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SEMANÁRIO

O “obscurantismo” e a sociedade burguesa: “progresso” e “retrocesso” no sistema capitalista (Parte I - O Estado e a sociedade)

Alexandre Azhar

O “obscurantismo” e a sociedade burguesa: “progresso” e “retrocesso” no sistema capitalista (Parte I - O Estado e a sociedade)

Alexandre Azhar

A renovada relevância política e cultural do obscurantismo clerical, o negacionismo anticientífico cada vez mais aceito na cultura geral e no discurso político, e, em geral, o avanço de formas de pensar e agir que muitos imaginam como “pré-modernas” leva às mais variadas interpretações da razão pela qual viveríamos um suposto “ataque aos valores da modernidade”. Sem buscar abordar qualquer elaboração em particular sobre o assunto (o que, certamente, valeria um, senão vários, estudos posteriores), este artigo busca fazer uma contribuição à análise da presente situação e de sua relação com a dinâmica histórica mais geral de nossa era, pensando e contextualizando a suposta oposição entre os “valores da modernidade” e o “obscurantismo” cada vez mais presente.

O espectro do “fim da história” capitalista, que ganhou notoriedade com o triunfalismo neoliberal em fins do século XX, não se resume somente à suposta “derrota do socialismo”. De fato, a ideia de que a democracia liberal, a economia de mercado e a visão de mundo burguesa representam o ápice da civilização humana são tão antigas quanto as próprias pretensões burguesas ao domínio mundial. Em fins do século XVIII e meados do XIX, as ciências naturais e humanas da burguesia clamavam de forma desinibida não só a superioridade objetiva do Homem europeu e sua civilização sobre o resto do globo, como as formas de governo equivalentes à democracia liberal de isomorfas à própria natureza humana.

A construção de uma certa historiografia interessada acerca do iluminismo seguiu para cimentar uma divisão estrita entre a “era das trevas”, marcada pela superstição, a irracionalidade e a opressão, e a “era das luzes”, que seria o momento de libertação e supremacia da razão, da ciência e da liberdade individual. [1]

Desta forma de pensar - que preserva, de diversas formas, uma influência ainda que vestigial mesmo em correntes de pensamento atual – resulta o “estranhamento” sentido por tantos ao verem a ascensão desimpedida de tudo o que foi considerado “coisas do passado”. É válido dizer, inclusive, que há uma política cada vez mais presente de que o inimigo atual não seria, propriamente, a modernidade capitalista em crise, mas uma “pré-modernidade” que insiste em retornar e que deve ser derrotada como ordem do dia, de maneira inteiramente separada do enfrentamento ao capitalismo enquanto tal ou, quando muito, de maneira acessória a este. Surgem análises subjetivistas, que proclamam um suposto “atraso ideológico” do povo como culpado de sua “suscetibilidade” aos discursos reacionários, e mesmo revigoram ideias de uma suposta “burguesia progressista” ou apenas “liberal” (o que passa a ser um elogio diante da suposta possibilidade de um “retrocesso para antes do liberalismo”) e mesmo de que o desenvolvimento capitalista teria, por si, a capacidade de superar os preconceitos de raça e a opressão de gênero (todas estas, sim, ideias seguramente superadas pela experiência histórica).

Subjacente à ideia de que os momentos de exagerado retrocesso dos direitos e do discursos representam alguma espécie de “exceção” ou mesmo “ataque” aos valores da modernidade está uma concepção mais ou menos dissimulada de naturalização da ordem social capitalista e dos avanços democráticos e societais na sociedade burguesa. Essa noção estende-se desde a proposta tipicamente liberal de que o racismo e o sexismo, bem como a intolerância religiosa, não passariam de meros “resquícios do passado” que se preservam apenas em alguns indivíduos “atrasados” mas que podem ser combatidos pela própria lógica de mercado e pelas instituições estatais burguesas, até a contraposição (frequente em setores da esquerda e centro esquerda) entre o “obscurantismo bolsonarista” e o suposto “liberalismo” de uma burguesia “mais iluminada” – nada mais ilustrativo do que a comemoração por parte de setores do PSOL à vitória eleitoral do racista Joe Biden, membro do maior e mais antigo partido imperialista do mundo, comemoração em meio à qual ninguém menos que Luciana Genro, dirigente do MES, saldou a vitória do democrata como uma “vitória do iluminismo sobre as trevas”.

