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SOBERANIA POPULAR | O significado da Constituição de 88 e a luta por uma nova Constituinte

Enquanto Bolsonaro, militares, o Congresso, o STF diversos partidos burgueses vão rasgando a Constituição, emenda à emenda, a esquerda se agarra a ela como se fosse o fruto máximo da soberania popular possível, omitindo os limites e processos históricos que desde a sua escrita amarram a formação da chamada Nova República às forças que hoje protagonizam o novo regime pós-golpe. Somente a luta por uma nova Constituinte pode combater os limites passados e os autoritarismos presentes.

quarta-feira 7 de julho de 2021 | Edição do dia

Foto: Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, junto a José Sarney, então presidente da República, apresentando o texto final da Constituição de 1988.

É típico do pensamento liberal burguês buscar naturalizar as instituições, legitimando a superestrutura que é funcional a seu domínio. Nesse pensamento, o capitalismo seria o modo de produção advindo das próprias tendências da natureza humana à realização de trocas, a democracia representativa liberal seria a máxima concretização da liberdade individual na história da humanidade. Numa perspectiva nacional, essa é a mesma lógica que embasa os argumentos de que toda Constituição é a máxima expressão da soberania popular, apagando os processos históricos -principalmente os choques de classe - que determinam a formação de uma Carta Magna.

No Brasil, a maioria absoluta da esquerda contribui para essa mistificação da Constituição de 88 ao omitir os processos que conduziram desde a convocação da assembleia até a sua aprovação - em particular, o peso da tutela dos militares garantida pela transição pactuada de regime. Dessa forma, esse fruto contraditório da “transição democrática” é comumente chamado de “Constituição Cidadã”, sendo enaltecida como uma grande vitória popular pondo fim ao Regime Militar. Porém, basta olhar para a crescente invocação da Lei de Segurança Nacional para reprimir e censurar, ou para o clamor bolsonarista pelo artigo 142 - que longe de uma interpretação delirante se assenta na própria letra da constituição, que assegura aos militares um poder moderador no regime -; para constatarmos os muitos limites desse processo e os entulhos autoritárias que perseveram até hoje.

“Constituição Cidadã” ou a “Constituição do pacto conservador e da tutela militar”

Nesse sentido, é fundamental retomar os antecedentes para a convocação da constituinte, assim como as manobras dos poderes do regime para frear o ímpeto de uma verdadeira soberania popular. Como marco inicial para a queda da Ditadura é fundamental situar o contexto de ascenso operário que marcou o final dos anos 80, com as poderosas greves do ABC como expoentes máximos da tendência que se desenvolvia à hegemonia operária na luta contra a ditadura. Combinando reivindicações econômicas e políticas, essas greves abriram caminho para a ruptura com o regime militar, ainda que terminassem por derrotadas, contando para isso com a atuação de Lula e dos “sindicalismo autêntico” que atuou para desarmar esse vínculo, ressaltando a pauta salarial corporativa.

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É a partir desse marco inicial incendiário que as forças do regime primeiro reprimem as greves e depois passam a atuar como bombeiros para desviar as aspirações democráticas das massas e impor o consenso da transição lenta, gradual e segura. O que se expressa na tutela dos militares e nas manobras para esvaziar um caráter verdadeiramente soberano e popular da constituinte. Como denuncia Florestan Fernandes, renomado intelectual marxista e deputado constituinte à época, em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 24/7/1988:

“os empresários e suas entidades corporativas agiram coletivamente: 1) para impedir uma passagem abrupta da ditadura militar para um governo democrático; 2) para que se convocasse não uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva*, livre e soberana. Preferiram o penoso “acordo conservador” (…); a “transição lenta, gradual e segura” se viu elevada à categoria de princípio intocável, protegido pelo poder do fuzil; e se instituiu um Congresso Constituinte organicamente preso à referida forma de “transição democrática” e ao seu Estado de segurança nacional disfarçado.”[1]

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No mesmo artigo, Florestan mostrava que não faltou engenho à burguesia para ir além (em sentido reacionário) da mera tutela militar, e lançou mão também de outras iniciativas para salvaguardar seus interesses de classe proprietária: “outras providências foram tomadas, como acionar o Governo e as pressões militares para conseguir certos fins, criar entidades empresariais mais dinâmicas para intervir nas votações (a UDR e a UBE); intensificar a atuação das entidades empresariais de todos os ramos de atividades; e, finalmente, compor um organismo de unidade política parlamentar, o Centrão, para bloquear a eclosão reformista e democrática que partia do centro e da esquerda.”

Poderíamos citar ainda outros limites evidentes como a participação de senadores “biônicos”, indicados pela ditadura em 1982 sem nenhum voto popular, a manutenção do Poder Executivo na figura de José Sarney, ícone da ditadura eleito indiretamente como vice na chapa de Tancredo Neves. Aliás, é o próprio Sarney que narra um dos episódios mais esdrúxulos e expressivos da tutela militar no texto da Constituição, o sequestro do relator Bernardo Cabral para a redação do já mencionado art. 142 tal qual o desejo dos militares.

