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Onde moram os monstros e quem os enfrenta? Segundo ensaio sobre hegemonia e COVID-19

Leandro Lanfredi

Imagem: Juan Chirioca.

Onde moram os monstros e quem os enfrenta? Segundo ensaio sobre hegemonia e COVID-19

Leandro Lanfredi

Quem enfrenta o coronavírus? Quem manda? Quem obedece? E como obedece? Essas questões poderiam ser abordadas em diferentes escalas de abstração e concretude, mas aqui focaremos em um retrato parcial do Brasil do odioso Bolsonaro.

O coronavírus chacoalha o mundo, ceifando, segundo os dados oficiais da data de hoje, 13 mil vidas. O chacoalhar do mundo não é menos sentido no Brasil, o combate ao coronavírus exige mobilização de forças tal como numa guerra, e o dia a dia, igualmente como numa guerra, vai impor sofrimentos que há gerações não são sentidos.

Terreno, generais e soldados nessa analogia da guerra

O terreno é, antes de mais nada, em sua acepção material, um campo de batalha médico-hospitalar. Guardadas as diferenças topográficas aqui e acolá, em todos eles faltam leitos, médicos, enfermeiros, trabalhadores sanitários, insumos. Esse terreno é resultado de décadas de cortes neoliberais, privatizações e corpos fatigados de jornadas extenuantes de trabalho, de duplas e triplas jornadas para as mulheres, de condições insalubres de moradia. Mas o terreno é político e ideológico, chegamos onde chegamos não por forças naturais, mas por forças sociais e políticas.

A pergunta é: quem são os generais da guerra e quem são os soldados? Como estes seguem as ordens daqueles? Essa questão se impõe em todos lugares. Mas, em algumas localidades do globo, especialmente no Brasil, há certa dificuldade de identificar o comandante-em-chefe dessa guerra.

Isto é resultado do enfraquecimento político de um presidente que adotou uma linha negacionista da catástrofe iminente, sofrendo expressiva perda de apoio nas classes médias, como notam pesquisas de opinião e a cada noite as panelas o confirmam. O fenômeno, todavia, parece indicar muito mais que um desgaste político e, portanto, cabe examinar o tecido do Estado e das relações de classe. Com o desenvolvimento desigual e combinado que empurrou algumas regiões a serem exportadoras de grãos, outras a depender do mercado interno, entre várias combinações disso, se o pacto federativo não está indo para os ares, que tipo de monstro pode saltar de debaixo da cama?

Os monstros não surgem de geração espontânea, como também não o fez o SARS-CoV-2. Eles liberam, aceleram, o que já estava ali, porém, contido, subordinado.

Os impactos do vírus, inédito, não se fazem em um terreno pristino e virgem de contradições. Do ponto de vista da economia, seu violento impacto mundial precipita contradições que já se expressavam numa tendência a recessão, numa tendência a desvalorização das commodities, numa guerra comercial e tecnológica entre EUA e China. No Brasil, estagnado há anos, precipitou-se uma nova queda que estava escondida debaixo da cama dos economistas otimistas.

Na geopolítica internacional, o mundo que erguia mais e mais fronteiras para responder a crises imigratórias e fenômenos políticos das crises orgânicas fez as fronteiras explodirem em extensão: surgem fronteiras onde não havia, até mesmo dentro dos estados nacionais. As fronteiras e a falta de unidade de comando aparecem em todos lugares, com maior ou menor intensidades.

O terreno e os “generais” na crise política brasileira

No mesmo Brasil onde Bolsonaro ameaçou desafiar o comando dos governadores sobre suas polícias militares, incentivando a atuação de policias com métodos milicianos de “mobilização”, o problema ressurge de outro modo e com outra intensidade. Agora os governadores estão tomando medidas que invadem a competência federal, fecham estradas que o governo federal não fechou, impõem controles sobre cidadãos de unidades federativas vizinhas e, mais que isso, esboçam uma política externa própria.

Assim fizeram os governadores do Nordeste com a carta ao governo Chinês, solicitando sua ajuda na mesma semana que Eduardo Bolsonaro atacava o governo e o povo chinês, enquanto o embaixador daquele país – novidade na América do Sul ao menos – adotava um tom beligerante atípico da diplomacia chinesa e atípico de países que não estejam armados até os dentes marcando seu território de capitais frente a outros (recado a Trump e seus serviçais pátrios).