A burguesia e o “progresso”

A análise da dinâmica por meio da qual os elementos reacionários, as aparentes relíquias pré-modernas, interagem com a sociedade atual atravessa a compreensão do próprio desenvolvimento da forma burguesa de organização social. Isto compreende tanto sua origem, que a determina materialmente de uma série de maneiras, quanto seu desenvolvimento.

Pode ser considerado relativamente trivial o reconhecimento de que a revolução burguesa representou um “progresso” para a humanidade (pelo menos no contexto europeu) [2]. Cabe, entretanto, analisar mais detidamente o que isso significa.

Primeiramente, cabe rapidamente delimitar que, de um ponto de vista marxista, não há nem pode haver um “objetivo” para a história. É absolutamente simplista a interpretação de que a sucessão de eventos históricos caminhe uma linha estreita, predeterminada, do “pior” ao “melhor”. O que pode, sim, ser observado e descrito pela concepção materialista da história é o desenvolvimento das forças produtivas em termos de capacidade material e técnica e conhecimento científico que viabilize o melhor intercambio social com a natureza objetiva em vistas do alcance dos objetivos humanos. Paralelo a isso e em estreita conexão, está a organização da sociedade que, desde suas formas estatais, suas relações de propriedade e suas ideologias, reflete as condições das relações de produção e trabalho.

As revoluções burguesas foram expressão política da necessidade histórica de superar um sistema de relações e propriedade que já não convinha com o nível de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de troca. Nesse sentido, a ruptura com a ordem feudal se dava, em um primeiro momento, como uma rejeição integral do velho sistema. Os altos ideias da Revolução Francesa (representados pela ala mais radical e consequentemente revolucionária da burguesia insurrecta, o jacobinismo) eram, de fato, preenchidos por um conteúdo altamente progressista, na medida em que representavam a rejeição a um sistema antiquado, e arrastavam atrás de si o conjunto das classes subalternas que viam em seu programa a possibilidade de libertarem-se, também, das mazelas que viviam.

Toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. A classe revolucionária, por já se defrontar desde o início com uma classe, surge não como classe, mas sim como representante de toda a sociedade; ela aparece como a massa inteira da sociedade diante da única classe dominante. Ela pode fazer isso porque no início seu interesse realmente ainda coincide com o interesse coletivo de todas as demais classes não dominantes e porque, sob a pressão das condições até então existentes, seu interesse ainda não pôde se desenvolver como interesse particular de uma classe particular. [3]

Porém, tal período necessariamente só pôde durar até a burguesia estabelecer-se como classe dominante. A esta altura, essas ideias, que representaram, por um período, as aspirações do conjunto da sociedade contra a velha ordem, passam a ser as ideias da ordem dominante, encontram limites a seu caráter progressista e tornam-se os ideais organizadores de uma sociedade fundada na exploração e na opressão. A sociedade burguesa estabelecida, ainda que represente em sua forma social uma superação da ordem feudal, quase que imediatamente encontra-se em contradição com potencial revolucionária em si contido – que culminaria na própria superação da mesma – e para o qual passa a representar uma contenção.

Essa dinâmica pode ser observada inscrita na lógica da própria Revolução Francesa:

(…) Todo um povo, que por meio da revolução acreditava ter obtido a força motriz necessária para avançar com maior celeridade, de repente se vê arremessado de volta a uma época extinta e, para que não paire nenhuma dúvida quanto ao retrocesso sofrido, ressurgem velhos elementos, a velha contagem do tempo, os velhos nomes, os velhos editais que já haviam sido transferidos ao campo de erudição antiquaria e os velhos verdugos que pareciam ter-se decomposto há muito tempo

.

Assim escrevia Marx acerca do processo pelo qual, havendo tomado a linha de frente na luta contra a monarquia, as classes populares (naquele então, o proletariado nascente, mas principalmente os camponeses, tal como uma grande massa de pobres urbanos) rapidamente viram a nova ordem estabelecida voltar-se contra eles, retrocedendo inúmeras de suas conquistas. Processo observado marcadamente na derrota jacobina, e mais ainda na ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder. Mesmo do ponto de vista internacional, enquanto a vitória da Convenção jacobina representou, em 1794, a abolição da escravidão nas colônias, a vitória da Napoleão representou seu reestabelecimento.

