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Perry Anderson e o enigma da burocracia chinesa

André Barbieri

Perry Anderson e o enigma da burocracia chinesa

André Barbieri

O celebrado historiador britânico, que foi parte do comitê de redação da New Left Review e famoso pelo ensaio “Considerações sobre o marxismo ocidental”, de 1973, não deixou de dedicar atenção a um dos problemas cruciais para o marxismo no século XXI: a China e seu destino político no mundo. No opúsculo “Duas Revoluções: Rússia e China”, de 2010, Perry Anderson busca dar conta das razões que facultaram à China ascender a uma das principais potências econômicas mundiais, tendo à sua testa o velho Partido Comunista Chinês. Diante desse fenômeno, surge o interrogante: é possível confundir êxitos econômicos com o papel histórico da burocracia de Pequim? Se o “marxismo ocidental” tinha como traço central o abandono das discussões de estratégia – no marco da separação entre teoria e prática, o que beneficiou a política das burocracias de matriz stalinista em toda a segunda metade do século XX – vale pensar quanto desse abandono do pensamento estratégico ainda persiste na análise do enigma do gigante chinês.

Em “Duas Revoluções: Rússia e China”, publicado originalmente em 2010, o historiador britânico Perry Anderson desfia um novelo interessante sobre os paralelos e dessemelhanças entre os dois processos históricos, e seus respectivos desenlaces. O tema se tornou objeto de estudo de parte importante da intelectualidade ligada à historiografia marxista, e de pesquisadores ocupados em entender o fenômeno chinês. Peter Nolan, autor de “Is China Buying the World?”, também explorou o tema na New Left Review [1], marcando o profundo impacto do colapso da União Soviética sobre o pensamento político chinês, tema também tratado, à sua maneira, pelo filósofo francês Alain Badiou. A discussão que atravessa o ensaio de Anderson tem um norte interpretativo claro: se o século XX foi marcado pela trajetória da Revolução Russa, o século XXI será conformado pelo desfecho da Revolução Chinesa. Na perspectiva do autor, a chocante desintegração da URSS é contrastada com a ascensão econômica da China: enquanto o Estado soviético se esfacelou, após sete décadas, sem um tiro, fazendo a Rússia retornar à condição de um capitalismo dependente da exportação de matérias-primas, a República Popular, ao entrar em sua sétima década, é a força motriz da economia capitalista mundial, apresentando nos últimos trinta anos o maior e mais rápido aumento de renda per capita jamais registrado. As vantagens econômicas da China são sublinhadas com capricho, algo que se conecta com o próprio objetivo do ensaio. Como um todo, Anderson busca a explicação para o contraste entre os destinos da Rússia e da China, retratando com pertinência um panorama sobre as lições tiradas pela burocracia do Partido Comunista Chinês diante da experiência soviética, aproveitando a vantagem de “não ser o primeiro a mover as peças, e sim o segundo”, para preservar-se e elevar a experiência chinesa acima do fracasso stalinista na Rússia.

A análise sobre as convergências e divergências das experiências sino-soviéticas merece um trabalho à parte, pela importância teórica e estratégica própria que encerra. Interessa-nos aqui especialmente abordar a concepção de Anderson sobre a superestrutura política chinesa, em particular a apreciação sobre o Partido Comunista Chinês, tal como descrito no ensaio. Essa complexa problemática carrega importância axial para a teoria política marxista, e dela depende a própria interpretação do fenômeno ascensional chinês e seu curso no século XXI.

Antes de abordar o temário do PCCh, Anderson dialoga com três vertentes de interpretação da ascensão econômica da China. Em primeiro lugar, faz notar a corrente mais em voga entre os historiadores, que atribui o acelerado crescimento chinês aos legados milenares do seu passado imperial, especialmente o dinamismo comercial baseado na agricultura intensiva e a expansão do comércio interno, legados que, apesar dos obstáculos impostos pela penetração estrangeira durante mais de um século, seriam responsáveis por fazer a China retornar a sua posição anteriormente adquirida no mundo. A segunda corrente, notadamente liberal e preponderante entre os economistas, adverte em contraponto as poucas pistas que o passado imperial ofereceria para o crescimento moderno da China, apontando a falta de intercâmbio comercial com o estrangeiro e a ausência de proteção à propriedade privada como elementos explicativos para o atraso chinês; a gradual abertura dos mercados e a proteção à propriedade seriam os responsáveis por libertar o dinamismo econômico do país. A terceira corrente nomeada por Anderson, com peso entre os sociólogos, coloca a chave da ascensão do gigante asiático na Revolução Chinesa de 1949, tendo as realizações de Mao e Deng Xiaoping estabelecido as bases para a Era das Reformas e para a conquista de um Estado soberano e unificado, pela primeira vez em séculos livrando a China do status de submissão semicolonial.