Diante do novo problema de falta de mando, ou desmando, a resultante é um governador paulista João Doria e um carioca Wilson Witzel politicamente fortalecidos, embaralhando as cartas da política burguesa. Esses governadores, agindo em conformidade com as medidas, e até mesmo na estética dos pronunciamento de televisão com a norma mundial, são aplaudidos pela Globo, pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O mesmo vale para um Ministério da Saúde elogiado por toda grande mídia e que, por mostrar proximidade com Doria e Witzel, foi enfraquecido pelo bolsonarismo. Bolsonaro tenta mudar de discurso, mas reluta; não aparece como quem está tomando ações, mesmo quando “seu” ministério da saúde ajude, e parece um fazedor de frases sobre “gripezinha” e ataques a fortalecidos governadores, como chamar Doria de lunático pela quarentena paulista.

Isso significa que a readequação de Bolsonaro ocorrida semana passada é trôpega e não parece esgotar seu sangramento político. Poderá ele se recompor, ou quanto mais forte for a crise maior a probabilidade de seu completo esvaziamento para evoluir de um “imperial” presidente a uma figura decorativa de jure mas não de facto? Ou seria mais provável que ocorram saídas institucionais para sua substituição, a fim de “mudar tudo para que tudo continue igual”?

Com atores “institucionais”, tal como Rodrigo Maia já mostrava antes, limitando o poder de Bolsonaro e do bolsonarismo, foi escalado o “grande terceiro”, que dia a dia vai se tornando o primeiro entre seus pares no golpismo: as Forças Armadas. O General Braga Neto, da Casa Civil, foi escalado como coordenador do combate à COVID-19, e o contra-almirante que comanda a ANVISA, posto como quem vai autorizar o que os estados e municípios podem ou não fazer, e no caso do Rio de Janeiro, com Witzel mantendo de pé a proibição de tráfego intermunicipal, instala-se uma disputa política que pode ter contornos “militares”, com notas de O Globo falando que Bolsonaro prevê colocar o Exército ou a Polícia Federal para intervir contra a ordem do governador fluminense. Possivelmente, com alguma mediação de algum militar cheguem a um acordo, mas só o anúncio de tal magnitude de crise mostra questões em jogo. Tal como na crise com as polícias, as Forças Armadas foram colocadas para mediar o conflito entre o bolsonarismo e os governadores; eis novamente o alto-comando em ação, mas agora diante de uma crise muito maior e na qual não faltam monstros.

São os monstros de poderes autoritários concentrados nas mãos dos estados, que servem, preventivamente, para as burguesias se prepararem para explosões sociais diante da crise; são monstros de tendências centrífugas na economia e na política nacional; e claro, o monstro do contágio e da morte. Não somente porque essa modalidade do vírus é inédita e não há anticorpos, vacina ou cura, mas porque os corpos estão previamente debilitados por jornadas extenuantes de trabalho, por condições precárias de moradia, e porque a atenção médica e hospitalar foi vilipendiada, precarizada, privatizada e faltam leitos, respiradores e, até mesmo, itens ainda mais mundanos, como álcool gel e máscaras. Só com a perspectiva da catástrofe iminente que se entende que governos conjuram suas empresas a mudarem o que produzem, que o Brasil de Bolsonaro, Witzel e Crivella cogita-se pegar (e pagar, aos donos, é claro) quartos de hotel para colocar favelados, pois temem que o coronavírus possa ser o detonante de conflitos e contradições latentes.

Os monstros na guerra e na hegemonia

Tal como numa guerra, pelo menos em seu começo, vivemos um momento de reforço dos dois polos interligados do “Estado em seu significado integral: ditadura + hegemonia [1]. Com polícia, com decretos, ruas, lojas, aeroportos são interditados. Com a onipresença e a onisciência de aplicativos e drones seres humanos são vigiados (e ameaçados de punição). O reforço ao poder coercitivo do Estado ganha proporções nunca imaginadas mesmo em distopias. Por outro lado, tal como se vivêssemos num momento antes da criação do Estado no Leviatã de Hobbes, os seres humanos parecem entregar sua soberania ao Soberano, dar-lhe poderes inéditos e superiores para impedir, com uma tosse, que sejamos uns lobos dos outros. Essa entrega é consentida. Mas mesmo em Hobbes a entrega não é eterna, não é um pacto com o diabo para o qual não há volta. Há, outrossim, o direito à sublevação.

