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JUVENTUDE PRECARIZADA | Para onde pedalar pós COVID-19?

O que a bicicleta significa para ti? Para alguns, liberdade e autonomia. Para outros, um modo de sobrevivência no capitalismo. Para onde vai essa juventude precarizada que se expõe ao vírus todos os dias nas ruas das grandes capitais? Rumo ao que podemos pedalar?

Giovana PozziEstudante de história na UFRGS

Gabi FaryasCoordenador Geral do Centro Acadêmico do Teatro da UFRGS (CADi)

segunda-feira 13 de abril de 2020 | Edição do dia

O coronavírus é hoje a expressão máxima de um sistema incapaz de solucionar os próprios problemas que gera. Ora, o capitalismo foi capaz de criar tecnologias de ponta, pesquisa médica avançada, celulares altamente potentes e até mesmo bombas atômicas, mas é incapaz de conter uma pandemia mundial, alimentar famílias com fome, oferecer educação de qualidade gratuita ou mesmo trabalhos dignos a toda população. Estamos no século XXI e ainda vemos trabalhadores morrerem após 12 horas de trabalho em cima de uma bicicleta. Tão somente porque toda essa tecnologia desenvolvida não foi pensada para satisfazer as necessidades da população e sim para aumentar os lucros dos capitalistas às custas do suor e pedaladas de cada trabalhador.

O que a bicicleta significa para ti? Para muitos tal veículo simboliza liberdade, lazer, vento no rosto e tardes de sol na orla. Para outros a mesma significa economia em gastos com transportes públicos, mobilidade urbana e agilidade no dia a dia. Há ainda quem dispute corridas e ganhe medalhas, mas para outros, a bicicleta significa um modo de sobrevivência dentro do sistema capitalista, onde a medalha é o que comer no final do dia. Falamos neste instante dos milhares de entregadores subempregados pelas empresas Rappi, Ifood e UberEats, que juntas da Uber e da 99 POP, se tornaram as maiores empregadoras no Brasil e no mundo, somando no país tupiniquim 4 milhões de pessoas. Tais trabalhadores e trabalhadoras pedalam e pedalam, com suas mochilas coloridas em meio a carros cinzas, em busca de um futuro melhor; pedalam e pedalam para confortos de muitos; pedalam e pedalam em busca da liberdade e pedalam novamente a fim de poder viajar por outros lugares para além das ruas. Observe neste período de quarentena, principalmente em bairros classe média: quem está ali fazendo a máquina girar? Quem faz a indústria alimentícia continuar se movendo até os seus consumidores em meio a uma pandemia?

Procuramos responder a essas perguntas aqui. O perfil destes trabalhadores é majoritariamente de jovens, sendo que 71% desses são homens negros e periféricos, que labutam em média 9 horas e 24 minutos por dia (muitos trabalham ainda mais que essa carga horária absurda). Esses entregadores de aplicativos se somam aos quase 40 milhões de trabalhadores informais no Brasil, para os quais foi oferecido um auxílio completamente insuficiente de R$ 600 pelo governo federal. Soa como uma piada perto dos mais de R$ 26 bilhões lucrados pelo Banco Itaú, um dos parceiros que colabora para a exploração dos trabalhadores informais, já que muitos dos que desejam trabalhar com os aplicativos de entregas não possuem o veículo necessário e recorrem a empréstimos de bicicletas da Bike Itaú, espalhada nos maiores centros urbanos do país. Na prática, esses trabalhadores estão largados à própria sorte para sobreviver em cima de uma bicicleta por mais de 9 horas por dia.

Segundo a Aliança Bike - Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, em pesquisa realizada na cidade de São Paulo, principal polo de entregas no Brasil, 50% dos entregadores têm até 22 anos e 75% têm até 27 anos. Esses dados apavorantes nos fazem pensar os motivos porque tais jovens estão dedicando tanta energia para, além de enfrentar o trânsito das grandes capitais, encarar em tempos de quarentena os riscos de exposição à COVID-19 para levar comida às pessoas. A razão central dessa correia que ajuda a girar essa exploração é a falta de oportunidades de emprego. Muitos entregadores entrevistados na pesquisa acima citada responderam ser este o principal motivo de começar a rodar a serviço desses aplicativos. Contudo colocamos em questionamento esse sistema incapaz de oferecer emprego para toda a população: quantos trabalhadores não poderiam ser contratados com salário digno se fossem tirados recursos diretamente do lucro dos empresários? Porque se atacarmos diretamente os lucros escandalosos desses empresários, batendo de frente com a lógica do sistema capitalista, veremos que toda população possuir emprego digno pode ser tão realidade quanto o sol nascer todos os dias.

Nota-se também que a força motora que leva muitos desses jovens a pedalar entre os carros e ônibus é a necessidade de pagar os seus estudos. No Brasil, não há como falar sobre ensino superior público sem mencionar o filtro social e racial, também conhecido como vestibular. Através dele temos uma realidade onde as vagas das universidades públicas são amplamente compostas por pessoas mais ricas e com mais capital cultural, enquanto pessoas com menos poder aquisitivo muitas vezes trabalham duro para pagar seus estudos em instituições privadas. Para estas últimas a solução mostra-se na palma da mão: baixando um aplicativo, você pode escolher o horário em que pretende trabalhar, assim conciliando com seus estudos, e no momento em que você quiser se desvincular de tal serviço, é só você desinstalar tal aplicativo e estacionar sua bicicleta. Fácil assim. A propaganda é atrativa, mas a realidade é que para ganhar um pouco mais do que salário mínimo, você teria que pedalar mais de 9 horas por dia, sete dias por semana, além dos gastos com a magrela.