Tudo aquilo erguido pelas alas mais radicais da burguesia, representantes da revolução enquanto “revolução - nas palavras de Marx - da massa inteira da sociedade face à única classe, a dominante” [4], encontra seu limite não na reação à revolução burguesa, mas na própria burguesia enquanto classe dominante.

Baseando-se nas relações sociais capitalistas, os jacobinos não conseguiram resolver a contradição entre a burguesia e as massas. O ideal político de Robespierre de uma república de pequenos proprietários unidos simplesmente pela virtude era incompatível com a dinâmica real do capitalismo francês. [5]

Encontra-se, aqui, uma tensão, nomeadamente a tensão entre a sociedade burguesa, a sociedade organizada ao redor dos interesses capitalistas, e as grandes conquistas dos trabalhadores e das demais classes oprimidas, impostas ao processo revolucionário e à própria sociedade mediante sua luta. Em meio a esta tensão, reatualizam-se as palavras de Robespierre em seu último discurso, pouco antes de sua execução: “A contrarrevolução está em todas as partes da economia política” [6]. Torna-se, então, necessário diferenciar entre o que faz parte da revolução burguesa “por direito” e o que está lá contra a vontade da própria burguesia, bem como o que foi, pelo menos em um primeiro momento, expulso por não convir à sociedade burguesa, e o que só parece ter sido abandonado, por ter sido atacado meramente por servir, naquele momento, à classe dominante cujo lugar a burguesia queria usurpar.

Nessa segunda categoria, vivem muitas “relíquias” que alguns apressadamente presumem enterradas com o velho medievalismo, mas que de fato correspondem a apetrechos mais ou menos necessários de toda sociedade dividida em classes (por sua própria lógica interna ou pelo processo histórico concreto) e “herdados” sem muitos problemas, pelos novos senhores, dos antigos.

Quanto do “passado” ficou no passado?

Um exemplo notável seria o das liberdades democráticas e direitos políticos, tipicamente considerados pilares da “sociedade livre”. Mais ou menos ignorando, ou pelo menos subestimando, todos os revezes sofridos pelas massas e pelos projetos progressistas no decurso do assentamento a burguesia enquanto classe dominante, é típico de uma concepção de senso comum - tanto histórico como político - definir a ordem liberal burguesa como a ordem da “democracia” (propositalmente sem adjetivos. “Democracia” pura e simples, quase uma Forma platônica). Consequentemente, ataques ao que for considerado um pilar da vida democrática da sociedade (e é importante notar, como abordaremos mais a frente, que isso varia de um país para outro) são capazes de gerar horror inclusive a arautos do liberalismo, que acreditam nas próprias mentiras sobre a sociedade que defendem. Rapidamente surge a noção de que, se algo pretende retroceder nas conquistas democráticas, deve tratar-se de um atentado à própria modernidade. Nem o fascismo, forma política típica do capitalismo imperialista, foge à acusação de “retrocesso”. Abordaremos, também, isso mais à frente.

Dentre elas, a mais ilustrativa do verdadeiro abismo que há entre os ideais da revolução antifeudal e os da ordem burguesa é a do sufrágio. Mais precisamente, a diferença entre as conquistas democráticas de um povo em luta que, no curso da criação de seus próprios órgãos de poder contra o Estado feudal, criou assembleias e convenções, e a democracia representativa “normalizada”, na qual não somente o direito de decisão direta é absolutamente alienado da população, mas também o próprio direito de escolher por quem serão tomadas tais decisões é incrivelmente limitado, e seria ainda mais, não fosse a luta dos trabalhadores.