Segundo Anderson, nenhuma dessas interpretações seria absoluta, e na “indispensável hierarquia dos fatores”, as conquistas da Revolução Chinesa se destacariam como o elemento central, especialmente no que distingue a ascensão chinesa da emergência prévia de países como Japão, Coreia do Sul e Taiwan: enquanto estes países estão basicamente destituídos de autonomia militar e diplomática, tendo seu desenvolvimento vinculado à proteção dos Estados Unidos, a China construiu um Estado completamente soberano na arena internacional, o que lhe permitiu assimilar um influxo maciço de capital externo, controlando seu fluxo por meio do poder político, ao mesmo tempo em que dominava o capital nacional graças ao controle contínuo das instâncias econômicas estratégicas, as finanças e as fábricas (Anderson 2018: 66).

A partir de 1978, com a ascensão de Deng, Anderson faz referência a duas frentes de ação, levadas adiante por parte da burocracia do Partido Comunista Chinês para reequilibrar sua situação política: a agrícola e a industrial. As medidas tomadas em ambas as áreas tinham como objetivo aumentar a produtividade e a rentabilidade auferida pelo Estado, utilizando mecanismos de mercado. Na área da agricultura, faz notar a segunda reforma fundiária que projetou a produção do campesinato chinês, baseada na desativação ordenada das comunas populares, e na distribuição criteriosa de terras entre cada uma das famílias camponesas que nelas vivessem, o que ficou conhecido como “sistema de responsabilidade por unidade familiar”. Sob esse sistema, as famílias camponesas poderiam dispor de suas novas propriedades para produzir o que bem entendessem contanto que as cotas estabelecidas pelo Estado fossem cumpridas. No setor industrial, as empresas estatais foram gradualmente autorizadas a cobrar preços de mercado para toda a produção que excedesse as cotas exigidas pelos planos governamentais, uma vez cumpridas as metas produtivas. Na prática, o Partido Comunista Chinês arrendava as empresas aos gerentes assim como cedia terras aos camponeses na forma de contratos de arrendamento, conservando ambas sob sua propriedade.

Esses empreendimentos se desenvolveram em exemplos específicos em cada um dos nichos de produção. No campo, deu origem às “Empresas de Povoados e Aldeias” (conhecidos como TVEs, ou “Township and Village Enterprises”), que possuíam um estatuto híbrido entre propriedade estatal, coletiva e privada – devido à concessão estatal, e por vezes participação acionária dos governos locais, e a administração privada com benefício de rendimentos. As TVEs incrementaram a produção rural de indústrias leves (tijolos, têxteis, etc.) a uma taxa anual de 20% e aumentaram a ocupação, de 28 milhões para 135 milhões de pessoas entre 1978 e meados de 1990 (Naughton 2007: 83). Nas cidades costeiras, a indústria urbana viu a emergência das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), regiões industriais que mediante isenção de tarifas de importação (para a produção destinada à exportação) e oferta de mão de obra superbarata, atraíram investimentos de multinacionais estrangeiras, especialmente dos afluentes capitalistas expatriados de Hong Kong, Taiwan e do Sudeste Asiático.

Entretanto, durante o relato, que resume sinteticamente a apreciação que o autor traz sobre a evolução da formação sócio-econômica chinesa depois da Revolução de 1949, sente-se uma inquietação latente. Isso porque essas medidas representaram passos significativos no curso da restauração capitalista na China, um elemento desconsiderado por Anderson neste estudo sobre a China e a Rússia. O surgimento de uma camada de empresários multimilionários nos altos escalões do Partido Comunista Chinês tem sua origem nesse processo, também acompanhado pela privatização das empresas estatais, a permissão de demissões em massa e a remoção dos direitos trabalhistas de milhões de operários chineses, base da antiga indústria estatal.

Aceitar uma clivagem tão expressiva entre os resultados imediatos para a economia chinesa, e a sistemática erosão das bases da propriedade estatal por parte da burocracia de Pequim, expandindo assim as fronteiras para a reconstituição da propriedade privada dos meios de produção, proporciona um efeito frustrante na análise de Anderson.

Ao não se deter sobre o processo de restauração capitalista na China, já bastante adiantado (ou mesmo culminado) à época do ensaio, Anderson termina não esclarecendo a complexa relação entre o caráter do PCCh e as atuais bases sociais que sustentam a ascensão chinesa. Estamos tratando de uma economia capitalista, ou não? Se estamos num regime capitalista, quais suas diferenças em relação ao capital ocidental? Quais as peculiaridades do regime de propriedade chinês? Sem elucidar esse temário, Anderson faz menção, na comparação com a União Soviética, a uma espécie de comunismo chinês, que não chega a definir claramente, mas que está presente ao longo do texto:

Com a derrocada da União Soviética, nenhuma fórmula para caracterizar a guinada histórica que ela significou se tornou tão sacramentada quanto a do “colapso do comunismo”. Passados vinte anos, ela se nos afigura eurocêntrica. Em certo sentido, o comunismo não apenas sobreviveu, como se tornou a narrativa de sucesso dos tempos atuais (Anderson 2018: 24).

