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DEBATE SOBRE ESCRAVIDÃO | Os pensadores modernos e a escravidão africana: escondendo o pecado original

sexta-feira 28 de agosto de 2015 | 19:57

“Apesar da abolição da escravatura ser a única consequência logicamente possível da ideia de liberdade universal, ela não se realizou por meio das ideias ou mesmo das ações revolucionárias dos franceses; ela se realizou graças às ações dos próprios escravos.” (Susan Buck-Morrs)[1]

Liberdade, escravidão e iluminismo

No berço do iluminismo, o ambiente intelectual europeu, a palavra escravidão era usada como metáfora e antítese da ideia de liberdade. Os grilhões do Antigo Regime eram referenciados na noção da escravidão. Os defensores da liberdade como um direito natural e universal humano reconheceram as mazelas das relações sociais feudais e, em partes, do mercantilismo, mas eram incapazes de incluir em seus sistemas de pensamento e crítica a escravidão moderna. Evidentemente, o tráfico de escravos e as plantações nas colônias era uma gritante antítese as teses de liberdade e universalidade dos pensadores europeus.

Como pensar essa contradição? Como entender que a crescente defesa filosófica da liberdade acontecia no mesmo momento da expansão colonial da mão de obra escrava de africanos? Essa dicotomia pode ser considerada uma marca política e, também epistemológica, da transição do capitalismo mercantil para o início de sua fase industrial.

Este texto busca responder estas questões mostrando como pensadores europeus justificaram e/ou esconderam a escravidão moderna. Esta bastante limitada e parcial exposição de alguns pensadores europeus frente à escravidão busca evidenciar:

1. críticas a uma forma embelezadora de se expor a história dos pensamentos modernos onde existe uma linhagem progressiva que vai dos absolutistas aos liberais. Nessa linha as defesas “de tudo que há de ruim” vão diminuindo até chegar na apologia do trabalho livre, do livre mercado e da democracia de liberais como Adam Smith e Tocqueville. Existem muitas contradições e desvios nessa história e a posição dos pensadores modernos em relação à escravidão faz parte desses incongruentes.

2. Defender uma análise não só contextualizada dos pensadores europeus com o sistema colonial de seu tempo. Mas que busca dar o status de “produtor de ideias” não só para eventos como a guerra de independência norte americana e a revolução francesa, mas para a luta dos próprios escravos, das quais a revolução haitiana é o maior exemplo.

3. Contribuir para a defesa da tese sustentada por marxistas negros como Eric Williams e C.L.R James[2] da escravidão colonial como uma instituição moderna, do capitalismo mercantil.

Hobbes

O ano de publicação do Leviatã de Hobbes[3] (1651) é o ano da promulgação dos Atos de Navegação de Cromwell que impulsionará o capitalismo mercantil britânico. Logo se inicia as guerras navais com a Holanda. No início do século seguinte a Inglaterra havia estabelecido seu domínio da economia global incluindo sua influência no tráfico de escravos. A utilização política do binômio escravidão e liberdade já era utilizada na revolução liderada por Cromwell e a referência metafórica era bíblica: a libertação hebraica da escravidão.

Hobbes que também utilizava metáforas bíblicas discutiu a escravidão em termos mais seculares. Para ele a escravidão é consequência do Estado de natureza (guerra de todos contra todos) e portanto faz parte das disposições naturais do homem. A escravidão segundo ele é “parte inalienável do poder”.

O fundamento de Hobbes para justificar a escravidão se dá em termos políticos, e não raciais. Muito menos concede um caráter de “não homem” ao escravo. Ele reconhecia a possibilidade inclusive das nações mais civilizadas voltar ao status de escravidão. Logo, o posicionamento de Hobbes questiona a linha evolutiva que se inicia na apropriação “das diferenças naturais” que são a base do trabalho compulsório de Aristóteles[4] até o reconhecimento da universalidade humana.

Locke

Locke também esteve envolvido com a escravidão. Foi um possível acionista da Royal African Company e ajudou a formalizar as leis na província de Carolina na América onde um homem livre: “deve ter absoluto poder e autoridade sobre os escravos negros seja qual for a opinião e religião".

Locke já utiliza o termo escravidão como metáfora para a tirania monárquica na Europa, ao mesmo tempo que justificava a escravidão africana. Existem dois caminhos para essa justificativa. O primeiro é o status de escolha da vida e não da morte. Ainda que seja difícil conceber que um homem abdique da sua liberdade reconhecia que o escravo escolhia a sujeição para evitar a morte fruto de sua conquista em uma guerra. Logo, aquele que se sujeitou a guerra iniciando o perigo de perder a própria vida comete um atentado à razão que implica a perda de sua humanidade e o status de coisa. A escravidão é “o estado de guerra continuado entre um conquistador legitimo e um cativo” (Segundo tratado sobre o governo) É visível a convergência de Locke com a hipocrisia da tão utilizada “guerra justa” no mundo colonizado.

O segundo caminho é a proteção da propriedade privada e da economia doméstica. A liberdade liberal de Locke é a defesa da propriedade privada. Os escravos eram propriedade privada, e situavam-se no âmbito da autoridade doméstica, logo esses status de propriedade deveria ser defendido pelas leis.