O alcance universal do direito ao voto (que ainda hoje carrega várias limitações, principalmente no que exige a conformidade com uma série de trâmites e documentações do Estado) nunca constituiu um projeto do Estado burguês. Na realidade, sua forma mais pura pode ser encontrada precisamente nas primeiras décadas após sua implementação, onde o voto era restrito a uns poucos, e demostrado quase explicitamente não como uma forma de “governo do povo”, mas como o acordo das classes proprietárias sobre a constituição de um impositor de sua vontade comum. Para que não restassem dúvidas de que se tratava de um projeto burguês e não uma mera “herança do passado”, o direito ao voto, além de reservado a homens letrados, o era precisamente àqueles que detinham propriedade. Homens brancos, proprietários, letrados – naquele então, isso era especificamente o burguês, quando muito, o pequeno burguês. Algo não muito diferente transcorreu em se tratando dos direitos do trabalho. Um exame do Código Napoleônico pode ser bastante ilustrativo. Destinava-se, acima de tudo, a proteger os direitos da propriedade burguesa. De seus mais ou menos 2.000 artigos, apenas 7 tratavam do trabalho, enquanto mais de 800 da propriedade privada. Os sindicatos e greves eram proibidos, enquanto as associações patronais, permitidas. Em uma disputa judicial sobre salários, determinava que o depoimento do patrão seria o único a ser levado em conta. Foi, como todo o Estado burguês, feito pela burguesia, pelos interesses da propriedade capitalista. [7]

O processo é ilustrativo principalmente nos países europeus onde a instalação desse Estado se deu com todo tipo de ligações com a monarquia que até pouco combatiam. A preservação da instituição monárquica na Inglaterra, assim como na Alemanha, até o fim da I Guerra, na Itália, durante toda sua unificação e seguindo até o fim da II Guerra e em mais um sem-número de países, nos quais foi meramente combinada com uma forma política que acomodasse a representação dos interesses políticos de suas burguesias basta para mostrar que o que apareceu, em um primeiro momento, como uma oposição filosófica e principista à monarquia realmente era (pelo menos do ponto de vista do objetivo histórico da burguesia) uma disputa circunstancial. Para nem falar, então, de casos como o da Espanha, onde a monarquia, já abolida, foi restaurada e até hoje perdura, tendo inclusive sido reposta no poder com auxílio de nada menos que a ditadura fascista de Francisco Franco, ou seja, um regime político capitalista por excelência [8].

Mas é nos EUA, onde sequer havia herança feudal com a qual lidar, que esse projeto se mostra de maneira ainda mais clara. Lá, até hoje perdura o problema do sufrágio, inscrito na “sacrossanta” Constituição, na forma do colégio eleitoral. Dentre todos os direitos que figuram da Carta Magna Yankee, em lugar algum consta o direito universal ao voto. Pelo contrário: seguida ao pé da letra, somente os delegados apontados pelo governo de cada estado teriam direito a votar para presidente. Atualmente, essa situação vergonhosa aos que se exultam “a maior democracia do mundo” é “contornada” por meio de leis estaduais que determinam a eleição por sufrágio universal dos delegados, como que “fingindo” que todo o povo vota para presidente. Mas a realidade é que, claramente, os “pais fundadores” dos EUA – nação referida tanto por Marx como por Lênin e Trótski como o mais próximo de um “capitalismo puro”, precisamente por tratar-se de um país fundado no auge da ascensão burguesa, por aqueles que fugiam das antigas formas políticas europeias, levando consigo as ideias mais “avançadas” do velho continente – não desejavam um presidente eleito pelo povo, mas um representante “imparcial” do interesse geral da burguesia. Se tanto na Europa, como nos EUA isso é diferente, trata-se de uma conquista contra a ordem burguesa, uma imposição, do movimento operário, das sufragistas, da luta abolicionista (nos EUA, também da luta dos direitos civis) e tantas outras.

O Estado (burguês) e a Revolução

A forma estatal e a organização social que se assentaram com o triunfo das revoluções burguesas e a posterior expansão global do sistema capitalista correspondem, acima de tudo, às necessidades materiais engendradas pelo modo de produção capitalista. Longe, porém, de ser um sistema estável, sua própria lógica o condena a uma existência em constante movimento, engendrado pela contradição essencial entre suas forças fundamentais, a saber, a contradição entre as classes.
Dito de forma mais concreta, a ideia de que no seio da sociedade burguesa, desde seu estabelecimento, há uma multiplicidade de “terrenos” em disputa, nos quais a concessão ou perseguição a direitos políticos e trabalhistas, liberdade pessoais, etc correspondem ao equilíbrio de forças, em um determinado momento, entre as classes que se encontram em fundamental contradição nesta sociedade. Uma contradição entre, por um lado, um constante avanço do capital - tanto no sentido direto de avançar na exploração como, de forma geral, subjugar o conjunto da sociedade às condições de exploração burguesas - e, por outro, a resistência da força de trabalho, e do conjunto dos oprimidos (à qual podemos agregar a organização sindical, política, etc.) além de uma exigência de melhorias objetivas em suas condições de vida.