A terminologia que o liberalismo consagrou ao se referir à China como um país “comunista” atende a um determinado objetivo, a saber, ligar a concepção de mundo desenvolvida cientificamente por Marx e Engels – a da emancipação da humanidade do sistema de produção capitalista e do Estado a nível global – aos governos autoritários, liberticidas e autocráticos de matriz stalinista. Naturalmente, Perry Anderson está longe de compartilhar esse objetivo. Entretanto, ao não problematizar a classificação da burocracia autocrática chinesa como “comunista”, como vemos em algumas passagens do ensaio, deixa no ar um dilema substancial para o marxismo. É quase impossível ler linhas semelhantes e não lembrar dos artigos de Anderson na New Left Review que primavam pelo pessimismo político na década de 1990, diante da alegada falta, no pensamento ocidental, de perspectivas sistematicamente alternativas à ideologia neoliberal, “a mais exitosa da história mundial” [2]. A lacuna entre a ascensão chinesa e a contrarrevolução social fica sem ser preenchida, abrindo alas a classificações equivocadas.

Este ausente em Anderson tem uma origem: responde à debilidade de sua crítica estratégica sobre a burocracia do Partido Comunista Chinês. É sobre isso que nos deteremos.

Uma ausência crítica: em que coincidiu a burocracia de Pequim com a da URSS?

Um mérito inegável do trabalho editorial de Anderson na New Left Review foi o lugar central que encontrava nela a crítica ao stalinismo. Não é diferente neste ensaio. Tanto mais chama a atenção, sem embargo, uma sorte de idealização da burocracia maoísta, em relação à burocracia herdeira do stalinismo na URSS.

Aprendendo com o brezhnevismo, o PCCh institucionalizou a renovação de seus quadros dirigentes, impondo limites para o exercício dos cargos, e regulando a transferência de poder de uma geração para outra Sem experiência revolucionária alguma, os atuais titulares do poder e os que estão por vir têm uma educação mais formal, e como nunca antes, dispõem de recursos técnicos e intelectuais mais amplos e diversificados. O crescimento econômico e o sucesso da diplomacia chinesa restauraram a credibilidade política da RPC: o Partido conta atualmente com um grau de legitimidade popular como não se via desde a década de 1950 (Anderson 2018: 67).

Anderson tem razão em demonstrar a ossificação da burocracia da URSS, tanto em vida de Stálin, quanto no período pós-stalinista, com a ascensão de suas figuras emblemáticas: Khruschov, Brezhnev e Gorbatchov. A “floresta petrificada de funcionários públicos” do Partido Comunista da União Soviética, como adequadamente classifica Anderson a nomenklatura de Moscou, destituídos de qualquer capacidade criadora, administrava a estagnação da economia soviética, numa sociedade em que a expectativa da vida decrescia e o caminho à reversão de todas as conquistas da Revolução de Outubro, já degeneradas por todo o ciclo comandado por Stálin, praticamente chegava à sua conclusão. Uma visão clara em relação à burocracia de Moscou, não obstante, desautoriza um olhar ingênuo sobre a burocracia de Pequim, que entretendo diferenças consideráveis em relação à URSS – capaz de levar a conflitos entre ambos os países durante a segunda metade do século XX – não diferiam em relação a um elemento fundamental: a ojeriza diante da perspectiva da expansão internacional da revolução, e a adesão particular à tese do nacionalismo socialista, tributária da concepção do “socialismo em um só país” de matriz stalinista.

O historiador britânico glosa as diferenças existentes entre as duas castas governantes, na União Soviética e na China, dando vantagem comparativa à burocracia chinesa, situando no caráter de sua liderança política o princípio explicativo para descortinar o destino da Rússia decadente, em contraposição à prosperidade ascendente da China. Há um problema de origem nessa abordagem teórica, qual seja, a de reduzir demasiado as ambições de uma concepção de mundo transformadora, que incorreria no risco de eleger, como veículo político mais adequado ao desenvolvimento econômico, uma ou outra espécie de estatismo nacionalista. Esta eleição não está longe apenas de uma cosmovisão que busque os caminhos para a alteração da ordem sócio-econômica capitalista para um sistema social superior: estrategicamente, é uma falsa escolha, que obriga a aceitar os paradigmas de organizações políticas responsáveis pela restauração da velha ordem capitalista em seus respectivos territórios – quando não partícipes diretas na derrota de processos revolucionários a nível mundial – aniquilando em maior ou menor medida as conquistas revolucionárias anteriores. Uma visão que, cabe lembrar, é menos crítica que a apresentada em outras obras de Anderson, como Nas trilhas do materialismo histórico (1983), e o clássico Considerações sobre o marxismo ocidental (1976).