O consentimento para se ficar em casa é vasto, para aqueles que podem, é claro, e por enquanto não se sente desabastecimento nem falta dinheiro. O amanhã, sabe-se lá. Por enquanto, desenvolve-se como agente e instrumento do consenso todo um mercado de mídia e de aplicativos: “mantenha a sanidade no confinamento”. Novas formas de controle dos corpos e mentes desenvolvem-se, toda uma “biopolítica” que se mostra, mas não esgota que há fatores de poder, nexos e interesses que comandam. A soja tem que continuar a ser exportada, o ferro arrancado do seio da terra, telemarketing de cobrança de dívida e fábricas de itens totalmente desnecessários seguirem seu curso, pois são essenciais, não para a vida humana, mas para a reprodução ampliada do sanguessuga de humanos e do planeta: o capital.

Mas o consentimento conquistado pela burguesia, para que cada trabalhador consinta em somente fechar-se em sua casa, é perigoso para ela. Confinamento sem testes massivos, para todos, e não só para os sintomáticos, não permite eliminar que quem é obrigado a circular continue a gerar contágio ou adquira o coronavírus e que o introduza em suas casas. O confinamento, consentido, mas vigiado, não elimina a falta de leitos, a falta de equipe de saúde, nem garante a organização da economia para remunerar e prover de víveres os confinados, nem muito menos para produzir os equipamentos e itens necessários para vencer a guerra. Até quando a burguesia poderá trafegar por essas águas turbulentas oferecendo o pouco, ou quase nada, de resposta que tem oferecido?

Mas quem de fato combate o monstro do Coronavírus?

Não são os governantes que se apressaram, dia atrás, em anunciar medidas parciais e frequentemente atrasadas, quarentenas sem testes massivos que diminuem sua efetividade e impõe sofrimentos econômicos, sociais, psíquicos em escalas que poderiam ser menores no momento atual. Também não são as empresas que se esforçam em salvar seus lucros e suas imagens e submetem todos os potenciais das forças produtivas, incluindo a criatividade e a solidariedade humana ao que seus negócios permitam que dão o combate.

Quem dá o combate é o proletariado. Vestindo máscaras cirúrgicas nos hospitais ou movendo o que não pode ser parado, a limpeza urbana, os transportes, a energia, a alimentação. E nisso, com os aplausos nas janelas aos trabalhadores da saúde que ouvimos em tantas cidades do mundo, com os aplausos que um cidadão comum oferece a terceirizados da limpeza no metrô de São Paulo, algo novo se move nas mentes. De repente, com a crise do coronavírus, relações humanas antes invisíveis, que apareciam como trocas de mercadorias, aparecem como ações de seres humanos. E a comoção que sentimos, arrepiando peles e enchendo olhos de lágrimas em cada homenagem que vemos mundo afora nos humaniza, nos faz ver que há gente por trás do capitalismo, nos lembra que somos gente e não só consumidores, somos classes sociais. Há quem posta vídeo de sua quarentena junto com a empregada doméstica e há gente miúda, heroica, com maior frequência negra e mulher neste país, que salva vidas, que dá a batalha que os governantes e empresários dizem que dão. Seus esforços heroicos, aplaudidos, não podem se tornar um embrião de outra consciência, da de uma classe social que aos poucos a recobra em meio a um pesadelo e mede, ainda das janelas, as forças que ela e mais ninguém tem? Se essa consciência se desenvolve, não estaria entrando em choque com os magros “planos de guerra” que a burguesia erraticamente oferece?

Para agravar esse problema que cada burguesia está se deparando no mundo, e conjura suas melhores TVs para fazerem elas homenagens aos trabalhadores da saúde para conter e disciplinar o sentimento humano e de classe que brota, aqui a esse problema se somam os problemas prévios da grave crise de hegemonia, de um lulismo que ruiu e não pode, ainda, ser substituído por nenhum projeto hegemônico. O coronavírus entra no que entendemos como “crise orgânica” e a aumenta violentamente gerando inéditos perigos de construir novas hegemonias, ao passo que soluções autoritárias, mas também para a burguesia, cria perigos das possibilidades de ação das massas, como desenvolvemos em anotações iniciais domingo passado.