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Frente a todas essas operações dos poderes de fato do regime para desarmar a potência de uma constituinte em que o protagonismo estivesse nas mãos do forte proletariado da década de 80, junto dos setores oprimidos da sociedade, Florestan chega a comparar essa Constituição que resulta, de forma surpreendente, com as Cartas elaboradas pelos ditadores no auge de seu poderio bonapartista:

“Mas isso coloca essa Constituição no mesmo nível das constituições de 1967 e 1969, manipuladas ou impostos de cima para baixo pelos ditadores militares. Há diferenças – e agudas. Dadas as proporções e a gravidade das interferências sistemáticas, elas são, apenas, diferenças de grau, não de natureza. Foi transferida para outra data a elaboração de uma constituição com vínculos orgânicos com a vontade popular”

A descontinuação da Constituição: emendas e o Golpe institucional

Esse panorama de sua origem já seria o suficiente para desmistificar a caracterização da “Constituição Cidadã”, mas a intervenção da burguesia sobre a constituição não parou por aí. Passadas mais de 3 décadas, a Constituição sofreu 109 emendas que revisaram ou alteraram seu caráter. Como diz o professor Vladimir Safatle: “A principal função do Congresso [nesses 30 anos] foi desconstituir a Constituição, ao ponto de ela ficar muito distante do horizonte inicial”. Entre essas emendas estão 3 reformas da previdência, a concessão do setor de telecomunicações, da exploração de petróleo e gás, o Teto dos Gastos, permissão de acúmulo de cargos por militares, entre outros ataques profundos.

Esse ritmo de revisão da constituição mostra o contínuo apetite da burguesia brasileira para fazer retroagir as concessões e os direitos que o ascenso operário do final da Ditadura conseguiu arrancar. Um apetite que em meio aos impactos econômicos da crise de 2008 aqui no país implicou que a burguesia nacional de mãos dadas com os interesses imperialistas agisse para dar um golpe, aumentando o ritmo dos ataques que o PT já vinha aplicando sob os trabalhadores. Com o golpe institucional testemunhamos uma inflexão nesse processo de revisão da Constituição, com a aprovação em série de grandes ataques concentrados, a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência, o Teto de Gastos, além da entrega generalizada das empresas estatais e dos recursos nacionais. Medidas que acompanham transformações estruturais do país e o assentamento de um novo regime que não mais reflete a correlação de forças da Nova República.

Transformações que em meio ao governo Bolsonaro, herdeiro ilegítimo do golpe, assistimos se consolidarem. Resguardados em todo o período da Nova República pela Lei da Anistia, os militares hoje são novamente protagonistas da política estando em mais de 3 mil postos do governo e sendo um pilar de sustentação fundamental para o governo genocida. Não só os militares, mas também o STF, que já foi o primeiro violino do bonapartismo do regime, principalmente com o autoritarismo da Lava Jato, e que é outro ator sem voto popular cujo poder cresceu nesse novo regime. O Centrão, bloco partidário que emerge em meio a constituinte, representando a ala mais fisiológica da burguesia e também fortemente vinculada aos militares, e que vai paulatinamente aumentando sua influência, até tornar-se hoje outro ator protagonista do regime e pilar de apoio a Bolsonaro.

São justamente esses os atores que estiveram por trás de cada um dos recentes ataques a classe trabalhadora e que hoje estão enfiados de cabeça na catástrofe do combate à pandemia, como os esquemas de corrupção no ministério da Saúde, e seguem descontando a crise nos trabalhadores, aprovando a privatização da Eletrobras no Congresso, ou a permissão para a demissão em massa que está em julgamento no STF.

Nova Constituinte para derrotar Bolsonaro, Mourão e os ataques

Como vimos, desde a origem da constituição de 88, a burguesia brasileira conseguiu impor profundos limites à participação popular e incrustar na Carta mecanismos autoritários de seu poder, questões que foram se aprofundando ao longo dos anos até o Golpe institucional marcar uma ruptura de vez com o pacto de 88, aprofundando a degradação do regime, em que os principais atores do regime hoje são os poderes sem voto.

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Por tudo isso, não podemos restringir a luta dos trabalhadores apenas pelo Fora Bolsonaro. A revolta popular que vemos expressa nos últimos atos, contra a catástrofe sanitária, a ameaça da miséria e da fome, não é fruto apenas do governo genocida de Bolsonaro mas do projeto de país de todo o regime golpista. Não adianta mudar os jogadores dando passagem ao racista e reacionário general Mourão, que continuará a obra do regime de ataque às condições de vida dos trabalhadores. É preciso lutar por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana para atacar pela raíz os poderes que mesmo na constituição de 88 buscaram sequestrar o direito do povo decidir.

Foi a força do ascenso operário na década de 80 que abriu espaço para a conjuntura que impôs uma nova Constituinte, ainda que desviada de várias formas como explicamos pelas forças do regime. Mas, da mesma forma hoje, é a mobilização independente dos trabalhadores, sem confiar nas forças do regime, que pode impor uma nova Constituinte. Por isso exigimos das centrais sindicais que organizem uma greve geral para derrotar Bolsonaro, Mourão, os ataques e impor essa Constituinte Livre e Soberana, que seje verdadeiramente expressão dos anseios populares, rompendo com as amarras que o regime busca impor. Uma Constituição que ajude a elevar a consciência da nossa classe para constituir um governo dos trabalhadores que nos permita avançar para a ruptura com o capitalismo.

[1] Florestan Fernandes, A Constituição inacabada, p. 308.




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