Vale a pena repassar alguns contrastes feitos pelo historiador britânico entre as experiências da Rússia e da China, cuja diferença mais decisiva “talvez residisse no caráter de suas lideranças políticas” (Anderson: 46), constantemente em benefício da elite partidária de Pequim. Depois de classificar a massa abúlica da direção do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) como uma casta de burocratas medíocres, incapazes de criatividade ou iniciativa, administrando a paralisia de uma economia que se degradava, a direção do Partido Comunista Chinês é apresentada como um coletivo revolucionário de têmpera leninista, dotada de disciplina e criatividade, capaz a um só tempo de paciência tática e de experimentação cautelosa, adepto às iniciativas mais ousadas e, quando exigiam as circunstâncias, adotava as guinadas mais dramáticas. Tendo caracterizado a burocracia do PCUS como um conjunto sem harmonia liderado por figuras inexperientes e isoladas, que se faziam cercar de assessores e publicistas imbuídos de um ingênuo entusiasmo (Schwärmerei, em alemão) para a preservação do chefe e de seus cargos, a casta partidária de Pequim aparece sob uma luz curiosamente distinta. Deng Xiaoping e os “Oito Imortais” (Chen Yun, Bo Yibo, Peng Zhen, Yang Shangkun, entre outros, membros permanentes do Politburo chinês) tinham todos aguda consciência das modificações na conjuntura chinesa e mundial, críticos do fosso científico e tecnológico que separava a China do restante das potências capitalistas avançadas, desafio diante do qual os Imortais se erguiam para chacoalhar as bases do regime pós-maoísta e elevar a grandeza nacional sem intimidação. Diferentemente da gerontocracia soviética, que temia as novas gerações como ameaças a seus cargos, os veteranos do PCCh mostravam uma tolerância mais elástica aos novos ingressantes (exemplificada pela ascensão de Hu Yaobang e Zhao Ziyang, como secretário-geral do Partido e presidente do Estado, respectivamente). Ideologicamente, afinal, a renúncia da intelectualidade chinesa ao velho cânone confuciano acrescentava uma vantagem ímpar à nomenklatura chinesa:

Essa veemente rejeição das tradições nativas, que destoava por completo de qualquer corrente de opinião ou de ideias no Japão, não refletia – diferentemente do Japão também – nenhuma tentação profunda pelo Ocidente. Na China o retrospecto predatório das potências ocidentais era demasiado flagrante para permitir algum tipo de západnitchestvo [visão de mundo, nos círculos intelectuais russos, que privilegiava os valores ocidentais, NdA]. A carnificina mútua a que a Europa se entregou na Primeira Guerra Mundial foi o remate das lições sobre a ganância imperialista da Ásia, tendo o casamento de ambas em Versalhes precipitado o próprio Movimento Quatro de Maio. O traço distintivo da intelligentsia chinesa após o colapso do sistema de exames imperiais foi a repulsa ao passado tradicional e a execração do presente capitalista, conforme ambos se combinavam na China dos senhores da guerra (Anderson 2018: 49-50).

As diferenças sociais e políticas nos processos da Rússia e da China atendem às variadas circunstâncias nacionais e internacionais que ambas as formações socio-políticas tiveram de atravessar na primeira metade do século XX. O triunfo de uma revolução para outra dista 32 anos, em que profundas transformações internas na Rússia tiveram influência decisiva no destino da China.

A Revolução Russa de 1917 foi fruto da Primeira Guerra Mundial, e deu origem, sob a direção de Lênin e Trotski, à Internacional Comunista, cujos Quatro Congressos entre 1919 e 1922 projetaram as principais lições programáticas e estratégicas para a expansão de partidos comunistas a nível internacional – uma política consciente, solidamente fundada na concepção de que o destino da Rússia soviética dependia da internacionalização da revolução dos trabalhadores aos países imperialistas centrais, centros de gravidade da burguesia. A estratégia bolchevique anunciava como pressuposto que seu objetivo era a revolução mundial, estando longe de qualquer noção solidária à “teoria” do socialismo num só país, revisão programática e estratégica essa que surgiu apenas a finais de 1924 com o início da burocratização stalinista. A República Popular da China não passou por momentos assim, e já nasceu burocratizada em 1949. A Revolução Chinesa, que foi em realidade a terceira do século passado, foi um dos resultados contraditórios da Segunda Guerra Mundial e da política do nacionalismo chinês, que moveu uma guerra civil entre 1946-49 contra um Partido Comunista já completamente burocratizado, que sob a direção de Mao Tsé-Tung se fundava em uma estratégia guerrilheira nacional, avessa à democracia dos trabalhadores e à expansão internacional da revolução. O PCCh já havia sido derrotado na segunda Revolução Chinesa, como mencionamos acima; fruto dessa derrota sangrenta, o Partido se refugiou no interior rural da China, abandonando sua base operário e apoiando-se num partido-exército de base camponesa. É uma tarefa dantesca, extremamente difícil, traçar paralelos sem um arcabouço inicial que parta dessas diferenças.