E fica o questionamento: como conciliar os estudos, os gastos dos estudos e auxiliar dentro de casa, pedalando todo esse tempo sem nenhuma - repetimos - nenhuma garantia de qualquer direito, seja ele de saúde, manutenção ou previdenciário? E ainda, no meio dessa pandemia do coronavírus, será possível manter a “normalidade” participando de aulas EAD e fazendo trabalhos para a faculdade enquanto você precisa se expor ao vírus todos os dias quando sai para trabalhar? Essa relação de trabalho é tão líquida como as chuvas que tais ciclistas pegam com frequência nas cidades: escorregadia e tóxica. Uma relação de trabalho diretamente assassina. Como fica a saúde mental desses milhares de jovens no país que já é o campeão nos índices de ansiedade e depressão?

O sistema capitalista, agora em crise profunda impulsionada pela covid-19, mostra-se mais uma vez perverso para tais corpos pedalantes através do neoliberalismo vigente. O cenário é relativamente simples: as pessoas estão com receio de sair de casa e o sistema de entrega está bombando. Apenas na empresa Rappi, o número de entregadores cresceu cerca de 30% na América Latina desde o início da quarentena, justamente no continente mais desigual do mundo, onde 220 milhões de pessoas vivem em estado de pobreza. E como os dados de entregadores de aplicativos não aumentaria? Muitos trabalhadores estão sendo demitidos, as mercadorias no supermercado estão muito mais caras e as escolas e faculdades estão fechadas. Assim, muitos jovens ciclistas acabam aproveitando esse período em que teriam aula para trabalhar mais e mais, a fim de amenizar o prejuízo causado pela crise financeira.

E mais uma vez a liberdade individual proposta pelo neoliberalismo cai por terra, pois essa liberdade está totalmente condicionada ao extinto de sobrevivência que o regime vigente impõe: o da necessidade. É um ciclo profundo, onde as pernas de tais trabalhadores são a força motriz para girar a roda da fortuna, e suas energias jovens tornam-se uma mercadoria para girar mais rápido tais pedais, modificando o significado da bicicleta mais comum, o da liberdade, de ir e vir, de escolher os seus caminhos e de poder ir na contramão. Porém, tão características da bicicleta, a liberdade e a independência se tornam sinônimos de uma exploração. A ação saudável do pedalar vira a mecanização da nossa morte pelo capital. Nesse mundo uberizado, a liberdade vira a prisão do delivery e a autonomia vira a dependência dos dados móveis – tudo isso misturado nos perigos do coronavírus.

Para onde pedalar, então?

Estamos na corda bamba que Rosa Luxemburgo bem definiu: “socialismo ou barbárie”. É preciso que pedalemos na contramão de Bolsonaro, Mourão, os militares e todo setor golpista encabeçado por Rodrigo Maia, que seguido por todos governadores dos estados brasileiros demonstram a cada dia que nossas vidas são menos importantes do que a economia. Decretam, assim, que os milhões de jovens e famílias tenham que escolher entre o desemprego ou o adoecimento. O discurso demagógico não nos engana, não aceitamos que a única medida concreta dos governos contra o coronavírus seja a quarentena. Enquanto isso, caímos em um abismo desconhecido sem a existência de testes para toda população. A tecnologia existente nos permite a produção de testes massivos, roupas adequadas aos profissionais da saúde, equipamentos respiratórios, álcool gel e máscaras para todos os brasileiros. Mas repetimos: os capitalistas não utilizam as tecnologias criadas de forma que não obtenham lucro. E a prova está no que vivemos hoje. Se de fato estivessem os burgueses interessados em combater o coronavírus, toda a produção das fábricas já estaria girada para a produção de testes e aparelhos de segurança necessários para os trabalhadores e toda população, assim como giraram as indústrias para produzir em tempo recorde as armas e bombas que dizimaram milhões nas guerras.

Enquanto as decisões forem tomadas pelos engravatados das instituições burguesas estaremos decretados à exploração sem escrúpulos, a uma vida de miséria em que pessoas ainda morrem de fome, sem saneamento básico e moradia. Logo, os únicos capazes de responder à altura das necessidades da sociedade são os trabalhadores, que sabem do que a população precisa e tem nas mãos a força para tomar os rumos dessa crise. O guidão deve ser levado pela classe trabalhadora junto de todos os setores oprimidos, fazendo com que as forças de nossas pernas não pedalem rumo a nossa própria cova, mas sim rumo a um novo mundo em que a bicicleta possa ser para todos não só um símbolo, mas a realização da liberdade e da independência. Coloquemos nossas perspectivas na nossa organização, capaz de encurralar os capitalistas diante do abismo que decretará seu fim e o começo da liberdade das massas.




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