Coronavírus como fator acelerador de contradições

O Coronavírus destapa, acelera o que já existia, mas não está criando “do nada” uma força de atores como Doria, ou de um Witzel com ajuda da poderosa Globo. As situações de crise orgânica, como argumenta um especialista em Gramsci, o italiano Frosini, não são situações de “vazio de poder”, mas de disputa e emergência do pré-existente que antes aparecia como subordinado:

Em primeiro lugar, o colapso de um discurso hegemônico é melhor representado como uma desagregação. Quer dizer, um discurso hegemônico sempre é um conjunto mais ou menos estável de discursos diferentes, os quais são organizados para dar uma ordem determinada para um objetivo geral. Nesse sentido, seria mais correto falar sempre de um sistema hegemônico, para aludir, assim, seu caráter complexo e relativamente instável. Em segundo lugar, trata-se de uma desagregação, a interrupção de um sistema hegemônico não deixa aflorar mais que seus pedaços, que são eles também projetos hegemônicos que haviam ficado subordinados ao projeto dominante. Esses pedaços não são necessariamente projetos hegemônicos globais: de fato, sua subalternidade em relação ao discurso dominante deriva de sua escassa ou insuficiente capacidade de se universalizar, o que significa dizer, de não ter formulado uma posição coerente para todas as questões cruciais da vida nacional e de sua projeção internacional. Em terceiro lugar, a crise, quer dizer, a desagregação do sistema hegemônico, é determinada pela elaboração de um sistema alternativo no sentido de um sistema global que se apresenta como alternativa total ao preexistente. O projeto hegemônico é, pois, uma visão do que é a civilização em todos seus aspectos. [2].

Essa reflexão é de extensa e intensa utilidade para pensar como o próprio golpismo, a assunção da extrema-direita ao poder no Brasil não aconteceu do nada, o poder do agronegócio, das cúpulas das igrejas evangélicas, do judiciário, da bancada da bala, do centrão não aconteceram do nada. Trata-se de fatores de poder subordinados, que o petismo alentou política e materialmente anos a fio.

Agora que temos uma crise da magnitude da atual e temos diante de nós governos de direita ou de extrema-direita, ou que, mesmo aqueles de centro-esquerda que fazem a reforma da previdência como os do Nordeste brasileiro ou que chegam ao nível de barbarismo da Geringonça portuguesa que decretou a proibição das greves cabe se questionar: que projeto global está sendo oferecido na contramão do existente?

Retirar Bolsonaro, usando as regras do jogo do impeachment, dá conta do que necessitamos para salvar vidas? As medidas de Doria ou Witzel, somadas a algum valor material maior de compensação a quem ficar em casa, consistem em erguer um outro projeto hegemônico? Ou se trata de oferecer um lado do mesmo e já existente e deixar de cumprir um papel de oferecer um programa anticapitalista, única maneira de frear o criminoso descaso com a vida humana para o qual marchamos, sem leitos, sem respiradores, sem alimentação digna, olhando dia a dia a inevitável aproximação da realidade com a Espanha, com a Itália? Quantos insumos essenciais poderiam estar sendo produzidos, distribuídos, organizados se os locais de trabalho, começando por um sistema de saúde estatal e unificado, não fossem organizados por patrões e gerentes, mas fossem organizados pelos trabalhadores? Quantas vidas mais poderiam ser salvas?

Diante da catástrofe não é possível e necessário erguer um questionamento global? Reflexões desse tipo são muito bem desenvolvidas no artigo “Socialismo ou barbárie não é um diagnóstico mas uma consigna para a ação”, de Andrea D’Atri.

Diante da catástrofe que se avizinha, Bolsonaro se enfraquece, mas buscará se localizar. Burgueses superprivatistas como Doria se fortalecem, super-reacionários, sanguinários e racistas como Witzel são bem-aceitos até em círculos progressistas. Militares assumem cada vez maiores postos de mando e intermediação em cada decisão política. Mas isso se sustenta? Se isso se sustentar, pagaremos o preço com mais vidas humanas que poderiam ser salvas diante da COVID-19, pois suas medidas erráticas, contraditórias e sem atacar os lucros capitalistas, param onde a batalha deveria começar. Sofrimentos inéditos se anunciam, nos hospitais e na vida de cada trabalhador. Mas de cada homenagem de trabalhador para trabalhador e de cada pequena greve para garantir a higiene sanitária num telemarketing ou numa fábrica brotam uma ainda pequenina flor, que precisamos nutrir e cuidar para que se multiplique e anuncie a chegada da primavera.


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FOOTNOTES

[1Gramsci, Cadernos do cárcere, C6§155

[2Fabio Frosini, ¿Qué es la “crisis de hegemonía”? Apuntes sobre historia, revolución y visibilidad en Gramsci, tradução nossa.
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Leandro Lanfredi

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