A União Soviética também teve papel relevante na conformação do passado imediato da Revolução de 1949, durante um quarto de século. Em 1924, a URSS fez o possível para impedir que a Ferrovia Oriental da China, de possessão russa, caísse nas mãos de Chang Tso-lin, ditador da Manchúria e agente a soldo do Japão, contra quem o movimento revolucionário chinês marchava a partir das províncias do sul (o que ficou conhecido como “Expedição ao Norte”, em que comunistas e nacionalistas se opuseram ao regime dos senhores da guerra locais, em conúbio com o Mikado). Em setembro de 1929, refletindo sobre esse período em suas trocas epistolares, Trotski escreve que, dado que o governo soviético não podia transferir a sua ferrovia do Norte ao Sul para facilitar assim a ofensiva da revolução contra os militaristas, tinha a obrigação de reter com firmeza a ferrovia para impedir que os imperialistas e militaristas a convertessem em uma arma contra a revolução chinesa (Trotski 1977: 369). Essa política teve relevo no combate contra a ingerência imperialista do Japão, e constituiu um dos episódios marcantes do prólogo da explosão revolucionária que varreria o país no ano seguinte. Durante a segunda Revolução Chinesa (1925-27), a União Soviética teve participação direta no desenvolvimento dos acontecimentos, embora esse papel tenha sido especialmente negativo. Num momento em que o PCUS e a Internacional Comunista já estavam sob a custódia das diretrizes de Stálin, o PCCh foi obrigado pelo Kremlin a levar adiante sua auto-dissolução no interior do Kuomintang, o partido nacionalista burguês, uma política que implicou a renúncia dos comunistas à sua independência organizativa – e portanto sua batalha pela hegemonia sobre o campesinato pobre. Em pouco tempo, através das armadilhas preparadas com antecedência pela direção burguesa, a liquidação organizativa do Partido Comunista dispersou e debilitou a atividade dos trabalhadores, que foram obrigados a entregar suas armas ao Exército nacionalista. Destituídos de organização, orientação política clara e das próprias armas que colheram no curso da batalha contra o imperialismo japonês e os senhores feudais chineses, milhares de comunistas perderam a vida nas mãos dos verdugos de Chiang Kai-shek, líder do Kuomintang que coordenou os massacres de Xangai e Cantão, entre 1925 e 1927, selando o destino da derrota revolucionária.

As polêmicas teóricas e ideológicas na União Soviética sobre os destinos da revolução na China atravessaram o período entre 1928 a 1931, e foram uma rica contribuição ao pensamento político deste país. Grandes debates de estratégia revolucionária a respeito do “caso chinês” inflamavam as páginas dos jornais soviéticos e os documentos das distintas frações no interior da Terceira Internacional, em especial a principal delas, a Oposição de Esquerda, que tornou a questão chinesa um dos pontos centrais do seu documento “Crítica ao Projeto de Programa da Internacional Comunista”, de 1928. A questão da revolução permanente, que implicava a necessária independência política e organizativa dos trabalhadores diante do nacionalismo burguês, constituía uma problemática fundamental para os países do Oriente, e portanto para toda a dinâmica do comunismo ocidental, e sobre as bases das lições estratégicas da segunda revolução chinesa esteve no centro da obra “A Revolução Permanente”, de Trotski, em 1930. O revolucionário russo discorre sobre a revolução permanente na China, em carta endereçada aos seus companheiros da Oposição acerca do conflito sino-soviético, intitulada “Defesa da República Soviética e da Oposição”:

A unificação nacional chinesa, sua emancipação do imperialismo e sua transformação democrática (o problema agrário!) são inconcebíveis sob a direção da burguesia. A segunda revolução chinesa demonstrou, com toda a sua trajetória, o que os marxistas previram com clarividência: a autêntica realização da tarefa da revolução burguesa na China só é concebível mediante a ditadura do proletariado, apoiada na aliança dos operários com os camponeses, em oposição à aliança da burguesia nativa com o imperialismo. Mas essa revolução não se pode deter no estágio burguês. Torna-se revolução permanente, passa a ser um elo da revolução socialista internacional, e compartilha os destinos desta. É por isso que a contrarrevolução burguesa, que triunfou com o auxílio de Stálin e Bukharin, esmagou implacavelmente a mobilização das massas populares e instaurou, não um regime democrático, mas uma ditadura militar fascista (Trotski 1977: 381-82)

É marcante que Perry Anderson não tenha se detido nesses elementos histórico-políticos, que constituíram o pano de fundo magno daquilo que veio a ser o Partido Comunista Chinês. O PCCh teve sua antiga direção dizimada, e nutrindo a desconfiança dos trabalhadores urbanos, teve de refugiar-se na imensidão rural para poder reconstituir uma nova direção sob a figura de Mao. Como referimos no capítulo anterior, sucedeu-se uma série de movimentos da “guerra de manobra” por parte dos comunistas chineses, que passou pela constituição do soviete de Jiangxi em 1931, a Grande Marcha do Exército Vermelho rumo a Yan’an em 1934-35, as batalhas durante a Segunda Guerra Mundial contra o imperialismo japonês, lado a lado com Chiang Kai-shek (1937-1945), e a guerra civil que levou em sua culminação o Exército Vermelho ao poder.

A despeito de não iniciar a investigação em base a essa abordagem – em especial das concepções estratégicas que levaram à derrota a segunda Revolução Chinesa – a incursão crítica que o históriador britânico realiza no que diz respeito ao Kremlin está correta. A degeneração burocrática do stalinismo, que levou ao sepultamento de revoluções em todos os continentes, e posteriormente do pós-stalinismo com a nomenklatura que se sucedeu até Gorbatchov, foram responsáveis diretas pela restauração do capitalismo na URSS e a renúncia das grandes conquistas de Outubro.