Essas conquistas, portanto, não devem ser entendidas como vitórias seguras, mas, precisamente, como um terreno que o capital constantemente tenta reaver. No caso dos direitos trabalhistas e sindicais, assim como do estado de bem estar, de maneira mais geral, isso pode ser visto nitidamente frente às décadas de avanço neoliberal, onde uma correlação de forças que pesava contra a classe trabalhadora permitiu uma verdadeira “guerra de reconquista” por parte dos capitalistas contra as poucas posições que os trabalhadores haviam conquistado, mas também no atual momento de crise, no qual a burguesia, presa em uma crise que se arrasta há mais de uma década, e sem perspectivas claras de uma nova fonte estável de valorização do capital, avança com a intenção clara de aumentar a exploração em todos os fronts, sugando até a última gota de sangue dos trabalhadores e do conjunto dos oprimidos. Não é nada estranho ao regime burguês. É, pelo contrário sua própria essência.

Há, evidentemente, algo a se defender contra os ataques da extrema direita e a ingerência religiosa. Mas é preciso ter claro, por um lado, que os direitos democráticos em sua forma atual, as garantias trabalhistas, e um tanto mais de alvos centrais de ataques reacionários não são fonte da caridade burguesa, ou mesmo da lógica “ideal” do funcionamento da sociedade burguesa. Mesmo nos países centrais da Europa, desde o sufrágio universal, as leis trabalhistas e sindicais e inúmeras conquistas democráticas foram imposições da luta de classes. São concessões arrancadas não pela suposta lógica interna de “diálogo e deliberação” da democracia liberal, mas espaços violentamente conquistados pela classe trabalhadora, contra a vontade de uma burguesia que se viu existencialmente ameaçada pela sublevação dos trabalhadores. Decorrente disso, cabe reconhecer que nenhuma fração burguesa, nem os supostamente representantes do “iluminismo” são aliados plausíveis para defender essas conquistas.

Porém, se parecemos nos afigurar, diante de um cenário razoavelmente desfavorável, no qual a sociedade burguesa – a princípio “bastião da liberdade, racionalidade e das luzes” atacada pelas “trevas” – se mostra realmente, não o alvo de um ataque externo, mas a elaboradora de um prolongado “autogolpe”, promovendo dentro de si o renascimento de todo tipo de podridão que as classes subalternas em luta desde muito aspiravam abolir, na medida em que se torna inimiga destas próprias classes não é, de toda forma, um cenário paralisante.

Primeiramente, é sabido que há, sim, conquistas a se defender. Se, desde sua atuação na revolução burguesa, e desde então em sua incessante luta contra o capital, os trabalhadores e setores oprimidos fizeram recuar, mesmo que parcialmente, as ofensivas da burguesia, cavando para si espaços dentro desse sistema, estas conquistas devem ser protegidas. O sufrágio universal, a igualdade – mesmo que apenas formal e jurídica – das mulheres e negros, a liberdade de organizar-se em sindicatos, sua legitimidade enquanto órgão de negociação e exercício da vontade coletiva dos trabalhadores, a legalidade dos partidos operários (tanto no sentido de concorrerem em eleições, quanto mais em geral, sua liberdade de existirem relativamente livres de perseguição policial direta) são conquistas das e dos trabalhadores e oprimidos, e se a todo momento a própria burguesia atenta contra eles, cabe aos revolucionários serem seus mais fervorosos defensores, precisamente para revelar a todos que ainda possam ter ilusões nessa democracia dos ricos que à burguesia não interessa defendê-las, e que só estarão verdadeiramente seguras uma vez que os trabalhadores tomem definitivamente o poder em suas mãos.

