquerda Diário entrevistou o Professor Luiz Carlos de Freitas, diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP, sobre a repercussão dos resultados do ENEM.

Mauro SalaCampinas

sábado 8 de agosto de 2015 | 00:08

ED - Professor, essa semana saiu o resultado por escola do ENEM, com grande repercussão na grande mídia. Como o senhor vê a grande repercussão desses resultados?

LCF - Isso sempre acontece. É a hora do show. Os jornais publicam e durante um mês são feitas todas as ilações possíveis a respeito dos resultados e depois esquecem disso até a próxima edição do ENEM, no ano que vem. E aí volta a aparecer tudo de novo, com todas as divulgações, os “press releases” do governo... mas esse país padece, em todos os níveis de avaliações de larga escala, de relatórios decentes. Nós não temos relatórios decentes sobre as nossas avaliações. Elas são “press releases” que são divulgados, entrevistas do presidente do INEP, desse ou daquele especialista, mas a fonte sempre termina sendo o retrabalho que a imprensa faz dos dados divulgados pelo INEP, interpretando ela mesma tais dados. Já começa a precariedade aí.

O exame é precário, porque ele não é uma avaliação: ele é um processo de seleção. Ele tentou ser uma avaliação no passado até que foi convertido em forma de entrada para a universidade. Ele deixou de ser um processo de avaliação e passou então a ser um processo de seleção. Esses processos não são a mesma coisa. Na qualidade de seleção, a finalidade dele é apontar que se esse ou aquele estudante tem uns décimos a mais ou a menos que um outro, e não indagar sobre as razões que produziram esses décimos a mais ou a menos... para isso seria necessário outra preocupação. Ele é um exame de seleção, portanto, precário.

O ENEM não tem representatividade para ser desagregado até o nível da escola. Ele é um exame voluntário, as pessoas podem ou não fazer. De uma mesma escola alguns se inscrevem outros não. Se me lembro bem, existe um limite de dez alunos para que a escola seja incluída na análise, mas dez alunos, mesmo que fosse de uma única sala de aula é pouco... ainda mais se você considerar que os alunos com mais dificuldade de aprendizagem provavelmente nem se motivarão a se inscrever no ENEM, você já tem uma seleção de partida de quem já se dispõe a fazer o ENEM. Portanto, ele não tem representatividade. Se ele não tem representatividade, não há que se falar, nem pode-se falar, em comparação entre escolas.

ED - Mesmo assim, umas das coisas que são muito divulgadas é a comparação entre as escolas privadas e a rede pública, sempre desenhando um fracasso da rede pública. Será que há um sentido político por trás dessa divulgação, de deslegitimar a rede pública dizendo que as escolas privadas são melhores?

LCF - Só pode ser esse o motivo, pois tecnicamente não tem nenhuma validade se comparar a escola pública com a escola privada. Mesmo se você levar em conta o nível sócio-econômico (coisa que no passado nem era levado em conta), o fato é que ele é um exame optativo, você não tem uma representatividade planejada para que se possa fazer essa comparação. E se exatamente aqueles que tem mais dificuldade podem estar desestimulados a prestar o exame, você tem aí outros fatores que estão influenciando o modelo de obtenção dos dados, portanto não há que se falar de comparações.

ED - Tem se discutido muito, nos últimos anos, a questão do ensino médio e da reforma curricular para o ensino médio. A gente sabe que essas avaliações são uma via indireta para reformar o currículo da escola, e agora tem se discutido a questão de uma base nacional comum para a educação. Como o senhor vê a relação entre o currículo, a avaliação e a questão da base nacional comum do currículo?

LCF - Os reformadores empresariais entraram num novo ciclo. Até agora era suficiente um parâmetro nacional, as diretrizes curriculares... agora eles querem mais. Eles querem uma possibilidade de interferência maior em cada escola. E essa possibilidade só pode ser amplificada se você antes fixar uma base nacional, que permita você rever todos os instrumentos de avaliação. O que se prevê é que, ato contínuo à definição de uma base curricular comum, todos os instrumentos de avaliação do INEP serão rearticulados a essa nova base nacional. E como agora ela tem obrigatoriedade nacional, você está diante de um passo que envolverá a criação de um mercado nacional educacional, do ponto de vista das empresas que operam com avaliações, assessorias e com material didático. Porque se você não tem uma base nacional obrigatória, você não tem mercado com escala nacional. Agora será criada a possibilidade de que se tenha o interesse de grandes corporações educacionais, que operam ao redor do mundo, no Brasil, porque agora se criou escala, você pode ter materiais instrucionais que são usados do Amapá ao Chuí. Isso vai interessar a muita gente. Então, estamos numa fase em que há um realinhamento na área educacional com vistas a criar os mecanismos para se responsabilizar as escolas e, obviamente também, junto com essa responsabilização, premiar quem vai bem e punir quem vai mal. Acho que o documento da "Pátria Educadora", divulgado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, vai nessa direção, já dizendo que se pode afastar diretores da escola. Então você já começa a ter um desenho mais elaborado da política de responsabilização que se combina com meritocracia, cuja destinação final é incentivar a privatização da educação pública.

ED - O ENEM, parece, está cada vez mais sendo reconhecido como vestibular e cada vez menos como uma avaliação do sistema de ensino. Mas mesmo como vestibular ele é saudado como um vestibular mais democrático. O senhor vê essa democratização do acesso à Universidade via ENEM?

LCF - Depende com o que se compara. Como a gente vem de um ensino superior bastante elitista, qualquer “medidazinha” que se faça para permitir um fluxo um pouco maior de pessoas fazendo o exame é saudado com uma medida democrática. Na realidade precisamos de muito mais que isso. Não adianta fazer um exame para 8 milhões de pessoas e depois ter só 200 mil vagas ofertadas pelo SISU. Ou seja, que democracia é essa em que você democratiza a participação nos exames, mas não democratiza a entrada efetiva na universidade. Temos que ficar discutindo milésimos nas diferenças das notas, que obviamente são produtos abstratos porque não correspondem às distinções reais entre as pessoas. Você pega o caso de medicina, onde você tem 820 pontos e outro 821, um entra e o outro não. Mas isso não corresponde a uma diferença real dos estudantes que estão competindo, é um mecanismo de seleção, pura e simplesmente. Mas se a questão é democratização, o problema não está em permitir que se faça mais exames. Se é para democratizar, você tem que ter mais vagas para aqueles que passam no exame. A ênfase não pode ser no exame em si, ou no número de pessoas que faz o exame, não é aí que se joga a democratização do ensino superior, e sim nas vagas disponíveis.




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