Imagem comparando Xi Jinping a Mao

Entretanto, se observamos um quadro conjunto, como negar as afinidades eletivas que essa tradição teve com o maoísmo, e o pós-maoísmo, que levou à China à completa restauração do capitalismo e à piora das condições de vidas de milhões de pessoas? A crise epidêmica do coronavírus é uma epítome do regime chinês: 70 anos depois do surgimento da República Popular da China, as proezas técnicas conquistadas não podem obscurecer o fato de que sua deplorável infraestrutura social e sanitária, assim como sua superestrutura política autoritária e asfixiante, atestam a falta de prioridade no bem-estar do conjunto da população, e lembram mais um semicolônia capitalista que uma potência em ascensão. O caráter exacerbado do desenvolvimento desigual e combinado da China faz com que estes elementos antagônicos convivam de forma aberrante entre si. Como afirma a sinóloga Chloé Froissart [3], da Université Rennes 2, o atraso na resposta aos sinais epidêmicos, e mesmo o silenciamento das informações científicas sobre sua existência, que tornou um epifenômeno localmente curcunscrito numa epidemia mundial, relacionam-se com características estruturais do regime burocrático chinês (que nisso não se diferencia do cretinismo ossificado da liderança pós-stalinista na URSS). Cenas espetaculares de construção de hospitais inteiros em poucos dias dizem mais respeito à autopropaganda do Partido Comunista e de Xi Jinping, do que propriamente eficiência no combate à epidemia, que levou o regime chinês a encarcerar em quarentena 56 milhões de pessoas na província de Hubei, que tem na cidade de Wuhan o epicentro do coronavírus. A exigência de liberdade de expressão por parte de milhões de chineses foi o subproduto do sistema de controle e repressão de uma burocracia que afoga a economia, a ciência e a cultura. O Partido Comunista Chinês tem o condão de demonstrar, em grandes crises como essa, que constitui um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas da humanidade tão imponente como o capitalismo ocidental.

Asfixia-se a ciência, a criatividade e a arte também em Pequim...

Em sua obra A Revolução Traída (também conhecida como “O que é e para onde vai a URSS?”), de 1936, Trotski desenvolve um aspecto notadamente ausente nas análises dos regimes sociais oriundos de revoluções já nascidas de forma burocraticamente deformada, como o caso da RPC. Tratando da União Soviética, um estado operário que cursava uma trajetória degenerativa das conquistas de 1917, através da burocracia stalinista, dedicava um capítulo aos problemas da opressão crítica e científica própria ao regime:

A burocracia se tornou a encarnação de um extremo individualismo, por vezes sem freio. Admitindo e encorajando o individualismo econômico (trabalho por produção, parcelas dos cultivadores, prêmios, condecorações), ela reprime por outro lado todas as manifestações progressistas do indivíduo no campo da cultura espiritual (crítica, formação de opiniões pessoais, dignidade individual) […] Na verdade, não se pode por a questão da originalidade das culturas nacionais quando uma só batuta de maestro – ou mais exatamente só uma matraca policial – tenta dirigir as funções intelectuais de todos os povos da União (Trotski 1980: 122-23)

Criticando o fato de que os dirigentes soviéticos sob o manto de Stálin consideravam-se chamados a controlar politicamente a vida espiritual, exercendo sua autoridade inapelavelmente “nos campos de concentração, na agricultura e na música”, Trotski opunha a atmosfera intelectual em que a crítica, a arte e a ciência deveriam desenvolver-se, e os rigores da repressão estatal:

A criação espiritual necessita de liberdade. A ideia comunista de submeter a natureza à técnica, e esta à economia planificada para obrigar a matéria a dar ao homem, sem recusas, tudo o que ele necessita e ainda mais que isso, visa a um fim mais elevado: libertar as faculdades criadoras do homem, como jamais fora feito, de todos os entraves e sujeições humilhantes a duros constrangimentos. As relações pessoais, a ciência e a arte não suportarão nenhuma planificação imposta, nenhuma sombra de obrigação. Em que medida será coletiva ou individual a criação espiritual? Isso dependerá inteiramente dos criadores (Trotski 1980: 125)

A morte do doutor Li Wenliang, que foi silenciado ao anunciar os riscos do coronavírus pela polícia chinesa, é reveladora dos entraves e humilhações que constrangem o pensamento científico e cultural na China. Desse ponto de vista, os rigores da censura opressiva no regime político chinês, que não nasceram com Xi Jinping, assumem uma função análoga à que Trotski assinalava ao stalinismo. A grande diferença aqui reside especialmente no caráter social do regime: enquanto a burocracia stalinista parasitava as conquistas de um estado operário surgido de Outubro, a burocracia restauracionista chinesa atua sobre uma economia de tipo capitalista, ainda que seu substrato seja o da unificação nacional e da acumulação primitiva conquistadas na revolução de 1949. Ainda com importantes divergências no destino histórico de cada regime, a sobrevivência do Partido Comunista Chinês não oculta que, nos métodos burocráticos de controle e domínio sobre todas as esferas sociais, há mais de um fio que a conecta aos desdouros da “massa abúlica e medíocre” da casta burocrática soviética, para usar os termos de Anderson.