Retomando o exemplo do fascismo, pode-se recorrer às elaborações de Trótski, que falando precisamente desse movimento, pelo qual a sociedade burguesa em crise volta-se contra os explorados e oprimidos, ressaltava a importância de defender a democracia burguesa contra os ataques da própria burguesia, porém, não com os métodos parlamentares e sim com os da luta de classes. Frente à ascensão fascista na Espanha, Itália e Alemanha (a qual ele reconhecia não como uma suposta negação da modernidade ou da sociedade liberal, mas sua reação, em um momento de crise e frente ao ascenso revolucionário, contra as conquistas dos trabalhadores e para assentar brutalmente um terreno mais favorável à subjugação e exploração) apontou a importância de defender os “embriões de democracia operária” conquistados pelo proletariado dentro desta mesma sociedade burguesa que agora se virava contra essas conquistas.

Esta defesa, contudo, não se dá “por si só”. Não é um objetivo em si, mas apenas a defesa contra o avanço da burguesia, que só pode se concretizar a sustentar transformando-se em ataque contra as posições burguesas. É essa a lógica da luta revolucionária contra os ataques da burguesia: uma luta que compreende que não se trata de um ataque “de fora” ou de um “retrocesso” a um medievalismo, mas de um movimento nascido da própria lógica capitalista, e que só pode ser derrotado combatendo essa lógica de conjunto, pela superação das formas sociais capitalistas pelo conjunto dos trabalhadores e setores oprimidos.

Se bem isso é uma verdade provada historicamente no terreno da política, não se resume a ele. De fato, as normas culturais, formações sociais e ideologias formam, igualmente, a base de sustentação não apenas do domínio capitalista sobre a sociedade, mas igualmente da reprodução da própria sociedade burguesa enquanto tal. É nesse terreno, também, onde se manifestam os mais variados obscurantismos - desde o fanatismo religioso, a opressão racista e patriarcal, etc - que tendem a aparecer como prova mais convincente de que tratamos, aqui, de inimigos “arcaicos”, “primitivos” ou “pré-modernos” da sociedade atual. Sobre o papel cumprido por estas na sociedade burguesa, trataremos na segunda parte desta artigo.


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FOOTNOTES

[1A ironia advinda do contraste entre estas elevadas ideias, e a base material que lhes proporciona – em grande medida, a subordinação e o genocídio dos povos originários das Américas e a exploração da mão-de-obra escravizada – já é amplamente conhecida, e foi objeto de muitos estudos mais aprofundados. Em particular, a coletânea A Revolução e o Negro publicada pela editora Iskra, provê uma importante contribuição da teoria marxista sobre o assunto.

[2É valido, aqui, ressaltar que este reconhecimento é importante para diferenciar-se de qualquer noção (profundamente antimarxista) de que a pura e simples “rejeição” da sociedade capitalista ou de aspectos desta (como as atuais formas de Estado, ciência e medicina modernas etc.) e não sua superação revolucionária, teria algum conteúdo progressista

[3MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007 (grifo nosso)

[4MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007

[6Maximilien Robespierre, “Extracts from Speech of 8 Thermidor Year II,” Virtue and Terror, ed. Jean Ducange (London: Verso, 2007), 136. Citado por Doug Enaa Greene e Harrison Fluss em Hegel, Enlightenment, and Revolution no portal Left Voice

[7Um estudo mais detido desse processo pode ser encontrado no capítulo XIII da obra História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman.

[8De fato, não deve ser minimamente surpreendente que a ditadura fascista, uma vez cumprida sua missão de afogar em sangue as aspirações revolucionárias do proletariado, e seguramente esmagado o movimento operário organizado, preste-se ao serviço de preparar o lugar para um governo deste tipo. Nada mais condizente com a natureza do fascismo como descrita por Trótski (que teve Franco como um exemplo para chegar a essa conclusão) como um golpe de força do capital (mais precisamente, do setor que invariavelmente representa o mais forte do capital em nossa era, o capital imperialista) para esmagar “os embriões de democracia operária dentro da sociedade burguesa” (lê-se sindicatos, conquistas democráticas etc.) e reestabelecer a ordem capitalista.
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Alexandre Azhar

Estudante de Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, militante da Juventude Faísca- Anticapitalista e Revolucionária e do Movimento Revolucionário de Trabalhadores
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