Montesquieu

Provavelmente são os pensadores franceses que estão mais marcados por esta contradição entre discurso universal e prática escravocrata. No mesmo período que a exploração da mão de obra escrava se intensificava e a produção açucareira se tornava uma proto-industria global, os pensadores iluministas exaltavam o “bom selvagem”(populações nativas), e praticamente ignoravam o sangue africano que enriquecia sua economia.

Montesquieu foi o pensador que inseriu nos debates iluministas a problemática da escravidão real condenando-a filosoficamente, afirmando a oposição entre escravidão e direito civil e natural “como todos os homens nascem iguais, é preciso dizer que a escravidão é contra a natureza, ainda que em certos países esteja fundada numa razão natural; e deve-se distinguir bem estes países daqueles onde as próprias razões naturais a rejeitam, como os países da Europa, onde foi tão felizmente abolida”; ( O espírito das leis )

Porém é importante notar que Montesquieu utiliza argumentos racistas e que nele podemos encontrar justificativas pragmáticas, naturais e ecológicas para a escravidão. Diferente dos que defendem um progresso uniforme no pensamento europeu é no meio do século XVIII, neste inspirador da Revolução Francesa, que encontramos argumentos racistas tão tolos como: “Aqueles a que nos referimos são negros da cabeça aos pés e têm o nariz tão achatado, que é quase impossível lamentá-los” ou “Não podemos aceitar a ideia de que Deus, que é um ser muito sábio, tenha introduzido uma alma, sobretudo uma alma boa, num corpo completamente negro”.

Rousseau

Rousseau foi um pensador precursor das analises criticas a propriedade privada. Neste sentido é natural que a escravidão fosse repudiada por ele como uma instituição vil ao fazer do homem que nasce livre uma propriedade. Porém, existe um silêncio frente a uma questão central da política francesa em sua época: o código negro (code noir). Esta legislação aplicada aos escravos nas colônias francesas, e que teve fim definitivo somente em 1848, foi praticamente ignorada por Rousseau. Um estudo rigoroso sobre esse silêncio foi feito por Louis Sala-Molins que expõem a contradição de Rousseau considerar que a “A legalidade da escravidão é nula, não apenas por ser ilegítima, mas por ser absurda e vazia de sentido. Tais palavras, escravidão e legalidade são contraditórias. São mutuamente excludentes." e não citar em seus escritos o maior exemplo desta aberração em seu tempo.

Não só a falta de referências ao code noir salta aos olhos, mas ao fato de Rousseau utilizar-se de relatos de viajantes por inúmeras partes do mundo, mas não fazer referências aos escravos africanos. Susan Buck-Morrs aponta que:

"O filósofo iluminista citou relatos de viajantes da época - Kolben, sobre os hotentotes, e Du Tertre, sobre os indígenas das Antilhas -, mas evitava aquelas páginas desses mesmos relatos que descreviam explicitamente os horrores da escravidão europeia. Rousseau referia-se aos seres humanos de todas as partes, mas omitia os africanos; falava dos groenlandeses transportados à Dinamarca que morriam de tristeza, mas não da tristeza dos africanos transportados às Índias, que resultava em suicídios, motins e fugas. Declarava a igualdade entre os homens e via a propriedade privada como a origem da desigualdade, mas jamais somava dois e dois para discutir a lucrativa escravidão francesa como algo central para as discussões tanto sobre a igualdade como sobre a propriedade. Como na República Holandesa e na Grã-Bretanha, escravos africanos estavam presentes e eram usados e abusados domesticamente na França. Na verdade, era impossível que Rousseau não soubesse "que há alcovas em Paris onde é possível se divertir sem peias com um macaco e com um jovem garoto negro”.( Hegel e o Haiti )

***
Nota

A segunda parte deste artigo discutirá contradições similares nos fundadores do liberalismo e em sua versão norte americana. Por último discutiremos as posições de Hegel e a tese de Susan Buck-Morrs sobre a possibilidade de a revolução haitiana ter influenciado a elaboração da dialética do senhor e o escravo.

Referências

[1] Susan Buck-Morrs é historiadora e autora do Livro “Hegel, Haiti and universal History”. As ideias apresentadas aqui são diretamente inspiradas pela leitura do artigo Hegel e o Haiti. Ver http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000200010#back43

[2] Susan Buck-Morrs enfatiza uma oposição entre marxismo oficial (branco) e estes marxistas negros. Porém é importante salientar nesta análise que James foi professor de Williams e militante movimento trotskysta norte americano. Portanto consideramos importante também alertar para influência da noção de desenvolvimento desigual e combinado do revolucionário Trotsky para a tese destes autores.

[3] O patrono de Hobbes, Lord Cavendish, era um comerciante envolvido na administração de colônias inglesas.

[4] Além da tradição teológica, vemos essa reivindicação aristotélica no holandês Hugo Grotius, considerado um precursor do liberalismo e representante do período áureo da hegemonia holandesa no tráfico de escravos, que afirmava “Há homens nascidos para a servidão” e se referia aos habitantes das colônias holandesas como “bestas selvagens”.


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