“Interrompendo a burocratização”? O caso da Revolução Cultural

Isso nos leva a um temário correlato, presente na argumentação de Anderson, e que consta no rol que mostraria o PCCh sob uma luz mais favorável que a direção do PCUS. Sem adentrar na rica ramagem de detalhes que o tema mereceria, podemos dizer que uma das expressões mais curiosas da avaliação do historiador britânico sobre a burocracia maoísta reside na questão da Revolução Cultural:

O contraste entre motivos iniciais e resultados finais seria ainda mais marcante na Revolução Cultural. Na segunda metade da década de 1930, Stálin espalhou o terror de alto a baixo no Partido e no Estado soviéticos, visando muitos dos próprios dirigentes que lhe tinham delegado poder supremo no PCUS, sumariamente fuzilados como espiões, traidores ou contrarrevolucionários […] Ao lançar a Revolução Cultural, Mao também visou seus pares, em parte porque fora obrigado a admitir o fracasso do Grande Salto Adiante, quando não se podia mais negá-lo, e aceitar a mudança da política agrária que lhe impuseram. Contudo, sua principal motivação foi impedir que se reproduzisse na China a casta de burocratas empedernidos que, a seu ver, estava levando a URSS pós-stalinista para uma sociedade de classes indistinguível da capitalista […] Ao contrário do Grande Terror, a Revolução Cultural não foi tão somente uma colossal campanha repressiva. Tratou-se, antes, de uma tentativa radical de sacudir as estruturas burocráticas mobilizando contra ela a revolta de uma geração mais jovem. (Anderson 2018: 33-34).

Cartaz durante a Revolução Cultural

Anderson reconhece as inúmeras atrocidades cometidas pelo regime maoísta, as humilhações, violências e fuzilamentos durante a Revolução Cultural, mas prefere enfatizar a meta autoproclamada pelo PCCh ao lançá-la, a saber, enfraquecer o processo de burocratização rampante no Estado e buscar uma “transformação igualitária de perspectivas” na sociedade. Seriam de fato estes os objetivos da burocracia de Pequim, ou uma batalha fratricida entre frações pela preeminência partidária e estatal? A diferença entre os Processos de Moscou e a Revolução Cultural, que não redundou na eliminação física de toda a geração que combateu a seu lado na guerra civil, tampouco autoriza uma visão amortecida sobre seus efeitos.

Humilhação pública dos alvos da campanha de Mao

Em verdade, a “Grande Revolução Cultural Proletária”, lançada em maio de 1966, tinha menos a função de enfraquecer o processo de burocratização do Partido Comunista Chinês do que de assegurar o controle deste pela facção burocrática encabeçada por Mao. O processo tem de fato uma dimensão contraditória, despertando a energia de jovens estudantes e em menor medida de trabalhadores, que tomaram para si o apelo à autoatividade das massas contra setores da burocracia, algo que chegou a ameaçar desenvolver como uma revolução política contra a burocracia. Um exemplo disso foi a Comuna de Xangai, o que soou o alarme para Mao, que considerou que o processo tinha ido longe demais, momento em que busca uma reunificação da burocracia, em base à sua preponderância, contra os elementos de autoorganização.

Isso não elimina o fato de que se tratou de uma luta de facções para definir quem comandaria o aparato estatal surgido da Revolução de 1949, facções essas sobre as quais poderíamos dizer, como Gogol em Almas Mortas, que “mais depressa os cargos vergariam e rangeriam debaixo delas, do que elas sairiam do lugar” (Gogol 1979: 17). Assim, o objetivo da Revolução Cultural era de uma nobreza menos altaneira que aquela endereçada por Anderson: buscava eliminar os rivais políticos de Mao da direção partidária, que representariam uma espécie de revisionismo capitalista das tradições do PCCh, e recolocar a combalida ideologia maoísta (debilitada depois do fracasso do Grande Salto Adiante) como o cânone filosófico dominante na China. Os alvos se encontravam na cúpula partidária e em altos cargos estatais: para mencionar alguns, Liu Shaoqi (então presidente da República Popular), Deng Xiaoping (secretário-geral do PCCh), Luo Ruiqing (um dos máximos generais do Exército de Libertação Popular), e Peng Zhen (prefeito de Pequim e futuro chefe da Assembleia Popular Nacional). Nas violentas lutas que se seguiram em todo o país, tendo a juventude estudantil como ponta de lança, milhões de pessoas foram perseguidas e sofreram uma ampla gama de abusos, humilhação pública, encarceramento arbitrário, tortura, trabalhos forçados e execuções. O número de mortos ascende a dezenas de milhões.

Do ponto de vista econômico, a catástrofe da Revolução Cultural, que mantivera o domínio de Mao sobre o partido e o estado, representou para a China outro processo ruinoso; do ponto de vista político, foi um evento enormemente traumático para o conjunto da burocracia stalinista chinesa, que fez em pedaços o monolitismo do estado e do PCCh, quase colocando em questão o seu domínio. Até a morte de Mao, em 1976, as medidas pró-capitalistas avançaram lentamente nos bastidores mais do que no proscênio, embora o próprio Mao tenha tido parte nesse processo, especialmente com a reaproximação com o governo estadunidense de Richard Nixon em 1972. A partir de 1978, um novo equilíbrio contraditório na direção do PCCh é alcançado com Deng Xiaoping, que eleva o crescimento econômico a critério máximo para a estabilidade política e preservação do domínio burocrático. A ala divergente na cúpula, tendo à frente a figura de Chen Yun, opunha-se mais aos ritmos que ao conteúdo das políticas restauracionistas. Curiosamente, ao contrário do que tencionava Mao, a conseqüência da Revolução Cultural na década de 1970 não foi expurgar a China dos elementos restauradores, mas aprofundar as reformas pró-capitalistas sob a batuta de Deng.

Por isso, dentro das divergências existentes entre a Revolução Cultural na China e os Processos de Moscou na URSS, não nos parece convincente sugerir que a violência maoísta se destacava, diante do stalinismo russo, pelo fim de enfraquecer a burocratização estatal. Desse ponto de vista, apesar de despontar como adversário do Kremlin no Segundo pós-guerra, Mao Tsé-Tung espelhou o modus operandi do stalinismo na década de 1930: eliminar rivais para melhor assegurar seus privilégios fracionais. Tanto mais curioso esse embelezamento relativo do maoísmo e empreitadas como a Revolução Cultural, tendo em vista que o próprio Anderson reconhece, corretamente, que na China aos trabalhadores e camponeses estão reservados os abusos impiedosos e a espoliação descarada, assim como reservada aos dissidentes está a masmorra (Anderson 2018: 68).

PCCh e o comunismo

Já na década de 1990, as medidas de abertura às transnacionais e monopólios estrangeiros, os inumeráveis benefícios fiscais concedidos para atrair empresas ao país, a desregulamentação das leis trabalhistas que permitiram uma fenomenal superexploração do trabalho e extração de mais valor absoluto: tudo isso moldou um processo que, ainda que preservasse características singulares, como a dificuldade de acesso ao sistema financeiro e ao mercado de capitais chineses, resultou na restauração do capitalismo na China. Mas o capital chinês não é o mesmo que o capital ocidental: tem no controle do Estado a vigilância do Partido Comunista Chinês. A burocracia do PCCh, que sustentou por muito tempo a famosa tese do socialismo com características chinesas, foi o “grande farol” da restauração capitalista no gigante asiático, e valeu-se do capital internacional para sua modernização sobre as bases da Revolução de 1949.

A sensação é que a interessante análise de Anderson acaba perdendo a profundidade necessária ao passar ao largo desse problema, cuja raiz está em desconsiderar a necessária crítica estratégica à trajetória política do PCCh. Isso tem implicações na conclusão do ensaio. O ex-editor da New Left Review encontra um “novum histórico-mundial”que combina uma estrutura econômica capitalista e uma superestrutura “comunista”:

Em termos taxonômicos, a RPC do século XXI é um novum histórico-mundial: a combinação daquilo que, segundo qualquer critério convencional, apresenta-se por ora como uma economia predominantemente capitalista, com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é incontestavelmente um Estado comunista – cada qual o mais dinâmico já visto em seu gênero (Anderson 2018: 67-8).

A combinação do status de uma economia capitalista com o oxímoro Estado comunista – tendo em vista que para o marxismo clássico a sociedade comunista reveste como característica central a abolição de todo e qualquer tipo de Estado, juntamente com o desaparecimento dos antagonismos de classe, a nível mundial – revela talvez melhor do que qualquer outra coisa a visão que problematizamos em Perry Anderson. A saber, a de que o sustentado êxito econômico chinês nas últimas décadas é a prova cabal de que uma burocracia restauracionista do capitalismo pode cumprir um papel progressista na história, a tal ponto de estabelecer um elo entre uma economia capitalista e uma superestrutura “comunista”.

Estamos nas antípodas desse pensamento. Não há nada mais longe do comunismo do que a perspectiva política e estratégica do Partido Comunista Chinês. Em sua Crítica ao Programa de Gotha, de 1875, Marx criticava socialistas e lassalleanos alemães pela ausência da discussão sobre o caráter do Estado na sociedade de transição, anotando que:

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período revolucionário da transformação de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado (Marx 2012: 43)

O que vemos na China, um estado operário deformado já em sua origem em 1949, é uma ditadura sobre os trabalhadores e camponeses, em benefício de uma casta burocrática responsável pela restauração do capitalismo. Em verdade, consideramos que a transição da sociedade capitalista, existente na China, para a sociedade comunista, necessariamente entendida no plano global, tem como precondição a supressão revolucionária da burocracia de Pequim, não menos que a derrubada do capitalismo em seus centros de gravidade. A fusão do marxismo revolucionário com a nova geração de trabalhadores e jovens chineses, que se experimentam contra a repressão estatal tendo o exemplo dos conflitos em Hong Kong logo ao lado, é um caminho auspicioso para a revitalização da união entre teoria e prática revoluconárias em nossa época.

Notas

1 Peter Nolan. “El PCCh y el ancien régime”, NLR 115, disponível em: https://newleftreview.es/issues/115/articles/el-pcch-y-el-ancien-re-gime.pdf.

2 Perry Anderson, “A culture in contraflow”, NLR 180 e 182, 1990, e “Renewals”, NLR II-1, 2000.

3 Chloé Froissart, "Le coronavirus révèle la matrice totalitaire du régime chinois", Le Monde, disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/02/11/chloe-froissart-le-coronavirus-revele-la-matrice-totalitaire-du-regime-chinois_6029132_3232.html.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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